Nos Estados Unidos, por exemplo, essa taxa é de um caso para cada 1 milhão de habitantes, compara a pedagoga e presidente da AbraXP, Gleice Francisca Machado, 38 anos. “A concentração de um grupo de portadores do xeroderma na proporção que temos aqui é raríssimo e faz com que sejamos a maior comunidade com a doença do mundo. Muita gente não desenvolveu sintomas ainda. Por isso, os números podem aumentar. Após a constatação do fato, já recebemos diversos pesquisadores, até mesmo do exterior, intrigados com o caso”, explicou.
A doença é hereditária, ou seja, apenas transmitida de pais para filhos, e ainda não existe uma cura. Sendo assim, os portadores precisam se esconder dos raios ultravioletas (UVA e UVB) gerados pelo sol, pois isso aumenta ainda mais a evolução das manchas na pele e o aparecimento de tumores malignos, segundo informações da AbraXP. Os moradores de Araras já passaram por centenas de procedimentos cirúrgicos e tiveram seus rostos mutilados, sendo obrigados a usar próteses rudimentares, feitas a mão.
“Essa é uma realidade muito difícil para o portador do xeroderma, pois na região em que vivemos o sol é muito forte e a maioria trabalhava na roça. Sendo assim, após a confirmação do diagnóstico, em 2010, elas passaram a tentar se prevenir um pouco mais. Mas ainda enfrentamos muitos problemas”, afirmou Gleice.
A explicação para tamanha incidência da doença na comunidade de Araras são os casamentos consanguíneos, ou seja, entre parentes, que fazem com que o gene defeituoso hereditário seja transmitido. “O primeiro caso na cidade aconteceu há mais de 150 anos. Três famílias que se mudaram para a região nessa época tiveram casamentos de membros entre si, o que gerou um grande parentesco entre os habitantes. Por isso, muitos dos descendentes apresentaram os sintomas e morreram ao longo desses anos, deformados, sem mesmo saber sobre o que sofriam”, diz a presidente da associação.
Dificuldades
O dia a dia de um portador de xeroderma exige tantos cuidados que eles permanecem isolados dentro de casa, com portas e janelas fechadas, e só saem durante o dia para atividades inadiáveis. Mesmo assim, precisam reforçar o uso do protetor solar, usar roupas compridas, óculos escuros e chapéus.
O aposentado Djalma Antônio Jardim, 39 anos, luta contra a doença desde os sete anos de idade, quando as primeiras pintas escuras surgiram na pele. Por conta do xeroderma, ele já perdeu o nariz, o lábio superior, parte da bochecha e um dos olhos. No lugar, usa uma prótese.
“A minha aparência choca demais as pessoas. Morei em Goiânia por dez anos e sentia muito preconceito. Por isso, voltei pra cá, onde todos vivem a mesma realidade. Uma vez eu entrei em um ônibus e sentei ao lado de uma pessoa, que levantou na hora. Acho que ela achou que iria pegar e ficou com medo. Então, é muito difícil viver fora daqui [Araras]”, conta o aposentado.
Segundo ele, as complicações mais graves começaram quando ele tinha nove anos. “Nessa época, eu fiz a primeira cirurgia, mas ninguém sabia direito explicar se era grave. Lembro que enquanto fiquei internado me davam muitas injeções e eu fugia das enfermeiras para não tomá-las, mas esse tratamento não surtiu efeito e as manchas continuaram a aparecer. Desde então, já perdi as contas de quantas cirurgias fiz, mas chuto que são mais de 50”, afirma.
Ele tem outros seis irmãos, sendo que três deles não possuem a doença. Outros três enfrentam, assim como ele, os sintomas do xeroderma. O sétimo morreu em função de complicações do mal. “Ele teve ferimentos graves, muitos tumores internos, e desistiu de lutar. Quando morreu, estava todo deformado e não tinha mais forças para se alimentar. Por isso, ficou deitado em uma cama e morreu seco, de fome e sede”, lamenta.
Djalma é um dos poucos que conseguiu se aposentar pelo Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS) e também vive de parte da renda obtida com uma pequena sorveteria que administra. Todos os familiares moram no povoado e seus arredores, mas ele permanece sozinho em uma casa. “Eu durmo, acordo, assisto televisão. Quando é preciso, saio, vou à igreja, principalmente à noite. Mas faço tudo por aqui. Infelizmente, não posso ter uma rotina como a das outras pessoas e sofro com isso desde pequeno, já que nunca pude brincar do mesmo jeito que as outras crianças”.
