Milhões foram às ruas protestar contra a corrupção no Brasil em 2016. O alvo inicial era o PT. Depois, os protestos adquiriram caráter pluripartidário, sob a bandeira da Operação Lava Jato. O juiz Sergio Moro é visto como herói na luta por um novo Brasil. Uma luta imbuída de certezas morais. A população não se vê representada, descrê dos partidos, cansou dos políticos.
A Lava Jato expôs as entranhas do sistema que une empresas, partidos e Estado. Vieram à tona as contas na Suíça e paraísos fiscais, as joias, bolsas e vestidos, lanchas e carros de luxo, sítios e apartamentos, listas de propinas e malas de dinheiro. Bilionários foram presos, viram-se obrigados a falar a verdade. Políticos perderam mandatos, tornaram-se réus, foram para a cadeia. A julgar pela megadelação da Odebrecht – auge da Lava Jato –, a devassa não acabou. Mas e depois? O que acontecerá se todos os citados forem punidos? Qual será o impacto na democracia? E na economia? Acabaremos com práticas corruptas, em vigor desde o tempo das sesmarias?
A corrupção também é endêmica em países como China, Índia, Rússia ou Itália. Economistas têm até um termo para definir o sistema baseado nela: “capitalismo de compadrio” (tradução do inglês “crony capitalism”). “É um sistema em que os próximos das autoridades recebem favores de alto valor econômico”, diz o economista Stephen Haber, da Universidade Stanford. Podem ser empréstimos subsidiados (leia-se BNDES), monopólios, reservas de mercado ou proteção da concorrência por meio de cartéis e barreiras comerciais. O governante corrupto entra em ação para violar a lei e proteger seus “compadres” capitalistas.
Não é uma questão apenas moral, mas de negócios. Para os políticos, o compadrio é – além de óbvia fonte de enriquecimento – um modo de atrair investimentos (em geral, para a infraestrutura), promover crescimento econômico e ampliar a arrecadação. O empresário, ao tornar-se “sócio” dos políticos por meio da propina, compra uma espécie de seguro contra a expropriação de seu capital pelo Estado – risco sempre presente em países de estrutura institucional precária, ainda mais para investimentos de longa maturação como estradas, usinas, ferrovias, telecomunicações ou petróleo.
O compadrio custa caro por três motivos. Primeiro, recursos desviados representam capital mal alocado, distorcem o mercado, inibem a competição onde ela poderia reduzir preços, negam oportunidades a empreendedores inovadores. Segundo, o sistema é instável; as relações estão ameaçadas pela mudança de quem está no poder. Terceiro, monopólios e cartéis têm efeito dramático na distribuição de riqueza. Geram preços artificialmente altos e consomem, em subsídios, dinheiro que o Estado deveria destinar a áreas onde faz falta.
A alternativa ao compadrio são instituições robustas, que limitem o poder dos políticos de expropriar capital ou de mudar regras econômicas a seu bel-prazer: agências reguladoras estáveis e autônomas, Judiciário independente, Legislativo atuante na fiscalização dos contratos públicos, imprensa livre. Mesmo países com instituições maduras demoraram décadas a criar tal arcabouço. Outros tentaram, mas não conseguiram.
Nos Estados Unidos, eclodiu em 1872 um escândalo de proporções continentais. A Union Pacific, subsidiada para construir uma ferrovia de Leste a Oeste, tinha uma fornecedora exclusiva, a Crédit Mobilier. Não passava de uma sociedade de políticos para desviar dinheiro por meio de superfaturamento. A investigação atingiu nove senadores, 30 deputados e o então vice-presidente, Schuyler Colfax. As punições foram brandas a ponto de um dos acusados, o então deputado James Garfield, se tornar presidente nas eleições de 1880. Foi só na segunda década do século 20 que o país passou a dispor de uma estrutura institucional eficaz para coibir casos como o Crédit Mobilier, e o incentivo à corrupção sumiu.
Na Itália, a Operação Mãos Limpas – inspiração da Lava Jato – começou a devassar o compadrio em 1992. Dois anos depois, havia mais de 6.000 investigados (entre eles, 872 empresários e 438 parlamentares) e quase 3.000 mandados de prisão. De 4.320 processos, 1.300 resultariam, em dez anos, em condenação ou declaração de culpa. A reação foi feroz. O empresário Silvio Berlusconi entrou na política para fugir da Mãos Limpas. Não sossegou enquanto não a sufocou. Sob protestos, o Parlamento aprovou leis que restringiram as delações premiadas, a publicação de escutas, facilitaram a prescrição de crimes e dificultaram o trâmite judicial. Hoje, o incentivo à corrupção na Itália é maior que antes da Mãos Limpas.
E o Brasil? Fracassará como a Itália? Ou seguirá o exemplo dos Estados Unidos? Nossos parlamentares têm agido como os italianos. Deputados desfiguraram o pacote anticorrupção de iniciativa popular. Como na Itália, senadores investigados na Lava Jato tramam aprovar uma lei contra o abuso de autoridades. As ruas fazem barulho, mas não há sinal de que eles darão trégua.
Berlusconi dizia que a Justiça paralisara a economia. Tal argumento, mesmo falho, prospera também aqui. A Lava Jato coincide com a recessão mais longa no Brasil. O investimento em infraestrutura caiu de R$ 131 bilhões em 2014 (2,3% do PIB) para R$ 106 bilhões este ano (1,7%), segundo a consultoria Inter.B. Nossos parlamentares não parecem preocupados em definir uma agenda que traga esse patamar para o mínimo necessário, uns 5%.
Se tiverem sucesso no “acordão” para melar a Lava Jato, o preço econômico será ainda maior. Novos compadres substituirão quem está na cadeia, e a corrupção continuará a drenar riqueza. “O capitalismo de compadrio é uma criação política e tem consequências políticas”, diz Haber. É por meio da democracia que deve ser combatido. O maior desafio do Brasil em 2017 será evitar que a ânsia pela recuperação econômica emperre o amadurecimento institucional, essencial para erradicar essa chaga.
Fonte: Estadão