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O venezuelano que pedalou até Cuiabá

A imigração de venezuelanos para Brasil começou em 2015, pela cidade de Pacaraima, a 218 km da capital Boa Vista, Roraima (RR). Hoje, há uma média de 50 mil venezuelanos que vieram em busca de um futuro melhor e para fugir da fome que assola mesmo as pessoas com nível superior do país.

No início deste ano, o governo decidiu dar um translado oficial para cerca de 300 venezuelanos que estavam em Roraima. Grande parte destes optou para desembarcar em São Paulo, porém 66 pessoas escolheram Cuiabá como morada.

Porém, nem todos chegaram de avião. Joan Enrique Ostorga Yovera, que também escolheu Cuiabá como moradia para começar a sua vida, viajou de Santarém, no Pará, até a capital mato-grossense de bicicleta.

O corajoso venezuelano é natural de Caracas, tem 29 anos, é casado e pai de uma filha. Ele contou com exclusividade um pouco de sua surpreendente história ao Circuito Mato Grosso, em que narra como enfrentou sol, chuva e os riscos das rodovias brasileiras para buscar uma nova vida.. 

 

Circuito Mato Grosso: Quando você saiu de Caracas e veio para o Brasil?

Joan Yovera: Tem quase dois anos que eu saí da Venezuela, fui direito para Boa Vista, Roraima. Chegando lá, eu consegui documentação legal, carteira de trabalho e CPF.

 

CMT: Por que você saiu da Venezuela e veio para o Brasil?

J.Y.: Saí de lá pela situação, pela necessidade, pela fome que estava passando. O governo do meu país não se importa com ninguém, todos estão passando fome. Crianças, idosos e pessoas jovens, todos estão vivendo essa dificuldade. Tudo isso aconteceu quando o presidente Nicolás Maduro assumiu o poder. Eu lembro bem de como eram as coisas, tínhamos uma vida tranquila, não passávamos fome.

 

CMT: Você passou fome na Venezuela?

J.Y.:  Sim, eu passei fome. Quando isso aconteceu, eu não pensei duas vezes, tive que sair do meu país para não morrer lá. Eu tenho uma esposa de 30 anos, uma filha de seis que falava: “Papai, quero comer frango, presunto” ou algum outro alimento. Era tudo muito triste, eu chorava por não ter alimento para minha filha. Eu saía para os lixos dos supermercados em busca de comida, mas não encontrava. Os alimentos vendidos nos supermercados são muito caros, comida vale ouro.

 

CMT: Nessa época de fome e dificuldades, você não trabalhava?

J.Y.: Eu estava desempregado, não havia trabalho na Venezuela e quando eu conseguia alguma coisa, pagavam muito pouco, não dava para comprar alimentos para minha família. Diante dessa dificuldade e fome, eu decidi mudar e escolhi o Brasil.

 

CMT: Por que você não conseguia trabalho na Venezuela?

J.Y.: No início tinha trabalho na Venezuela, mas depois as empresas começaram a fechar e mandar todos irem embora. Eu saí para muitos lugares em busca de emprego, mas em todos os lugares falavam a mesma coisa: “Aqui não tem trabalho, não tem”. Foi muito difícil, então saí correndo de Caracas para o Brasil. Muitas empresas da Venezuela fecharam as portas, pois o presidente Maduro mandou todos “a la mierda”.

 

CMT: E sua esposa mais sua filha, vieram com você?

J.Y.: Eu saí sozinho, acabei vindo primeiro para o Brasil e elas ficaram lá. Depois de três meses eu voltei para buscá-las, passei duas semanas e voltamos juntos para o Brasil.

 

CMT: Como você chegou ao Brasil?

J.Y.: Eu peguei um ônibus de Caracas até uma cidade chamada Santa Helena, que fica em território venezuelano. Depois fui andando de Santa Helena até chegar na cidade de Pacaraima, no Brasil, andei meia hora, não fica muito longe. Depois, umas pessoas me ajudaram e pagaram um táxi até a capital Boa Vista.

 

CMT: Quando você estava com sua família em Boa Vista (em Roraima), onde ficaram morando?