Descoberta
O xeroderma pigmentoso começou a ser descoberto pela comunidade em 2005, quando Gleice Francisca Machado percebeu que seu filho Alisson Wendell Machado, na época com dois anos, estava com algumas manchas na pele. Ela e o marido são primos de quarto grau. “Levei o Alisson a uma dermatologista e disse que outras pessoas do povoado tinham a mesma característica. Ela ficou assustada e disse que era impossível, pois se tratava de uma doença rara. Aí, outras pessoas foram analisadas e constataram de que todos tinham o mesmo diagnóstico”, lembra.
Desde então, Alisson tem uma rotina muito diferente das crianças comuns. Atualmente com 11 anos, o menino ruivo e com muitas sardas pelo corpo passa a maior parte do tempo dentro de casa e no comércio da família. Além de um protetor aplicado a cada duas horas, ele também precisa usar blusas de mangas compridas e calças. “É tudo muito difícil, pois tenho que controlá-lo o tempo todo. Ele sabe que não pode ficar exposto ao sol, mas é apenas uma criança e sofre por não poder ter a mesma rotina dos demais. Uma das coisas que ele mais gosta é de cavalgadas, mas elas acontecem durante o dia e não posso deixá-lo ir. Então, eu não sei o que fazer para tentar distraí-lo”, conta a mãe.
Apesar de ter o diagnóstico e saber que a única forma de tentar impedir a evolução da doença é a prevenção, Gleice queria entender mais sobre a doença. Ela passou a pesquisar sobre o tema e o trabalho resultou na elaboração do livro “Nas Asas da Esperança”, que relata o sofrimento diário dos portadores de xeroderma. “As dificuldades enfrentadas por essas pessoas são incontáveis. Elas precisam viver em um ambiente adaptado, com luz especial, e precisam de acompanhamento médico constante. Por isso, decidi que precisava agir e criei uma associação para a cidade, que mais tarde virou nacional, para lutar pelo direito delas”.
Com o apoio do Projeto Rondon, coordenado pelo Ministério da Defesa, e do Ministério Público Estadual de Goiás (MP-GO), Gleice conseguiu formalizar a AbraXP em 2010. Desde então, a associação, que tem portadores filiados em estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Bahia, busca melhorias para a comunidade, desde o fornecimento de protetores solares até as consultas médicas periódicas. “Nesses quatro anos de luta, já conseguimos muitas coisas, mas ainda falta muito. Uma das conquistas foi obter o acompanhamento dos portadores no Hospital Geral de Goiânia [HGG], onde foi criado um laboratório especializado em xeroderma”, afirma.
Uma vez por semana os pacientes viajam para Goiânia para acompanhamento médico. Após diversos pedidos, a AbraXP conseguiu que o governo estadual faça o transporte dos portadores. “O grupo sai daqui por volta das 2h da madrugada e chega à capital pouco depois das 5h. Tudo isso porque eles não podem ficar expostos ao sol. Então, viajam durante a noite. Depois do atendimento, esperam o dia todo no hospital pelo período noturno, quando podem retornar para casa”, conta Gleice.
Para a presidente da AbraXP, o acompanhamento médico em Goiânia é uma das maiores vitória para os portadores de xeroderma, mas ainda existe muito a ser feito. “Não podemos ficar esquecidos aqui, pois as pessoas continuam morrendo. O governo tem que nos ajudar, não só auxiliando essas pessoas com uma pensão, mas também adaptando as casas, escolas e ambientes em que elas precisam estar”.
Outra luta da associação é conseguir que os portadores de xeroderma recebam aposentadoria pelo INSS. “Infelizmente, temos poucos casos de pessoas que conseguiram o benefício. Como não existe uma lei e muitas informações sobre a gravidade da doença, muitos médicos não entendem que elas não podem exercer atividades ao ar livre e que não restam muitas atividades remuneradas em Araras, além do trabalho rural”, afirmou.
Uma esperança para os portadores foi a criação da Portaria nº 199 de 30 de janeiro de 2014, do Ministério da Saúde, que estabelecem diretrizes para assistência às pessoas com doenças raras no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). "Essa medida instituiu desde o acompanhamento médico até incentivos financeiros para custeio dos tratamentos. Esperamos que muita coisa possa mudar a partir de agora. Essa é a esperança dessa comunidade", ressaltou Gleice.
Acompanhamento
Desde 2010, os portadores de xeroderma fazem o acompanhamento com médicos especialistas no HGG. As consultas são realizadas uma vez por semana. A dermatologista que coordena o tratamento, Sulamita Costa Wirth Chaibub, esclareceu que a prevenção ainda é a melhor alternativa para controlar o avanço da doença.
