Quem passa pela Ilha da Banana, no centro de Cuiabá, vê apenas escombros onde antes habitavam mais de cem pessoas, dependentes químicos em situação de rua. No início da demolição, autoridades estaduais e municipais se uniram para anunciar a revitalização do espaço – que está na linha do VLT –, e uma ação humanizada em relação aos ocupantes. No entanto, eles continuam ali. Apenas atravessaram a rua e subiram o Morro da Luz.
A demolição dos 199 imóveis para a retomada do VLT – que ainda não passa de uma incógnita – aconteceu em junho passado. Dali, pelo menos 43 usuários de álcool e drogas foram transferidos para comunidades terapêuticas por decisão voluntária para tratar o vício.
Os demais continuam concentrados e seu número ainda é grande na região. Agora o “novo” lar é em meio às arvores do Morro da Luz, onde já se veem barracas improvisadas e uma área ocupada por pessoas que não conseguem ou não desejaram sair dali.
A Ilha da Banana faz parte da história de fundação de Cuiabá e do cenário de exploração do ouro há quase 300 anos. Nos últimos anos serviu de abrigo, esconderijo, refúgio para moradores em situação de rua e usuários de drogas. Muitos deles portadores de HIV, hepatite, hanseníase e outras doenças graves.
Em sua maioria estavam lá por conflitos familiares e após serem expulsos de casa acabavam nas ruas. Em novembro de 2016 a equipe do Circuito Mato Grosso fez uma incursão na Ilha da Banana, sem apoio policial. O intuito era descobrir o que havia entre os corredores dos escombros e lá encontrou seres humanos doentes necessitando de tratamento especializado.
Nesta nova reportagem, voltamos à Ilha da Banana, ou melhor, visitamos os antigos moradores em seus novos lares. Lá encontramos mais histórias, mas todas muito parecidas com as antigas, só que agora contadas ao relento.
“Houve uma transferência do problema”, avalia presidente do CRESS-MT
Para a presidente do Conselho Regional de Serviço Social (CRESS-MT), Andréia Amorim, a demolição da Ilha da Banana só fez transferir as pessoas que ali viviam em situação de rua para outros pontos da cidade, sem resolver o problema delas.
“Primeiro tiraram eles [moradores de rua] da rodoviária e de lá eles foram se espalhando pela cidade. Alguns foram para lá [Ilha da Banana] e agora tiraram eles de lá e eles estão indo para outros lugares. Ou seja, há uma transferência do problema sem que haja uma solução para aquelas pessoas”, disse ao jornal.
Conforme a presidente, a ação de retirada das pessoas foi considerada um tanto desastrosa, porque ao se fazer a demolição, antes disso deveriam ter sido tomadas medidas para atender as pessoas que ali moravam.
“Essa questão da Ilha da Banana, a nosso ver, expõe um problema social, uma ferida, um problema muito maior que não é apenas a questão das drogas. Ela está mostrando para nós uma grande lacuna que existe e, se não forem tomadas as medidas necessárias, o problema não vai se resolver”, afirma.
É preciso, segundo Andréia, pensar em várias coisas como: tratamento, saúde, assistência social e dessa forma envolver a comunidade, a família, as equipes técnicas através do Centro de Referência de Assistência Social (Cras), Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (Caps) e a reativação do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua de Cuiabá (POP).
“O que nós queremos é que haja vontade política, principalmente com um olhar de respeito para esse público. O que se tem hoje são ações pontuais. Nós não negamos que tenham várias entidades prestadoras de serviços, que estão fazendo um trabalho sério devido à falta de políticas públicas. Mas é preciso todo um conjunto de ações”, pontuou.
Defensora cobra atenção depois de retirada dos moradores
Você já se imaginou sendo retirado da sua casa de uma hora para outra? Já pensou em como reagiria se isso lhe acontecesse? E se você fosse retirado da sua casa e não tivesse para onde ir? É assim que a defensora pública Rosana Esteves Monteiro tenta fazer as pessoas refletirem sobre as pessoas que moravam na Ilha da Banana.
“Essas pessoas que viviam em situação de rua na Ilha da Banana, elas realmente residiam ali, era o território, a casa delas. Bem ou mal, aquilo era um abrigo para eles contra a chuva, vento, sol. Muitos tinham vínculos com aquele lugar, assim como você tem com a sua casa, com o seu território, onde você vive e você não quer sair dali. A mesma coisa aconteceu com eles”, explicou.
