O som rítimico dos tambores ainda ecoa nas lembranças de Waris Dirie cada vez que ela ouve falar sobre mutilação genital feminina. A somali tinha 5 anos quando foi acordada pela mãe no meio da noite e levada a um local ermo. Quando viu uma mulher seguir em sua direção com uma lâmina de barbear quebrada, não teve dúvida: seria mutilada.
"Fechei meus olhos e rezei para que fosse rápido. E foi, já que desmaiei de tanta dor e só acordei quando já havia acabado. Foi horrível. Senti como se tivesse perdido um braço", lembra Waris, hoje com 49 anos, durante conversa com o iG.
Assim como Waris, 98% das mulheres com idade entre 15 e 49 anos foram submetidas à mutilação genital na Somália, segundo dados divulgados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância, o Unicef, coletados em 29 países entre a África e o Oriente Médio, onde se concentra a prática. Depois da Somália, a Guiné tem o segundo maior índice de circuncidadas: 96%. Djibouti e Egito têm, respectivamente, 93% e 91% da população nessa faixa etária mutilada. Em Eritreia e no Mali, o número chega a 89%. Em Serra Leoa e no Sudão, a prevalência é de 88%.
Tradição milenar
Todos os anos, cerca de 3 milhões de meninas são submetidas à mutilação genital no mundo. Somado ao impacto do crescimento populacional, o número pode chegar a 63 milhões de mutilações genitais femininas até 2050, estima o Unicef.
A tradição de ao menos cinco mil anos de história que consiste em cortar partes do clitóris e dos pequenos e grandes lábios da vagina. Em algumas localidades, o corte ainda é feito à navalha.
De acordo com Olga Regina Zigelli Garcia, pesquisadora do Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o procedimento teria função sanitária – a mulher se tornaria mais limpa após o ato – e também atenderia a questões culturiais: o clitóris é visto por sociedades patriarcais como a falsa representação do pênis e, portanto, competiria com a virilidade masculina. Na maioria dos casos, a mutilação da vagina veta à mulher o direito ao prazer sexual.
"A remoção das partes 'masculinas' e 'impuras' da vagina são procedimentos que, para os homens, torna as meninas 'limpas' e 'bonitas'", complementa Sheema Sengupta, chefe de proteção à criança do Unicef na Somália
Unicef: Mais de 30 milhões poderão sofrer mutilação genital feminina em dez anos
Cultura da mutilação:
Depois do procedimento, Waris passou duas semanas se recuperando com hemorragia e febre alta. Para acelerar a cicatrização, a criança teve pernas e tornozelos atados com tiras de pano por quase um mês. "Mesmo sendo apenas uma garotinha, sabia que aquilo era errado. Deus me fez perfeita. Não precisavam ter tirado uma parte de mim", diz ela.
Théo Lermer, ginecologista, sexólogo e colaborador do ambulatório de sexualidade do Hospital das Clínicas (HC), explica que tribos ainda realizam a mutilação genital extrema, onde a mulher tem o clitóris e os pequenos lábios arrancados por meio de facões e navalhas, sem o menor nível de profilaxia.
"Nesses casos, a vagina é costurada e se torna, basicamente, os orifícios para urinar e menstruar. Depois disso, durante a relação sexual, essa mulher sente bastante dor e, quando engravida, corre sério risco de morrer. Se ambos sobreviverem, é provável que a mulher sofra com fístulas", afirma.
Apesar do sofrimento, Waris jamais se rebelou contra os pais. Pelo menos não até os 13 anos, quando a família avisou que ela teria de se casar com um homem bem mais velho. Na noite que antecedeu o matrimônio, a jovem fugiu de casa e buscou abrigo junto a um tio que trabalhava em uma embaixada. Levada por ele para Londres, na Inglaterra, Waris se tornou empregada doméstica na casa do embaixador da Somália, mas fugiu depois de meses sem qualquer remuneração. Instalada em um albergue, a jovem conseguiu emprego em um restaurante do McDonal’s, onde acabou sendo descoberta pelo fotógrafo Terence Donovan e iniciou seu trabalho como modelo.
"Foi um choque para uma garota muçulmana que não conhecia nada do mundo como eu", brinca. "Depois disso, dei início à minha carreira. Foram muitos desfiles e trabalhos publicitários. Mas jamais esqueci da mutilação genital."
