Em maio deste ano, uma comissão da União Europeia veio a Mato Grosso e a outros quatro Estados brasileiros para inspecionar os serviços sanitários de produção de carne. Poderia ser uma visita de rotina, pois anualmente países compradores do Brasil enviam técnicos para vistoriar frigoríficos, como maneira de garantir a qualidade do produto que sai do país. Mas a Operação Carne Fraca, deflagrada pela Polícia Federal dois meses antes, era o motivo que trazia os gringos com mais urgência ao Brasil.
O resultado da inspeção ainda foi pouco divulgado, mas o vice-presidente da Sociedade Rural Brasileira, Pedro Camargo Neto, afirmou que “algo de estranho” foi identificado pela comissão.
“Havia algo de errado e os europeus nos avisaram sobre isso. O problema é que nada foi feito”, disse ele para uma plateia de pecuaristas e donos de frigoríficos em mesa-redonda realizada pela Associação dos Criadores de Mato Grosso (Acrimat), em Cuiabá, no dia 30 de junho.
A PF deu início à Carne Fraca após identificar indícios de fraudes na produção de carne por grandes empresas do setor – JSB Friboi, Seara, Vigor, Swift BRF (holding da Sadia e Perdigão). A investigação indicou que produtos químicos eram usados para maquiar carne vencida, e água era injetada nos produtos para aumentar o peso. Também havia lotes de carne de frango e suína com mistura de papelão.
O estardalhaço da operação e falhas identificadas na apuração da Polícia Federal geraram críticas por parte de produtores, que viam cunho político na ação. O pecuarista Pedro Camargo disse à época que a PF foi “irresponsável” por dar início à operação com base em informação sem averiguação.
Mas ele admite que há “algo estranho” na etapa de vistoria do setor no Brasil, e foi pelo mesmo motivo que os Estados Unidos declararam embargo à importação da carne in natura do Brasil no dia 22 de junho. Uma restrição que coloca em risco o mercado conquistado pelo Brasil há 17 anos.
“Se tivéssemos ouvido os europeus, isso [embargo americano] não teria ocorrido. Eu estou no ramo da pecuária há muitos anos e os europeus sempre nos orientam quando identificam alguma coisa errada na nossa produção. E é nisso que precisamos trabalhar”, ponderou Pedro Camargo Neto.
Somadas à polêmica da JBS, que fez confissões ao STF (Supremo Tribunal Federal) de montagem de fraudes com participação com representantes do governo nos últimos dez anos, pagamento de propina e financiamento de campanha de vários políticos, o impacto da Carne Fraca e o embargo dos americanos atingem algo que o Brasil levou 17 anos para fortalecer e em menos de seis meses corre risco de voltar à estaca zero.
“O que nos afeta agora é falta de credibilidade. Nós temos uma equipe muito bem qualificada no Ministério da Agricultura (Mapa), uma equipe de fiscais e auditores que realiza seu serviço de forma exemplar e sem deixar a desejar para os países do primeiro mundo. O problema não está aí, é outra coisa que não sabemos bem o que é”, pontuou.
Ele afirma que essa é a pior crise em todos seus anos de participação no mercado pecuário, seja como produtor, seja como representante de entidades do setor. “Não sabemos se estamos no início, no meio, ou no fim da crise e não sabemos para onde vamos. Certamente, esta é a pior crise que vivenciei”.
Delações explicam concentração de mercado da JBS
O diretor executivo da Acrimat, Luciano Vaccari, conta que a associação não se manifestou sobre a polêmica entre JBS Friboi e políticos por se tratar de um externo ao setor da produção agropecuária. “Isso não tem nada a ver com a gente, eles que resolvam o problema do Executivo (governo federal)”.
Mas sua apresentação de balanço sobre o setor em Mato Grosso indica uma situação micro, em termos geográficos ao restante do Brasil, daquilo quevinha acontecendo no segmento de produção de carne nacional.
Pelos números da Acrimat, o vertiginoso crescimento da JBS Friboi em Mato Grosso se deu em um intervalo de oito anos. Entre 2008 e 2016, o grupo passou de um destacado ator nos negócios de frigoríficos, com participação abaixo de 13%, no início do período, para o domínio de 51% do setor, em 2016. Uma travessia curta para qualquer economista, se considerado o tamanho do setor e do poder que a JBS atingiu.
“Em 2008 nós tínhamos mais dez empresas com 75% do mercado em Mato Grosso. Em 2016, cinco empresas têm mais de 10% do mercado, e 51% estão nas mãos da JBS”.
Sem se referir diretamente a políticos ou instituições estatais, Vaccari afirma que “agora [após a delação dos irmãos Batista ao STF] é possível entender o que aconteceu”.
