Em pleno Araguaia, no coração do país, pecuaristas e agricultores enfrentam o estigma de serem apontados como os responsáveis pelo desmatamento. A proposta de um grupo de 50 proprietários – que integram a Liga do Araguaia – é lutar para mudar essa associação direta do agronegócio à devastação.
O grupo deseja conquistar corações, mentes e fundos de financiamento, ressaltando os pontos positivos do setor, como as áreas verdes que preservam, e vencer os desafios ambientais impostos pelo Código Florestal Brasileiro (Lei Federal nº 12.651, de 25 de maio de 2012) e por regras de compra cada vez mais restritas para os produtos nacionais.
A grande maioria desses produtores culpa o governo pelos altos números do desmatamento nas regiões de produção. O problema teria raiz em uma grande mudança de paradigma e no crescimento da importância com as questões ambientais pós-Conferência Mundial do Meio Ambiente do Rio de Janeiro, a Eco-92;
Antes desse período, os produtores teriam sido estimulados pelo próprio poder público a praticar derrubadas tanto no Cerrado quanto na Amazônia. “Recebíamos cartilhas do extinto IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal) indicando que as margens de rios eram as primeiras que deveríamos cortar. E por muitos anos, se não derrubássemos as matas, o próprio governo declarava a propriedade improdutiva. Depois, simplesmente mudaram as regras e disseram que estava tudo errado e que nós teríamos que pagar para recompor o que cortamos, pois erámos criminosos ambientais”, diz Marcos Antônio Dias Jacinto, veterinário e proprietário da fazenda Barranco Alto, e um dos integrantes da Liga do Araguaia.
De fato, foi o próprio governo federal que estimulou a ocupação do Cerrado e de parte da Amazônia para produção de grãos e a criação dos rebanhos. A incorporação da região Centro-Oeste à fronteira agrícola nacional começou em 1975. Os programas de maior impacto foram o Programa para o Desenvolvimento do Cerrado (Polocentro) e o Programa Nipo-Brasileiro para o Desenvolvimento do Cerrado (Proceder).
Na Amazônia Legal foram os programas da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia os maiores responsáveis pela chegada das primeiras fazendas. A autarquia do governo federal do Brasil foi criada no governo de Castelo Branco, em 1966, com a finalidade de promover o desenvolvimento da região amazônica, gerando incentivos fiscais e financeiros especiais para atrair investidores privados, nacionais e internacionais. A já extinta Fundação Brasil Central (FBC), criada em 1967, também trouxe muitos homens à região através da Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste (Sudeco) – autarquia vinculada ao então Ministério do Interior, também no governo Costa e Silva.
Nesse período, os homens que aceitavam deixar o Sul e o Sudeste para levar os ideais nacionais de desenvolvimento à Amazônia e ao Centro-Oeste, ainda desocupados, eram verdadeiros heróis. “Lembro-me de uma matéria de capa de uma revista que tinha uma foto do meu pai. Eles falavam bem dele e o chamavam de desbravador. Mas na matéria ele estava sentado em um toco queimado com um bezerro amarrado e atrás tinha capim. Mas aquilo não era vergonha, aquilo era nossa rotina. Ele era o herói, o pioneiro do desenvolvimento”, conta Carlos Penido.
Foram a partir das iniciativas de financiamento e incentivo para a ocupação do Cerrado, que inclusive atraíram o patriarca da família Penido a Mato Grosso, que os índices do desmatamento dispararam. Em 1989, após os primeiros alarmes internacionais soados na Conferência de Meio Ambiente de Estocolmo, produzida pela Organização das Nações Unidas, foi criado o primeiro sistema de monitoramento do desmatamento no país, realizado pelo Instituto de Pesquisas Espaciais Nacionais (Inpe).
Hoje, segundo dados do próprio sistema, restam em Mato Grosso cerca de 60% de sua cobertura original, sendo mais da metade relativa às regiões de Floresta Amazônica.
“Por muitos anos vivemos com essa imagem de nossos pais como heróis (que derrubaram o que está aberto nas fazendas), e hoje fomos pegos de surpresa com a mudança de discurso. Estão querendo transformar a gente em bandido”, explica Caio.
Além da imagem negativa, essa associação traz inúmeros danos econômicos. A produção de carne lidera as exportações do país e representa cerca de 30% do Produto Interno Bruto de Mato Grosso. Porém, desde que o coro por mais respeito ambiental cresceu, a imagem da produção agropecuária no Estado sofreu um baque.
“O relatório do Greenpeace (A Farra do Boi, 2008) foi um dos primeiros choques. Antes ainda nos considerávamos heróis, mas com esse relatório os frigoríficos se comprometeram a não comprar mais carne da cadeia do desmatamento. E acho que na época (em 2008) não tínhamos informação sobre desmatamento. Não havia sequer o Novo Código Florestal (de 2012). Foi uma estratégia injusta, porém tenho que reconhecer que foi eficiente”, conta Penido.
A medida travou o desmatamento desordenado na época. A questão dos números era um dos problemas até para os produtores, pois muitos desconheciam a velocidade das derrubadas. A busca por mais informações e mudanças que pudessem retirar municípios e propriedades particulares do ‘embargo’ do Ministério Público Federal e do mercado criou alianças inusitadas.