J.Y.: Ficamos morando na rua, tem um acampamento na praça da cidade. Eu, minha esposa e filha ficamos morando na rua.

 

CMT: Como você fazia para se alimentar em Boa Vista? 

J.Y.: Eu não tinha opção, uma vez eu fui revirar lixo para encontrar alimentos, mas quando os brasileiros me viram mexendo no lixo acabaram me ajudando e falaram: “Ei, vem aqui, pega comida”. Eles também ajudaram minha filha com roupas e falavam que eu deveria procurar um abrigo. Este mesmo brasileiro que me deu comida mostrou uma casa abandonada, então eu fiquei morando lá por seis meses.  Depois disso, eu consegui um trabalho de carteira assinada em uma cooperativa, mas eu recebi apenas dois meses, ficou faltando o resto. Bom, foi com este dinheiro que eu consegui comprar meus alimentos aqui no Brasil. Eu também consegui alimentos em um hospital, eu percebi que no lixo deles tinha muita comida, então falei com a coordenadora, pedi que me doassem o que fosse para o lixo, ela concordou, eu levava para casa e também doava para outros venezuelanos. Tinha um supermercado em Boa vista, chamado Novo Tempo, eu ficava ajudando a limpar cebola e quando eles jogavam as frutas, manga, mamão, melancia e presunto, eu levava para casa, lavava e comia. 

 

CMT: Por quanto tempo você ficou morando na cidade de Boa Vista? 

J.Y.: Fiquei por quase dois anos, depois eu quis sair da cidade, porque é um local pequeno, muito bom, mas tinha muito venezuelano, estava difícil para conseguir trabalho. E também já estava gerando muito preconceito contra a gente. Por isso, eu decidi buscar novas terras, falaram que eu teria que ir para São Paulo, fui perguntando como fazia e fui informado que deveria pegar um barco para chegar ao Pará.

 

CMT: Como você conseguiu chegar ao Pará? 

J.Y.: Eu peguei um ônibus até Manaus, depois eu consegui uma passagem para viajar no barco e chegar até Santarém (PA). Quando chegamos lá, as pessoas do navio falaram que poderíamos descer naquela cidade.

 

CMT: Você fez essa viagem sozinho?   

J.Y.: Não, eu estava com quatro amigos que também são venezuelanos, estávamos viajando juntos.

 

CMT: Depois que vocês chegaram à cidade de Santarém, ficaram por quanto tempo e por que decidiram deixar o local?    

J.Y.: Porque eu queria chegar em São Paulo, então as pessoas de Santarém falaram que tínhamos que chegar em Mato Grosso e depois ir para Mato Grosso do Sul. As pessoas também falaram que era melhor vir para Cuiabá porque é melhor para arrumar trabalho, então fiquei lá por 15 dias e decidi vir embora.

 

CMT: Como você fez para chegar até Cuiabá?  

J.Y.: Eu e meus amigos não tínhamos dinheiro, então a gente começou a vender dindim, chupão, e assim arrumamos dinheiro para comprarmos quatro bicicletas. A gente juntava o que tinha conseguido com as vendas, compramos uma, depois outra, até conseguir uma bike para cada. Compramos bicicletas velhas, as pessoas falavam que não iríamos conseguir chegar, mas eu tinha fé em Deus que ia dar tudo certo.

 

CMT: Quando você saiu de Santarém?   

J.Y.:  Nós saímos de Santarém no início deste mês, eu gravei partes do trajeto e tirei fotos quando estava vindo para Cuiabá.

 

CMT: Você e seus amigos vieram pedalando de Santarém até Cuiabá? 

J.Y.: Nós pedalamos de Santarém até a cidade de Campo Verde (PA), foram 300 km.  Chegamos em um porto de caminhões, pedimos carona e o motorista levou a gente até a primeira cidade, Alta Floresta (MT). Depois disso, conseguimos outra carona que nos levou até a cidade de Sinop.

 

CMT: Durante essa longa viagem, como vocês fizeram para se alimentar na estrada? 