“Se juntarmos esses números [de balanço da Acrimat] com o que vem sendo divulgado [pela mídia], podemos entender o que aconteceu lá no passado. Ninguém consegue abocanhar 51% do mercado nesse tempo [2008 a 2016], mas agora sabemos que houve ajuda”.
As referências de Vaccari são a esquemas envolvendo ministros e o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Segundo Joesley Batista, Guido Mantega (ex-ministro dos governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff) foi quem fez a intermediação com a direção da J&F, holding que inclui a JBS, com a direção do banco para negociar financiamentos de maneira facilitada.
Embargo pode gerar efeito cascata de importadores
O embargo dos Estados Unidos à carne brasileira pode gerar efeito cascata para outros mercados. Por exemplo, a China e o Egito. O vice-presidente da Sociedade Nacional de Agricultura (SNA), Hélio Sirimarco, diz que a decisão do governo norte-americano causa mais impacto à imagem do produto brasileiro que ao bolso do exportador.
“A preocupação é mais com a imagem do país como exportador e produtor de pecuária do que com a parte financeira, porque os Estados Unidos não são um importador importante de bovinos in natura”.
A suspensão da importação foi decidida porque 11% da carne exportada pelo Brasil desde março, mês da Operação Carne Fraca, não passou em testes de qualidade nos Estados Unidos. Sirimarco disse que a venda de carne fresca para o mercado dos EUA é recente, mas pode gerar repercussões sobre outros países, uma vez que o Brasil está tentando abrir novos mercados, como Japão e Coreia do Sul.
Segundo o Ministro de Agricultura, Blairo Maggi, o Brasil é o único exportador de carne vacinada contra a febre aftosa para os EUA. O problema que levou ao embargo seria uma reação à vacina nos bovinos, que provocou “calombos” na carne, mas nada que altere a qualidade do produto.
Os Estados Unidos têm, porém, normas rigorosas de controle que detectam esses processos e, na dúvida, impõem barreiras visando à proteção do consumidor.
Ministro vê cunho político em suspensão pelos EUA
Para o ministro Blairo Maggi, o embargo dos Estados Unidos teve ponderações além das técnicas de qualidade sanitária. Segundo ele, a disputa direta dos Brasil com os americanos por maior fatia no mercado mundial pesou na “rigorosa suspensão”.
“Há que se considerar que outras questões, além das técnicas, influenciaram nessa decisão, já que nós somos os principais concorrentes dos norte-americanos na produção de carne. Mas essa decisão política influencia sim no posicionamento de outros países que seguem as decisões de mercado dos EUA”, comentou em entrevista ao Circuito Mato Grosso.
A ambição do país é aumentar em 3% a fatia do mercado internacional na venda de carnes, passando dos atuais 7% para 10% no prazo de cinco anos. Para evitar refazer os planos e aprofundar a crise do setor, o ministro deve viajar aos Estados Unidos nos próximos dias para apresentar dados de fiscalização em frigoríficos.
O cronograma é tomar medidas, segundo o ministro, que já são tomadas em relação a outros países: “Prestar todas as informações necessárias, receber missões internacionais para averiguação da qualidade dos produtos brasileiros, assim como visitar vários países para demonstrar a segurança e robustez do nosso sistema de inspeção, que inclusive segue padrões internacionais”.
CNTA quer comitê para garantir direitos de contratados da JBS
A Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação e Afins (CNTA Afins) pediu ao Ministério do Trabalho e Emprego a criação de um comitê tripartite para garantir direitos a funcionários contratados pela JBS.
O presidente da confederação, Artur Bruno de Camargo, disse ao Circuito Mato Grosso que o pedido, protocolado há duas semanas no Ministério do Trabalho, teve início após o anúncio pela J&F de venda de duas empresas na Argentina, o que, para ele, representa a falta de credibilidade da empresa no mercado.
“Se ela anunciou a venda de empresas na Argentina, nada garante que não o fará no Brasil. Ainda não ocorreu demissão em massa, mas alguns funcionários já foram dispensados e em outras plantas estão sendo dadas férias coletivas”.
Camargo afirmou ainda que o comitê teria representantes do Ministério do Trabalho, da JBS e entidades representantes dos trabalhadores, de partiriam negociações entre funcionários e patrão sobre garantias trabalhistas em eventual fechamento ou suspensão de atividades de frigoríficos.
“A Justiça brasileira já proibiu que a oferta de venda de empresas na Argentina seja suspensa, mas isso não impede que as portas sejam fechadas por causa de suspensão de atividades, e os trabalhadores não podem pagar o preço por algo que não é culpa deles”, explicou.
Conforme a CNTA, a JBS é hoje responsável pelo emprego de cerca de 130 mil trabalhadores dos mais 550 de mil contratados por indústrias frigoríficas no país. Camargo afirma que a confederação está hoje em fase de coleta de dados sobre número de contratos em cada planta e quantas delas estão fechadas por férias coletivas ou encerramento das atividades.