Por isso, segundo ela, eles ainda continuam naquela região, pois ali estão os vínculos deles e onde eles vivem. O acolhimento foi providenciado um mês após a demolição, e com fragilidades.
“Ele foi parcial porque não acolheu todas as pessoas. Tivemos problemas no que diz respeito a esse acolhimento, com a vizinhança, com a falta de assistência”, relatou. A isso também se soma a falta de atenção pós-acolhimento, pois não seria apenas dar uma moradia, mas toda uma assistência.
“A gente entende que por conta da emergência não foi possível, acredito, o município dar esse respaldo. Eles foram colocados na casa, eles tinham um teto, só mudou de lugar, mas os problemas sociais que acompanham essas pessoas em decorrência da desassistência se mantiveram. Problemas em decorrência do uso abusivo de drogas se mantiveram. Então os problemas continuaram”.
Segundo a defensora, a atenção precisaria ser integral, pois é o problema das pessoas em situação de rua é extremamente complexo, não é apenas a assistência à saúde, a questão do trabalho, de se garantir a própria renda, a questão da cultura, da educação, tudo isso precisa ser envolvido.
Fórum abre debate sobre população em situação de rua
O primeiro Seminário Pop Rua: Políticas, Cenários e Perspectivas aconteceu nesta semana na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e reuniu autoridades, estudiosos, profissionais da saúde e moradores de rua da capital.
O seminário foi uma realização do Fórum de População de Rua, grupo voltado ao fomento de iniciativas e formulação de políticas públicas para a população em situação de rua do estado.
“Resolvemos fazer esse seminário para justamente problematizar essas questões, para debater, tentar oferecer propostas de atendimento para esse público. É preciso que se criem mais abrigos para acolhimento, mais condições de oferta de trabalho, de qualificação, para que eles tenham condições de garantir o seu próprio sustento”, disse a Rosane Monteiro.
O coordenador geral dos Direitos da População em Situação de Rua do Ministério dos Direitos Humanos, Carlos Ricardo Júnior, participou do seminário trazendo os avanços alcançados em nível nacional sobre a política nacional para a população em situação de rua.
“Nós já estamos há sete anos e meio com a mesma política nacional e nós estamos em um momento agora de mudança. Reavaliamos e estamos propondo trazer a política brasileira para um patamar que já está sendo reconhecido internacionalmente como mais eficaz”, contou.
Eles querem implantar o chamado “House First”, que no Brasil será chamado de Moradia Primeiro. O modelo já foi instalado no Canadá, Estados Unidos, em países da União Europeia, já tem resultados concretos inclusive em países como a Finlândia que reduziu em 85% o número de pessoas em situação de rua.
“Já é reconhecido que o acesso à moradia facilita o acesso a todas as outras políticas, sem exceção. E parte de uma questão óbvia: só está na rua quem não tem casa. Basta pensar no nosso próprio cotidiano: se olharmos para essas pessoas em situação de rua, elas são seres humanos como qualquer um de nós. É só a gente imaginar como seria nossa vida morando na rua, se a gente conseguiria trabalhar, estudar, ter os cuidados mínimos de higiene”, explicou.
A proposta deve ser apresentada no final do primeiro semestre do ano que vem.
Ex-morador conta como chegou ao fundo do poço e hoje vê esperança
Gelson Rodrigues de Moraes está há três meses fora das ruas. Ele agora mora em um albergue da capital e disse estar limpo há cerca de dois meses, a não ser pelo cigarro que ainda fuma. Mas quanto ao resto ele garante que está limpo e pretende continuar. Isso só foi possível depois de chegar ao fundo do poço.
Aos 14 anos ele perdeu a mãe, sua melhor amiga, pessoa com quem se identificava e que acabou sendo levada após sofrer um derrame. Com o pai, ele conta, nunca foi a mesma coisa, pois era mais sistemático, sempre querendo que as coisas fossem do jeito dele.
“Eu era o filho mais velho e para o meu pai as coisas tinham que ser da forma dele. Foi então que eu perdi minha mãe, ele vendeu a casa, repartiu a herança com os filhos, arrumou outra mulher e eu fiquei com um sentimento de tristeza muito profunda no meu coração”, recorda-se Gelson.