J.Y.: Eu me alimentei com farofa, tinha outra mistura que eu não sei o nome, mas tinha peixe, uma mistura parecida com paçoca. Eu e meus amigos compramos um quilo deste alimento e pagamos R$ 19.00. Além disso, compramos várias garrafas de sucos e muitos litros de água. Teve pessoas na estrada que também ajudaram, paramos em um lugar e o senhor ofereceu comida e também tinha sinal de internet wi-fi. Por Deus, nem acreditei que teria internet naquele lugar. Aproveitamos para mandar uma mensagem para a família.

 

CMT: Depois que você chegaram em Sinop, como fizeram para chegar até aqui?

J.Y.: Nós ficamos na rodovia e seguimos andando por 50 km, estávamos muito cansados, então tive a ideia de escrever em um papel uma mensagem: “Somos venezuelanos, precisamos de carona até Cuiabá”. Pregamos essa mensagem nas costas. Graças a Deus, depois de terem passado tantos caminhões, uma pessoa de bom coração resolveu parar e dar carona. No meio do caminho, eu tive que me separar dos meus quatro amigos, pois no carro que parou não cabiam todos.

 

CMT: Depois de quanto tempo vocês chegaram em Cuiabá?  

J.Y.: Eu cheguei aqui no sábado (14), junto com eu outro amigo e depois os outros amigos que conseguiram carona em outro carro chegaram no dia seguinte.

 

CMT: Durante todo esse período de viagem, onde ficou sua família?    

J.Y.: Minha família ficou em Boa Vista, eu não tive como trazer, mas eu saí para buscar um trabalho, com certeza volto para buscá-las. A gente sempre se fala pelo WhatsApp, todos os dias eu mando mensagem para saber de tudo.

 

CMT: Como ela está sobrevivendo?    

J.Y.: Ela fala que está muito difícil, que precisa pagar aluguel, já tem duas contas de luz e ela não está trabalhando. Eu falei que estou vendo trabalhos aqui e estou tentando conseguir uma forma de ir buscar.

CMT: Por que ela não veio no avião da Força Aérea junto com os outros?  

J.Y.: Ela não conseguiu porque estava morando em um lugar de aluguel que conseguimos. Essas pessoas que conseguiram é porque estavam morando em abrigos.

 

CMT: Sua esposa trabalhava na Venezuela?  

J.Y.: Sim, minha esposa tem uma profissão. Ela é formada em Administração Empresarial, estudou por cinco anos em uma universidade da Venezuela.

 

CMT: Agora que você finalmente chegou a Cuiabá, o que pretende fazer?

J.Y.: Eu quero trazer minha família, mas tenho que encontrar um trabalho porque lá está muito difícil para se alimentar e pagar aluguel.

 

CMT: DO que você tem feito na cidade depois que chegou?

J.Y.: Eu saio para procurar trabalho, mas eu saio bem cedo para aproveitar mais tempo e conseguir chegar em muitos lugares para procurar trabalho. Eu poderia passar o dia todo na rua, mas antes do meio-dia preciso estar de volta para conseguir almoçar. Eu vou na padaria, ouvi dizer que eles precisam de gente, então quero pedir um emprego.

 

CMT: Você pretende voltar para a Venezuela?  

J.Y.: Não quero voltar, enquanto Nicolás Maduro estiver no poder quero ficar aqui no Brasil, quero morrer aqui. Agora eu estou legal no Brasil, tenho documentos, carteira de trabalho e CPF.

 

CMT: Você gosta do Brasil? Já tinha vindo aqui antes?

J.Y.: Eu conhecia a cidade de Boa Vista (RR), é uma cidade pequena, mas muito harmoniosa, eu fui bem recebido. Fui atendido no posto da Polícia Federal, fui bem atendido, com muito respeito e educação.

 

CMT: O que você achou de Cuiabá? 

J.Y.: Sim, pelo pouco que observei, estou gostando, quero agora conseguir um trabalho, vou fazer de tudo para conseguir, quero juntar dinheiro para buscar minha família.

 

CMT: O que você achou do abrigo da Pastoral do Migrante?

J.Y.:  Dou graças a Deus por este lugar, pelo alimento, não tenho do que reclamar, agradeço todos os dias por tudo.

Redação

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Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.

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