Cidades

Quinze crianças violentadas por dia em Mato Grosso

Ter curiosidade a respeito de tudo, imaginar que o mundo é um grande parque de diversões, não ter responsabilidades, apenas brincadeiras e risos. Este mundo infantil, que poderia ser perfeito, é manchado, muitas vezes, pela atitude insana de agressores disfarçados de anjos. É o que aponta estatística da Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp). De janeiro a setembro deste ano, 4.075 ocorrências envolvendo vítimas menores de 18 anos foram registradas no Estado, sendo 701 casos de estupro de vulnerável ou 2,5 por dia. Esses dados subiram 36,5% se comparados ao mesmo período de 2014. O pior de tudo: as várias formas de violação dos direitos da criança e do adolescente acontecem dentro de casa ou entre parentes e amigos da família.

Os casos em que a criança tem sua dignidade, integridade e sonhos destruídos são mais comuns do que a maior parte da sociedade imagina. Os crimes de natureza mais simples como as agressões, por exemplo, passam despercebidos por conta da cultura da violência que se estabeleceu.

O Circuito Mato Grosso teve acesso às estatísticas da Secretaria de Estado de Segurança (Sesp). Fazendo um comparativo de 2016 com 2014, é possível concluir que a violência contra crianças e adolescentes subiu surpreendentes 36,5% em Mato Grosso. De janeiro a setembro de 2014 foram 2.984 casos contra 4.075 no mesmo período de 2016. São 14,8 crianças tendo seus direitos violados diariamente.

No ano de 2014 foram registradas 2.984 ocorrências envolvendo vítimas menores de 18 anos em Mato grosso no período de 1º de janeiro a 30 de setembro; o equivalente a 10,9 crianças vítimas da violência por dia.

Um ano depois, no mesmo período de 2015, os casos tiveram um aumento de 2,7% – com o total de 3.066 ocorrências; praticamente 11,2 crianças vítimas em ocorrências por dia no Estado.

CUIABÁ REGISTRA TRÊS CASOS DE AGRESSÃO POR DIA

Somente em Cuiabá, três denúncias são realizadas por dia na Delegacia Especializada de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Deddica). Em 95% desses casos, o agressor possui proximidade com a vítima, quando não é da própria família.

“Não precisa nem ter vínculo familiar, mas amigos, vizinhos, professor”, alerta o delegado da Deddica, Eduardo Botelho. Segundo ele essa proximidade é um recurso utilizado pelos agressores para adquirir confiança e, justamente por essa proximidade, as vítimas podem não se sentir encorajadas a denunciar o fato, por medo das consequências.

Existem basicamente três formas de violência contra a criança e o adolescente. A física, que é quando ocorre a ofensa contra a integridade corporal da vítima; a psíquica, que ocorre quando a parte subjetiva da pessoa é afetada, como injúria, calúnia, difamação; e os crimes que violam a dignidade sexual, que são os de estupro, exploração sexual, entre outras.

“Os que possuem maior incidência aqui na delegacia são os crimes de maus-tratos, lesão corporal e estupro de vulnerável”, relata Botelho.

Segundo o delegado, a criança e o adolescente são visados porque os criminosos procuram facilidade. Esse tipo de vítima seria mais fácil de aliciar e na maioria das vezes não impõe maiores dificuldades. “O criminoso procura facilidade na hora de cometer o crime, ele procura vítimas que não possam causar desencorajamento. Uma criança ou um adolescente impõe menos respeito que uma pessoa adulta”.

A vulnerabilidade dessas vítimas, observa, se dá pelo fato da dificuldade de se expressar, medo, e até mesmo a dificuldade de resistir fisicamente.

CRIANÇA DE TRÊS ANOS É ESTUPRADA PELO PADASTRO

Era para ser mais um dia normal na rotina de *Maria. Acordar cedo, tomar banho, fazer o café e ir para o trabalho – deixando a filhinha de três anos aos cuidados do seu companheiro e padrasto da garota, que a levava para a creche todos os dias. Era pra ser…

“Eu já estava com uma sensação ruim, mãe sempre sabe”, explica Maria com os olhos cheios d’agua, relembrando o triste dia de quarta-feira (03) de agosto, no Bairro Jardim Alvorada, em Cuiabá (MT).

A garota costuma ficar na creche das 6h30 às 17h. Maria sai do trabalho às 10h da manhã, mas por estar inquieta e com um certo aperto no peito, resolveu passar na unidade escolar para ver a filha – momento que descobre que ela não estava lá, sequer foi levada.