Depois que perdeu a mãe, começou a brigar muito com um dos irmãos e foi então que experimentou a droga. Ele não disse qual foi a porta de entrada, mas recorda que gostou muito do que ela proporcionou e depois dali foi só decadência.
“Já não tinha mais vontade de estudar, comecei a faltar às aulas e depois abandonei os estudos. Com o tempo passei a dar umas voltas pelo centro, gostei de andar, passei umas noites na rua e me acostumei com aquela coisa de ficar na rua. Foi aí que eu comecei a usar drogas mais pesadas. A partir daí começaram as dificuldades para tomar banho, arrumar um canto para dormir, a discriminação por andar sempre sujo, barbudo, cabeludo. Não tinha condições de arrumar um trabalho, nem para capinar um terreno. Comecei a pedir dinheiro nos faróis, a cuidar de carros, foi indo e eu não queria mais voltar pra casa. E isso se torna um círculo vicioso. Fui ficando, ficando, quando eu dei por mim, já tinham se passado oito anos que eu estava vivendo na rua”.
Então Gelson foi preso e passou um mês preso por tráfico de drogas. Chegou a pensar que após passar um tempo preso sairia e mudaria de vida. Não queria voltar para a rua, para as drogas, mas não conseguiu. Logo depois que saiu foi para uma boca de fumo e o círculo vicioso voltou.
“Voltei para a rua, depois fui parar em várias clinicas de reabilitação, que só serviram para eu engordar. Serviam para eu passar um tempo lá para ver se eu conseguia me libertar daquele mal, mas, quando eu saía, ia para uma boca do fumo e voltava tudo de novo. Eu tinha medo porque via muitas situações de pessoas boas morrendo, pessoas novas. Mas isso só acontecia quando eu estava sem usar drogas; quando tinha feito uso, eu encarava tudo”, lembra.
Ele chegou a pesar 46 kg e com isso veio mais preconceito. As pessoas falavam que ele estava doente, que havia contraído o vírus da Aids porque morava na rua. “É aí que vive o preconceito. Se você emagrece, você está doente. E não era. Era perda de sono, uso abusivo de drogas. Sem comer, você emagrece, perde as forças”.
Desde que saiu das ruas, Gelson ganhou peso, voltou a dormir melhor, tem vontade de voltar a escrever e diz ter outros pensamentos. Ele ainda não está trabalhando, mas está fazendo acompanhamentos médicos, tirando alguns documentos, e espera em breve encontrar um trabalho.
“Acredito que se a pessoa não lutar contra isso não vai se libertar nunca. Eu tenho 46 anos, comecei a usar com 14, perdi a vontade de estudar, uma coisa que eu adorava. Fazia redação, lia livros de história, não gostava muito de matemática, mas da geografia eu gostava muito. Minhas irmãs todas estudaram, se formaram e eu fiquei para trás. Os caras falam assim: “ah sempre tem uma ovelha negra da família”. No meu caso não foi uma ovelha, foi o sentimento destruído quando eu perdi a minha mãe”, avalia.
Hoje, ele voltou a falar com o pai, que não conversava há mais de um ano devido ao uso excessivo da droga. O pai o convidou para voltar para casa, mas Gelson afirma que ainda não está pronto. É que o outro irmão dele está perdido para as drogas e ele tem medo de ter uma recaída, por isso vai se manter longe por enquanto.
“Eu tinha uma família bem estruturada, então quer dizer que a culpa na realidade foi minha. Se eu tivesse, assim, um incentivo, uma coisa que pudesse modificar isso, talvez hoje eu tivesse outra visão. Hoje eu tenho outra visão sobre esse mundo da droga”.
Expectativa
Gelson acredita que os parlamentares e o governo teriam que arrumar mais profissionais como médicos, psicólogos, enfermeiras e estruturas físicas melhores para o atendimento dessas pessoas.
“Assim, eles [moradores em situação de rua] vão ver que têm condições e que elas estão melhorando e vão querer sair dessa vida, pois sabem que tem condições de mudá-las. Só que é uma batalha difícil, mas não impossível. Temos que pensar sempre no positivo que tudo dará certo”.