Para ajudar outras meninas que se submeterem à mutilação genital e evitar que milhares de outras sofressem a mesma dor, a ex-top model se tornou ativista social e escreveu o livro "Flor do deserto", que posteriormente se tornou filme com título homólogo e que teve a somali como co-produtora. Depois de anos modelando, Waris passou a se dedicar exclusivamente à Desert Flower Foundation, ONG que apoia mulheres afetadas pela mutilação genital e tenta proteger possíveis vítimas. Hoje, Waris mora em Viena com os filhoa Aleeke, de 17 anos, e Leon, de 5.
Apesar da dor, mulheres da Somália defendem mutilação
No país com maior número de mutilações genitais do mundo, 67% das mulheres somalis não acham que o procedimento deve acabar. A porcentagem é expressiva, mas ainda menor do que a da Guiné, que tem o maior índice de aceitação do continente: 81% das mulheres são contra o fim da prática. Mali, com 80%, Serra Leoa, 74%, e Gâmbia, 72%, completam a lista dos países onde a maioria das mulheres apoia a circuncisão. Na contramão desse movimento, 93% das mulheres de Benin e Gana acham que a prática deve ser banida.
"Grande parte da população somali é analfabeta. Claro que acreditam em várias tradições. As mulheres não têm status social e são abusadas em todo a sua vida. Essa realidade precisa mudar", diz Waris.
De acordo com Claudio Bertolli Filho, professor de antropologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), como a mutilação genital representa valores centenários para esses países, a permanência da prática deve ser discutida e, em muitos casos, respeitada.
"Essa é uma cultura que passa de geração para geração. Para nós ocidentais, por exemplo, é normal a mulher implantar silicone em várias partes do corpo e fazer cirurgia de reconstituição de hímen para ficar virgem novamente. Se a circuncisão não for total, não acho que deveria ser erradicada", pondera.
Já Olga, do Instituto de Estudos de Gênero da UFSC, acredita que o procedimento, considerado uma violação dos direitos humanos, não pode ser mantido apenas por seu "questionável valor cultural". "Essa prática, além de violar a dignidade humana, também viola os direitos da criança, já que meninas entre quatro e oito anos também são violadas. Não podemos legitimar crueldades e desigualdades com a desculpa da tradição", argumenta.
Pelo fim da mutilação genital
Na Somália, o procedimento é proibido por lei, mas nem sempre respeitado. Em regiões como a autônoma Puntland, no nordeste somali, além da legislação há ainda uma fatwa religiosa – decreto islâmico – impedindo a prática. O Unicef em parceria com o Fundo de População das Nações Unidas e o governo federal da Somália atuam para implementar novas legislações sobre o assunto e contam com auxílio de assistentes sociais e médicos, entre outros profissionais, para aconselhar a população a se opor à prática nas áreas mais isoladas do continente.
"Para mudar essa realidade, precisamos de uma combinação de ações e intervenções, incluindo a execução de políticas sociais e de líderes religiosos como influenciadores e agentes-chave nas comunidades", explica Sheema Sengupta.
Terrorismo e fome
Alvo de disputa no período colonial entre o Reino Unido, França e a Itália, a Somália foi criada em 1960 e, desde então, seu desenvolvimento econômico e social tem sido lento. Com a relação azedada com os vizinhos Quênia, Etiópia e Djibouti por suas reivindicações territoriais, o país só passou a desfrutar de alguma estabilidade a partir de 2012, com a queda do presidente Barre e a instauração de um novo governo. Mas os anos de ausência política expressiva trouxe consequências difíceis para a nação.
O grupo terrorista Al-Shabab – A Juventude, em árabe –, responsável pelo ataque terrorista à universidade do Quênia que deixou 148 mortos e cuja ligação com a rede Al-Qaeda é conhecida internacionalmente, foi um resultado da crise. Criado em 2006 como uma ala radical da extinta União das Cortes Islâmicas da Somália, que combatia as forças etíopes apoiadoras do fraco governo interino, o grupo tem grande influência nas áreas rurais do país e realiza ataques sistemáticos tanto dentro quanto fora da Somália.
A ascensão da pirataria somali também despertou preocupação internacional e levou até a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) a assumir a liderança em uma grande operação antipirataria. Os esforços internacionais começaram a dar frutos em 2012, quando os ataques piratas caíram drasticamente nessa região.
Mas os problemas do país não se limitam ao terrorismo. Entre 1992 e 2012, a Somália contabilizou cerca de meio milhão de mortes em decorrência da fome. Somente em 2011, durante uma das piores secas em seis décadas na África, mais de 250 mil foram mortos – metade crianças com menos de 5 anos, conforme indicou o Consórcio de Organizações Não Governamentais. Outros milhares ficaram à beira da inanição e fugiram para o Quênia e Etiópia em busca de comida.
Fonte: iG