“Quando cheguei a casa ela veio correndo ao meu encontro como se quisesse minha proteção, como se quisesse carinho. Nesse momento eu já desconfiei que havia algo de errado”, relembra Maria.

A mãe explica que o suspeito A. A. D. S, de 40 anos, se defendeu dizendo que não havia levado a criança para creche, pois ela estaria sonolenta e a deixou dormir.

Ainda inquieta com a mudança de rotina, Maria vai com a filha até uma igreja no centro da cidade e na volta descobre o perturbava a criança. “Estávamos no ônibus e ela perguntou para onde a gente estava indo. Eu disse que era para casa e ela ficou preocupada, como quem não quisesse voltar para lá”.

Segundo a mãe a garota disse a seguinte frase: “Papai A., mexeu na minha moranguinho”. Maria explica que ensinou a garota a associar as partes íntimas com este nome justamente por se preocupar com esse tipo de situação.

“Fiquei sem chão nesse momento. Não queria nem olhar na cara dele quando cheguei a casa. É claro que eu ia acreditar na minha filha. Por que uma criança de três anos mentiria a respeito disso? ”, conta Maria. Ela pediu para que o homem fosse embora da casa, mas ele se recusou de todas as maneiras, até ela tomar a atitude de denunciar.

O caso ainda segue na justiça, mas Maria conseguiu uma medida preventiva pela qual o suspeito não pode se aproximar a menos de 1,5 km dela – que anda com um dispositivo para monitorar a distância.

“Para mim foi muito doloroso como mãe. Não me arrependo de ter denunciado porque pensei na proteção da minha filha. Creio que lá na frente ela pense que teve uma mãe amiga, que cuidou e a defendeu”, finaliza Maria com voz firme, com a certeza de que fez a escolha correta.

* O nome utilizado é fictício para preservar a fonte

CRIMES COMEÇAM EM CASA

“Não é só fazer sexo e deixar a criança sob a responsabilidade do estado”, explana o presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), Jader Martins.

A família, observa o presidente, tem um papel fundamental na educação das crianças, e acompanhar de perto as ações e atitudes do filho (a) pode diminuir os índices de violência contra a criança e adolescente.

Ele relata que a primeira responsabilidade é da família, que muitas vezes acredita que o fato de estar alimentando e dando o que precisa é o suficiente. “A família não pode abandonar, ela tem que educar para que a criança cresça sabendo dos direitos e regras da sociedade. A família é a primeira responsável pela educação e não pode culpar professor, prefeito, governador seja lá quem for”.

O presidente aconselha ainda aos responsáveis a ficarem atentos aos comportamentos e atitudes do dia a dia da criança, pois isso pode alertar caso algo esteja acontecendo. “A família precisa participar ativamente da vida da criança e do adolescente e ficar atenta a mudanças de comportamento. Se a criança faz desenhos de violência, escreve ‘odeio’ e coisas assim, é porque alguma coisa está acontecendo”.

Jader Martins também cobra ações governamentais e maior participação dos gestores nas políticas de assistência social. “Se tivesse escola integral esses dados diminuiriam 80%, porque a criança estaria protegida mais tempo e isso evitaria que ela caísse em armadilhas”. Segundo ele, em muitos dos casos a mãe e o pai precisam trabalhar e as crianças ficam à mercê. Isso ocorre também em famílias de classe média.

O presidente do CMDCA ressalta, ainda, que as políticas de assistência social ficam sempre em último plano, o que deixa a criança e adolescente no papel de ‘refém dos administradores’. “A própria Constituição garante recursos para educação e saúde, mas não tem nenhum centavo para financiar políticas de assistência social. A criança fica refém do gestor”.

Ele exemplifica que se o gestor dispõe R$ 10 mi para assistência social, tira sete e deixa apenas três no meio do caminho. “A gente fica dependendo única e exclusivamente do recurso federal, que também não está sendo repassado para dar manutenção em programas”, relata Jader a respeito de programas que, em tese, ocupariam o tempo vago das crianças e adolescentes.

Ainda de acordo com Jader Martins, os gestores dão prioridade a trabalhos que são visíveis em curto prazo, diferentemente de programas de assistência social. “Se fosse investido com prioridade nos programas e nas instituições de assistência social, os índices de violência cairiam consideravelmente na cidade. Porém esse é um trabalho cujos resultados aparecem em longo prazo e os gestores vão dar preferências a asfalto, praças e todo esse tipo de coisa que aparece em curto prazo”, relata.