Foi a partir desse momento que surgiu os primeiros diálogos entre ambientalistas e produtores. A motivação foi esse endurecimento dos compradores. “Precisávamos resolver os problemas das fazendas e dos municípios embargados. Foi a primeira vez que ouvimos que as boas práticas ambientais dariam mais valorização ao produto. Infelizmente, conseguimos resolver os embargos, mas a valorização até agora não se concretizou. Muitos (como eu) até investiram muito nesse caminho, ainda não ocorreu”.
A Aliança do Araguaia é resultado de movimento. A iniciativa tem o apoio da ONG The Nature Conservancy Brasil (TNC) e do movimento Carne Sustentável do Campo à Mesa, da ONG Imaflora, e do The Sustainable Trade Initiative, e quer criar uma forma de diagnóstico que ajude os produtores a seguir pelos caminhos da sustentabilidade.
O primeiro passo é um levantamento detalhado das propriedades para ajustá-las às atuais normais ambientais impostas pelo Código Ambiental. O grupo também estimula questões que não são impostas por exigências legais, porém são medidas que podem valorizar a carne no mercado internacional, com os cuidados com o bem-estar animal.
Na fazenda Água Viva, em Cocalinho, uma das propriedades modelo da Liga, a preocupação com o bem-estar animal é um dos atrativos. A propriedade também tem vários modelos de recuperação de áreas degradadas, principalmente nas Áreas de Preservação Permanente (APPs), que podem ser apresentadas aos demais produtores.
Os currais circulares, onde os tratadores dos animais não usam nenhum tipo de manipulação que possa estressá-los, são as estrelas do local. Os animais também não são castrados e o sistema de rotação de pastagem ajuda a preservar o solo e aumentar a produção por arroba.
A falta de valorização das áreas verdes ainda é o gargalo desse processo. “Não existem produtores de carne no mundo, de nenhum país, que tenham as áreas verdes que o Brasil apresenta em sua produção. Temos mais de 50% de nossas matas preservadas e ainda assim somos líderes na produção. Onde estão as florestas da Europa e dos Estados Unidos?”, questiona o produtor Marcos Jacinto. "É muito injusto que justamente os brasileiros ganhem a má fama internacional".
Buscar mecanismos que ajudem na valorização dessa preservação praticada pelas propriedades no Brasil é uma das reivindicações do setor. Uma das possibilidades são os fundos internacionais e promessas de pagamento por desmatamento evitado que também começaram no âmbito das Conferências Mundiais do Clima, em 1992. “É uma bela promessa, mas (também) ainda nada ocorreu. E esse é o nosso temor, os produtores precisam ser pagos por todo o investimento para seguir as novas regras ambientais, o que é muito caro, não pode ficar apenas nas costas do setor”, diz Caio Penido.
Uma das esperanças do grupo é ter acesso a parte dos R$ 160 milhões que serão investidos através da estratégia do programa Preservar Conservar e Incluir (PCI), promovido pelo governo do Estado. Lançada na Conferência do Clima de Paris, COP21, em dezembro de 2015, um primeiro passo do Estado para buscar fundos internacionais para investir na conservação local.
Um dos obstáculos para que os produtores também tenham acesso a esses fundos é justamente a adequação ambiental às exigências legais.
Esse é um investimento que vem dentro do âmbito do protocolo de REED (o mecanismo de pagamento por desmatamento evitado), e que não teria acontecido sem a PCI.
“Nós temos mais de 50% de nossas matas preservadas e somos a maior potência ambiental do planeta. Os produtores daqui não querem mais ser vistos como vilões, eles querem apoio para seguir o Código Florestal, mas que isso seja uma vantagem competitiva que agregue valor aos nossos produtos”, conclui Penido.
Para muitos analistas, o desmatamento evitado pode ser a solução para os produtores de Mato Grosso. Para Steve Schwartzman, diretor de políticas para florestas tropicais do Environmental Defense Fund (EDF), uma das entidades que justamente atua para tirar do papel a política do REED, o PSI pode beneficiar iniciativas como as da Liga do Araguaia.
“Já fizemos inúmeras pesquisas com consumidores. Na hora todos dizem que pagariam pela conservação da floresta se ela estiver diretamente ligada aos produtos, porém, na hora da compra, não é o que vemos. Na verdade, o consumidor procura preço. Minha sugestão são os mecanimos de REED que possam custear a valorização desta floresta em pé. O mais importante é que vocês invistam em ferramentas que possam de fato comprovar que essa preservação está ocorrendo, pois as informações mais comprovadas, quando falamos de eficiência em conservação, estão relacionadas às Terras Indígenas, logo, se conseguissem ferramentas para isso, seria um caminho positivo para muitos fundos internacionais chegarem a Mato Grosso”, diz.
Um dos grandes fundos para esse tipo de iniciativa também faz parte da Conferência do Clima. Desde a Cop-21 de Paris, ficou acertado que os países que já enriqueceram queimando combustíveis fósseis e florestas, como as nações da Europa, devem pagar ao países que ainda precisam crescer pelas emissões evitadas, sejam elas via as matas que não serão convertidas em plantações ou as emissões de combustíveis fósseis. O Fundo do Clima, por exemplo, prevê que os países mais ricos do mundo contribuam para combater a mudança climática com até US$ 100 bilhões por ano a partir de 2020.
“O deadline para os compromissos está chegando e seria pós-2020. E agora a grande pergunta é: quem está pagando pelos serviços ambientais que a floresta provê para a humanidade (como a água e o equilíbrio climático)? São essas pessoas que podem ser beneficiadas com esses fundos”, conclui Schwartzman.