Thays Martinez ficou muito tempo tentando realizar o sonho de ter um cão-guia . Deficiente visual desde os 4 anos de idade, quando teve uma caxumba e o vírus se alojou na retina, a advogada buscava por uma maior autonomia e sabia que um cachorro treinado para guiar mudaria sua vida – o que de fato aconteceu. No ano 2000 ela entrou num programa americano e acabou trazendo Boris para o Brasil. O labrador a acompanhou por 8 anos e foi aposentado em 2008, um dos momentos mais doloridos da vida de Thays.
Durante esses 8 anos foram muitas mudanças – tanto para a vida pessoal da advogada, quanto para a realidade brasileira. "Costumo dizer que tenho uma vida antes e outra depois do Boris . Eu passei a me sentir mais segura, andava com uma velocidade maior na rua e sem medo de bater em alguma coisa – os cães-guia desviam até de obstáculos altos, como um galho de árvore. Além disso, ele elevou muito a minha autoestima e confiança. Ele me proporcionou realizar os sonhos de andar sozinha na beira do mar e de morar sozinha", conta.
Além disso, na época em que Boris chegou ao país não existia um programa para socialização e adestramento de cães-guia para a população, muito menos leis que permitiam o acesso deles em locais públicos. Thays fundou uma ONG para treinar cães-guia e entregá-los gratuitamente para quem precisasse do auxílio deles. Também foi ela que entrou com uma ação judicial contra o Metrô de São Paulo para que a presença desses cães de serviço fosse permitida, em pouco tempo saiu uma liminar de autorização e após alguns anos foi criada a Lei Federal Nº 11.126, que deu o direito ao cão-guia de ingressar e permanecer nos veículos e nos estabelecimentos públicos e privados de uso coletivo.
Com tanta história e conquistas juntos, Thays conta que sofreu muito com a aposentadoria de Boris, mas que precisava de outro cão-guia e acabou adquirindo Diesel . "A gente cria uma relação muito peculiar e intensa de troca. Eu cuido dele e ele cuida de mim 24 horas por dia, 7 dias por semana. É uma sintonia de corpo e alma. Então a aposentadoria é um momento muito difícil. Sentia que estava traindo o Boris e ao mesmo tempo criando uma resistência ao Diesel que buscava criar um vínculo. Mas a dor e a alegria são parte da vida e temos que lidar com isso", afirma.
E não é apenas o dono que sente o momento da aposentadoria. Karen Fujiwara , treinadora de cães formada nos EUA, conta que muita coisa muda na vida do pet. "Esse cachorro se aposenta entre 8 e 10 anos de idade, são levados em conta a saúde e a mobilidade dele. Depois disso ele perde o direito da lei do cão-guia (acesso a qualquer lugar), sendo que a vida inteira ele esteve acostumado a acompanhar o dono 24h por dia. Agora ele não pode mais ir ao supermercado, à farmácia ou ao cinema", conta a especialista que acredita que as regras deveriam ser iguais para os cães-guia da ativa e para os aposentados.
Karen afirma que para evitar maiores problemas com tanta mudança é preciso fazer uma aposentadoria gradual , além de manter a mente do pet ocupada. "Normalmente, quem já tem cão-guia possui prioridade na lista de espera dos Institutos, então quando um se aposenta chega outro. A mudança tem que ser gradual, não é simplesmente pegar o novo, dar tchau para o antigo e deixá-lo em casa. Tem que manter ele numa rotina que ocupe sua mente com enriquecimento ambiental e passeios diários, por exemplo. Isso evita depressão e obesidade."
Outra dificuldade enfrentada em muitos casos é a manutenção de dois cães dentro de casa – o aposentado e o na ativa. Thays passou por isso: como morava sozinha era muito difícil ter o Boris e o Diesel, além disso, ela ficava com o coração partido de ter que deixar Boris sozinho em casa. A decisão foi doá-lo para um casal de amigos que ele já tinha uma ligação e continuar encontrando-o periodicamente.
Mas a mudança de endereço não cortou o laço criado entre Thays e o cão-guia. "Depois de um tempo o Boris teve câncer e a gente sabia que seria algo rápido, então eu o peguei de volta para ele fazer essa passagem em casa. Ele estava resistindo e muitos diziam que era por causa da nossa ligação. Um dia pedi para saírem com o Diesel e conversei com o Boris, agradeci pelo o que ele tinha feito por mim e disse que o Diesel daria conta do recado. Os dois nunca tinham interagido antes, mas nesse dia quando o Diesel voltou para casa o Boris deu a garrafa pet que gostava de brincar na boca do Diesel. No dia seguinte o Boris morreu", conta emocionada.
Hoje Diesel também é um cão-guia aposentado e Thays conta com a ajuda da cadela Sophie – os dois cachorros se dão bem. Apesar de os momentos de aposentadoria serem difíceis, a advogada diz que não adianta sofrer por antecedência. "Cada um deles trouxe um aprendizado que era necessário naquela fase da minha vida. Eles me trouxeram a possibilidade de voltar a enxergar um pouco pelos olhos deles e ver o mundo de uma forma diferente, mais encantadora", afirma.
Para os donos de cães-guia aposentados que não podem ficar com eles e não tem para quem doar, a solução é devolvê-los ao Instituto ou ONG que treinou o pet – eles ficaram responsáveis por achar um novo dono para ele.