“Os pacientes têm sido acompanhados com rigor na prevenção dos tumores com uso de filtros solares associados a uma enzima, a fotoliase, agente quimiopreventivo, com ação reparadora do DNA lesado. Comumente, existem quatro tipos de lesões malignas ou pré-malignas. Nas lesões pré-malignas e em tipo de tumor maligno, podemos aplicar algumas medicações locais, que é o caso do imiquimode. Nos outros dois tipos de tumores mais graves, a cirurgia é o tratamento. Na verdade, o tratamento do xeroderma pigmentoso ainda se baseia na prevenção e na retirada dos tumores o mais breve possível, com exames periódicos”, afirmou.
Segundo Sulamita, existem alguns estudos em andamento para tentar desvendar a cura para a doença, mas ainda nada de imediato. “Pelas pesquisas atuais, a perspectiva futura de cura deverá se dar ao nível do rearranjo genético. Mas isso ainda deve demorar. Também existem alguns produtos em fase de estudos, como mebutato de ingenol, resiquimode, galato epigalocatequina, ácido betulínico e piroxicano, que estão sendo testados no mundo com resultados promissores em alguns tipos de lesões”, explicou a dermatologista.
No HGG, além de análise do avanço da doença, os pacientes são encaminhados para outras especialidades, de acordo com a necessidade. Quando os tumores são identificados e existe a necessidade da cirurgia, eles são encaminhados também para o Hospital Araújo Jorge, referência no tratamento do câncer em Goiás.
“Todo esse apoio que recebemos é fundamental, mas ainda precisamos de mais assistência. Um dos exames que eles precisam com frequência é a dermatoscopia, que analisa o aumento das manchas, mas o HGG não tem o equipamento para tal. Com isso, os pacientes precisam pagar por ele na rede particular e nem todos têm condições”, conta Gleice.
Procurado pelo G1, o diretor-técnico do HGG, Rafael Nakamura, informou que o Instituto de Desenvolvimento Tecnológico e Humano (Idtech), que administra o hospital, acompanha os pacientes com xeroderma antes mesmo da criação do ambulatório especializado. “Nós também temos outra frente, que é o Projeto Rondon, que monitora a situação dessas pessoas e ajudaram na criação da associação. Sendo assim, sabemos das dificuldades enfrentadas por eles e buscamos medidas para tentar melhorar a qualidade de vida delas. Uma delas foi a criação de uma regulação, que determina o atendimento prioritário delas no HGG”, explicou.
Sobre o exame citado, Nakamura afirma que ele é feito com um equipamento importado, que ajuda a detectar lesões na pele imperceptíveis a olho nu. “Já estamos fazendo cotação para aquisição do aparelho e esperamos que o mais breve possível ele possa atender os pacientes”, disse.
Falta de renda
Conseguir trabalhar e se sustentar é uma das maiores dificuldades de quem tem xeroderma. Deidi Freire de Andrade, 45 anos, conta que foi obrigado a abandonar o trabalho rural por causa da doença. Primo de Djalma Antônio Jardim, ele relata que os primeiros sintomas apareceram aos sete anos de idade. “Desde então, já fiz mais de 100 procedimentos cirúrgicos. Alguns mais simples, mas outros graves para a retirada de tumores, que afetaram do meu nariz, céu da boca, até o olho. Este último perdi por causa de reações da radioterapia”, relata.
Deidi é casado há 11 anos e tem duas filhas de 10 e 7 anos. Até o momento, elas não apresentaram sintomas. “Meu pai e minha mãe eram primos de primeiro grau e acredito que, por isso, tenho a doença. Felizmente, a minha esposa não é do círculo familiar que vive aqui e minhas filhas estão bem”, diz.
Por causa das lesões que sofreu, o aposentado tem dificuldades para falar e apenas consegue ver de um olho, no qual fez uma cirurgia recentemente. “O que sinto mais falta é de poder falar e enxergar direito. Mas espero que encontrem uma cura ou pelo menos um tratamento para amenizar a nossa dor”, concluiu.
Outra portadora de xeroderma, a dona de casa Cláudia Sebastiana Jardim Cunha, 36 anos, diz que pensou muito em não contribuir com a transmissão da doença aos filhos quando casou. “Procurei um marido bem longe daqui, que não tinha nenhuma ligação de parentesco. Hoje tenho dois filhos, de 14 e 15 anos, que não têm a doença, e agradeço a Deus por isso, pois a nossa realidade é dura demais”, conta.
Cláudia, que é irmã de Djalma e prima de Deidi, ainda não precisou fazer nenhum procedimento cirúrgico em função do mal, mas acredita que isso se deve aos cuidados que toma. “Eu já vi muita gente morrer aqui por conta disso, então passei a me cuidar mais e a ficar isolada dentro de casa mesmo. Mas as dificuldades são grandes, pois nem mesmo uma simples foto com flash podemos tirar. Como não temos perspectivas de cura, o jeito é tentar tomar o máximo de cuidado mesmo”, afirma a dona de casa.
G1