O Ministério do Meio Ambiente (MMA) tem R$ 2,8 milhões disponíveis para serem usados em projetos de sustentabilidade ambiental e de incentivo à bioeconomia, mas que ainda aguardam destinação. Os recursos são do Fundo Nacional de Repartição de Benefícios, que foi criado a partir da Lei 13.123, de 2015, a Lei da Biodiversidade, para valorizar o patrimônio genético de espécies nativas, como plantas, animais e micro-organismos, e os conhecimentos tradicionais associados e promover o seu uso de forma sustentável.
O fundo é administrado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O órgão explicou à Agência Brasil que a contratação e acompanhamento dos projetos a serem apoiados com esses recursos fica a cargo do gestor financeiro, o Comitê Gestor do fundo, que é presidido pelo MMA. O contrato entre BNDES e governo federal para a gestão da conta foi assinado em 2019 e, até o momento, nenhum projeto foi contratado, portanto, não houve repasse de recursos.
De acordo com a coordenadora de Projetos do Instituto Escolhas, Teresa Rossi, o incentivo à bioeconomia no Brasil passa também pelo acesso a esses recursos, mas, segundo ela, ainda não se têm critérios muito claros e transparência sobre o seu destino. O Instituto Escolhas é uma associação civil sem fins lucrativos que promove debates em torno da implementação da lei.
O fundo poderia custear, por exemplo, o desenvolvimento tecnológico de comunidades tradicionais e de pequenas e médias empresas, o financiamento de pesquisas, a criação de linhas de crédito específicas para o marco legal, a certificação de produtos e o acesso ao mercado para empresas que estão desenvolvendo esse patrimônio e gerando emprego e renda. “Só precisamos facilitar a implementação da legislação”, disse Teresa.
O desenvolvimento da bioeconomia, em especial na Amazônia, é uma das propostas do governo para o combate ao desmatamento. “O governo também tem interesse nessa agenda da bioeconomia, mas se vê pouca gente discutindo essa legislação, fora do âmbito da academia. É como tentar discutir a cereja do bolo [bioeconomia], mas sem saber do que é feito o bolo [legislação]”, argumentou.
Um dos principais objetivos da Lei da Biodiversidade é regulamentar as atividades de pesquisa e desenvolvimento de produtos envolvendo as espécies nativas brasileiras, que compõem o patrimônio genético do país, e os conhecimentos tradicionais associados. Dessa forma, empresas que se beneficiem da exploração do patrimônio genético brasileiro passaram a contribuir para o Fundo Nacional de Repartição de Benefícios, com 1% da receita líquida anual obtida com a exploração econômica.
De acordo com o BNDES, os valores arrecadados até o momento foram pagos por 36 empresas. A arrecadação dos recursos acontece mediante ordem do MMA, que informa as empresas contribuintes e valores a serem recolhidos. O ministério também é o responsável por verificar o vínculo e o cumprimento das obrigações perante o fundo.
A reportagem entrou em contato com a assessoria do MMA, solicitando entrevista e informações sobre a implementação da lei e o comitê gestor do fundo, mas não obteve retorno.
Benefícios da Amazônia
A edição da Lei da Biodiversidade e criação do fundo de repartição de benefícios são consequência da adesão do Brasil ao Protocolo de Nagoia, que entrou em vigor em 2014. O processo de ratificação do país foi concluído no mês passado, com a entrega da carta à Organização das Nações Unidas.
O protocolo é um acordo multilateral acessório à Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), elaborada durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco-92), realizada no Rio de Janeiro, em 1992. Ele regula a repartição de benefícios em nível internacional advindos do uso dos recursos genéticos.
Para Teresa Rossi, isso é benéfico para o Brasil pois a Amazônia está no centro dessa discussão, já que muitos países têm interesse em descobrir espécies novas na região, que tem 80% da sua biodiversidade ainda desconhecida. “Muitos países têm interesse nesse potencial e terão quer repartir recursos com o Brasil e com as comunidades tradicionais, especialmente se tiverem acessando o conhecimento tradicional associado que elas têm sobre o uso das espécies nativas”, explicou.
Por outro lado, Teresa questiona por que ficar apenas com 1% de repartição dos lucros, quando essa população local poderia desenvolver os próprios produtos e gerar as próprias patentes, enriquecendo suas comunidades e garantindo o uso sustentável do meio ambiente. “Dessa forma, o uso dos benefícios do marco legal acaba concentrado nas grandes empresas”, explicou, citando, por exemplo, grande marcas de cosméticos.
Desenvolvendo negócios
Segundo ela, além da falta de financiamento, a regulamentação é complexa demais e a fiscalização, punitiva, o que gera um desincentivo para o uso da lei, em razão dos riscos jurídicos para os empreendedores. “Por exemplo, uma cooperativa que trabalha com açaí na Amazônia, ela poderia desenvolver produtos a partir desse fruto, como cosméticos, mas acaba se limitando à comercialização in natura para não ter que entrar na operacionalização do marco legal”, disse. “Por isso a legislação é tão importante para o desenvolvimento da bioeconomia, porque você agrega valor aos produtos da nossa biodiversidade”.
A coordenadora explica que pesquisadores e empresas de grande porte, geralmente, possuem maior conhecimento sobre o arcabouço legal ou dispõem de recursos para contratar consultores e advogados. Porém, o mesmo não acontece com os menores usuários, que estão em contato direto com as espécies e os conhecimentos.
Nesse sentido, para Teresa, faltam comunicação e capacitação. Segundo ela, a complexidade dos processos exigidos pela nova legislação e a falta de capacitação dos usuários, especialmente pequenos empreendedores e comunidades tradicionais, representam alguns dos grandes entraves para a ampliação da pesquisa e do desenvolvimento de produtos com ingredientes da sociobiodiversidade brasileira.
Para mitigar essa lacuna, o Instituto Escolhas desenvolveu o Manual da Lei da Biodiversidade, que apresenta os instrumentos jurídicos para implementá-la, em linguagem simples e acessível. O documento explica o passo a passo do cadastro de pesquisas e produtos no Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e Conhecimento Tradicional Associado (SisGen) e adverte sobre os principais pontos de atenção e riscos jurídicos ao longo do processo.
Teresa conta que o instituto está em contato com grandes entidades do setor produtivo, da indústria e de apoio a micro e pequenas empresas, buscando estratégias para desenvolverem programa de capacitação específica para esse público que tem menos acesso.
O manual é fruto de um outro estudo do Instituto Escolhas, com o apoio do Instituto Arapyaú. O documento Destravando a agenda da Bioeconomia: soluções para impulsionar o uso sustentável dos recursos genéticos e conhecimento tradicional no Brasil mapeia os entraves existentes no marco legal e embasa diversas recomendações de políticas públicas para implementação da Lei da Biodiversidade.
Na última quinta-feira (15), o Instituto Escolhas também promoveu uma discussão online sobre a lei, a partir da perspectiva dos diferentes usuários: pesquisadores, empresas e detentores do conhecimento. A gravação está disponível na página da associação no YouTube.