MORANDO COM ESTUPRADOR

Recentemente um caso chocou a sociedade mato-grossense e acarretou na prisão de João Bosco da Silva, 54 anos, que abusava sexualmente da enteada de apenas 11 anos desde abril deste ano. Os abusos ocorriam com tamanha frequência que a criança engravidou.

O crime aconteceu em General Carneiro, a 370 km de Cuiabá (MT). Segundo a vítima, o homem a obrigava a manter relações sexuais com ele sob ameaças de morte. Em depoimento a garota informou que o suspeito dizia que a mataria se viesse a revelar para qualquer pessoa o que vinha acontecendo.

A garota, que morava com o padrasto e a mãe, resolveu contar após um exame de sangue dar positivo para gravidez. O homem foi detido e levado para a cadeia.

“Os crimes sexuais ocorrem na maior parte do tempo dentro do domicílio e essa é nossa maior dificuldade. Se a pessoa não vier até aqui denunciar a prática do crime nós não temos como ficar sabendo”, explana o delegado da Deddica em Cuiabá, Eduardo Botelho, argumentando que a polícia não faz monitoramento em residências.

Segundo o delegado, os agressores possuem vínculo com a vítima em 95% dos casos. E como há a dificuldade de as denúncias chegarem até a polícia, muitos crimes sequer chegam a ser conhecidos, o que gera certa sensação de impunidade nos agressores e fomenta a prática deste tipo de ação. “Se a denúncia não ocorrer vai aumentar a sensação de impunidade. Os infratores vão se sentir cada vez mais encorajados a praticarem abusos e agressões contra crianças e adolescentes. A maioria desses crimes dentro do seio familiar”.

POLÍCIA SOLUCIONA MAIORIA DOS CASOS

O delegado Eduardo Botelho conta que todas as denúncias que chegam à Delegacia Especializada de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Deddica) – em média três por dia – são verificadas. Segundo ele, inicialmente um auto de investigação preliminar é instaurado para verificar a veracidade da denúncia, isso porque ainda há casos de trotes e/ou pessoas com interesse de prejudicar o denunciado.

“Sendo procedente, esse auto de investigação preliminar é convertido ou em inquérito policial – se for um crime de médio ou maior potencial ofensivo, ou em Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) – quando a ocorrência é de menor impacto”, explica Eduardo Botelho.

“Esses crimes possuem um caráter em que a autoria é fácil de identificar. Dos que chegam até a delegacia 80% são esclarecidos, o problema é que muitos crimes não chegam até nosso conhecimento e essa é a nossa maior dificuldade”, conta.

VÍTIMA TEM MEDO DE DENUNCIAR

A grande dificuldade são os crimes que não chegam até o conhecimento da polícia, pois são executados, na maioria das vezes, dentro de casa e por pessoas com vínculo familiar, o que dificulta as denúncias.

Há receio da denúncia por parte da vítima ou testemunha dessas agressões justamente por conta da proximidade com o agressor, porém, existe o recurso da denúncia anônima, que é uma ferramenta de grande utilidade para a justiça.

“A denúncia anônima é uma ferramenta, pois é um meio de comunicação de um crime. Muitos crimes graves só chegam ao conhecimento estatal através de denúncia anônima. É um mecanismo muito eficiente. Eu prefiro uma denúncia anônima a um crime permanecer impune”. Conta Eduardo.

Os crimes de maus-tratos são de menor potencial ofensivo – a não ser que acarrete em morte ou lesão grave – nesses casos, via de regra, as penas são convertidas em prestação de serviços à comunidade, doações de cestas básicas, multa, etc. Já o crime de estupro de vulnerável é um crime grave. Nesses casos a pena de reclusão é aplicada e o período máximo de detenção ultrapassa 10 anos.

PRESENCIOU? REGISTRE OCORRÊNCIA

Quem presencia deve procurar pessoalmente qualquer unidade da Polícia Civil e registrar um boletim de ocorrência (B.O).  Caso o denunciante não se sinta à vontade e queira preservar sua identidade, as denúncias podem ser feitas de maneira anônima nos números 197 e 190 ou através da delegacia virtual. “O que não se pode em hipótese alguma é deixar de denunciar o crime, pois isso gera uma sensação de impunidade e aumenta, e muito, a incidência da prática deste tipo de ação contra a criança e adolescente”, ressalta o delegado Eduardo Botelho.

Leia a matéria completa na edição 605 do jornal impresso 

Raul Bradock

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