Opinião

Entre artefatos e plantas

No início de 1988 Jacutinga voltou ao mar… À maresia… Ao som e à agitação do marulho… Uma fração de lembranças do Arpoador residia no litoral da Paraíba. Jacutinga em nova missão: a convite de Marco Antonio Potiguara, filho do líder Daniel Potiguara, foi incumbido de colaborar na promoção da revitalização cultural do povo Potiguara de Acajutibiró, Baía da Traição. Junto à amada, procedeu levantamento e inventário da cultura material e catalogação de plantas medicinais e utilitárias daquele povo.

Desde a invasão do Brasil pelos europeus, o povo guerreiro, “comedor de camarão”, não teve trégua. Sofreu violentamente com as práticas de colonização efetivadas pelos portugueses, franceses e holandeses. Na contemporaneidade, não está incólume. O território Potiguara, reduzidíssimo, sofre em demasia com a derrubada da Mata Atlântica, a “mata escura”, como a denominam, com a poluição dos rios e mangues, estes verdadeiros reservatórios naturais de diversas espécies de peixes, crustáceos e moluscos. A contínua mudança no modo tradicional de uso e ocupação territorial, o desmatamento, a irregularidade na demarcação de território tradicional, a poluição de recurso hídrico e a insegurança alimentar vêm levando à piora na qualidade de vida dos indígenas.

Jacutinga e sua amada, após os estudos sobre etno-história Potiguara, etapa que se desenvolveu em concomitância aos primeiros contatos com a comunidade indígena, iniciaram pesquisas de campo direcionadas aos artefatos e sua inserção nas esferas da vida indígena. Homens e mulheres prestaram informações preciosas sobre a produção da cerâmica, trançados, cordões e tecidos, adornos plumários, adornos de materiais ecléticos, indumentária e toucador, instrumentos musicais e de sinalização, armas, utensílios e implementos de madeira e outros materiais e objetos rituais, mágicos e lúdicos, categorias propostas pela antropóloga Berta Ribeiro em “Dicionário do Artesanato Indígena” (1987). Em um afinco coletivo bonito de se ver, as histórias narradas pelos indígenas propiciaram um montante de informações que asseguraram a fluidez da pesquisa. O casal foi acolhido no cotidiano aldeão e no dia a dia da casa Potiguara. Gentilmente permitiram o registro fotográfico de seu trabalho e de si mesmos. Mais ainda, concederam os saberes da roça, da pesca com puçá, da coleta dos caranguejos no manguezal, do fabrico da cerâmica, dos trançados, dos instrumentos musicais entoados no ritual do Toré, ao som dos tambores e maracás.

Com 68 itens, o levantamento e inventário dos objetos indígenas forneceu uma ampla descrição da produção artesanal Potiguara que resultou na publicação do livro “Potiguara – cultura material” (1989), editado pela Secretaria de Educação e Cultura da Paraíba. Os itens etnográficos adquiridos e presenteados pelos indígenas durante os estudos de cultura material integraram uma exposição em João Pessoa.

Os artefatos inventariados representam a totalidade das categorias propostas por Berta Ribeiro, contendo a identificação das matérias-primas empregadas em cada um deles, com os respectivos nomes científicos, graças aos estudos de Manoel Pio Correa.

A catalogação das plantas medicinais e utilitárias foi organizada com base nas obras de Manoel Pio Correa, Renato Braga e Frederico Carlos Hoehne entre outros, após os ensinamentos elaborados pelas raizeiras e pelos raizeiros para o registro dos saberes e práticas de cuidado à saúde. Revisada pelos médicos Ewerton N. Teixeira e Ronice Sá, está dividida em duas seções: inicialmente versa sobre o uso de plantas medicinais nas doenças mais comuns entre os indígenas e, a seguir, disponibiliza uma relação dos principais itens da flora medicinal existentes em tabuleiros, carrascos e matas, bem como sua prática fitoterápica. O trabalho, executado coletivamente com a comunidade, resultou em um volume contendo 137 páginas datilografadas em máquina de escrever Olivetti, em Baía da Traição.

Finalizada a temporada no mar…

Embebido pelo modo de vida Potiguara, com sua amada, Jacutinga retornou ao Mato Grosso com um Fusquinha “azul da cor do mar”. No teto, um par de caçuás feito pelo amigo Janjão Potiguara, com todos os seus pertences.

Anna Maria Ribeiro Costa

About Author

Anna é doutora em História, etnógrafa e filatelista e semanalmente escreve a coluna Terra Brasilis no Circuito Mato Grosso.

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