Hoje somos só nós. Vocês e eu. Caneta, caderninho e a que aqui escreve. Três por uma, a crônica.
Numa ponta, pra variar. Na sexta a tarde, pra firmar. Sem fantasia.
A caminho subi a rua do Posto 6 em direção ao Arpoador já pensando no conteúdo da prosa. Não é igual a ir à praia na Ponta do Leme, minha pedra original. Lá conhecia todo mundo e alcançar o paraíso era uma travessia amorosa.
Porteiros, gari, guardador/lavador de carro, o Coutinho banco/boteco, salvador nas horas perdidas, Marquinhos da papelaria.
Uma fiscalizada nas frutas no seo Avelino, com direito a exame de qualidade da partida mais recente das melhores (e sempre desejadas) mariolas, meu vício. Aquela passada pela banca de jornal do Santo pra conferir as capas dos jornais e o suco de banana com abacaxi com pão na chapa e polenguinho, do Romário ou do Malaquias, na padaria Duque de Caxias.
Essa social sempre fazia que só pensasse na crônica quando acabava de acampar na areia antes de me concentrar nos meus esportes favoritos: o surf nas ondas do canto da pedra e a pelada da garotada na beira do mar. Com traves do gol de coco ou havaianas.
Aqui no Posto 6 a levada é diferente. Mais papo reto. Não dá pra comparar a intimidade e os afetos de uma vida com essa paisagem. Lá era pulo. Aqui é ladeira. Acima. Pra chegar em Ipanema desfilo de ponta a ponta da Bulhões, cruzando do pé do Morro do Pavão até a Pedra do Arpoador.
Claro que já rolam obas e olás. Mas aquela animação não vira por essas bandas. A exceção (como não poderia deixar de ser) é com um velho amigo dos tempos de adolescente. Porteiro do prédio quando morei aqui, hoje bate ponto num edifício vizinho. Com ele a prosa rende. “Hoje está uma tranquilidade no entorno”, informa. “O vice-presidente Mourão está no pedaço com tudo que tem direito.”
Foi pensando neles, os direitos, que num silêncio pensativo subi o restante da ladeira. Nos direitos do general que virou vice e do porteiro que está perdendo os seus nas canetadas ensandecidas dos poderes constituídos de Brasília nessa reforma que, bradam, será para beneficiar os mais pobres.
Todos empurrados à escravidão contemporânea, a que não depende de raça e de cor. Grilhões financeiros e econômicos em que só falta já nascermos no negativo.
Claro que isso é uma projeção catastrófica, dirão aqueles que, com chicotes nas mãos, ainda encontram um jeito de aplaudirem o trabalho infantil. Em breve seremos embalados pelos sons dos estalos dos rebenques no lombo do gado obediente.
Mas não foi para falar disso que cheguei até aqui. A vida do porteiro amigo ainda é das melhores. Tem emprego, é bom no que faz, ajuda os amigos e, sempre que pode, chuta o balde e vai pescar na praia.
Fui interrompida no riscado por Vilmar, o irmão do mar. Perguntou o que eu estava escrevendo depois de me pedir um troco pra comprar um marmitex. Vilmar está recolhendo latinhas na praia. É desempregado, tem fome e um sorriso enorme.
Está pior, bem pior que o porteiro pescador. Mas se acha um privilegiado. Me explicou que só ele na família de vários irmãos tem o mar no nome, por isso se sente “irmão dessa lindeza”. Irmão do mar, Vilmar só almeja (me contou) outro mar. O marmitex de sexta.
Na volta pra casa há um burburinho no final da descida da rua. O vice com seu aparato policial, comitiva, coisa e tal, mais um soldo de R$ 19.000,00 acaba de chegar em seu lar!
Que não se compara ao do esfomeado Vilmar. Que pode não ter nada! Mas é irmão. E disso abusa, do mar…
*Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Da série “Arpoador”, do SEM FIM… delcueto.wordpress.com