No século XVI, Etiene La Boétie já escrevia sobre a imprescindibilidade de se combater a deslealdade vaticinando: “[…] não pode haver amizade onde há desconfiança, deslealdade, injustiça. Entre os maus, quando se reúnem, é um complô e não uma companhia. Eles não se entretêm, entretemem-se. Não são amigos, mas cúmplices” (in LA BOÉTIE, Etiene. Discurso da Servidão Voluntária. São Paulo: Brasiliense, 1982, p.106).
Depois de muitos casos polêmicos decorrentes de delação premiada realizada por investigados, entre os quais está o caso dos conselheiros do Tribunal de Contas de Mato Grosso, partido de uma construção fantasiosa de delator onde somente mentes prodigiosas de autoridades investigativas poderiam acreditar no tamanho concerto de vontades políticas para o tamanho da inexistente atuação criminosa, muitas dúvidas e desconfianças ainda recaem sobre o instituto de persecução criminal.
Sabe-se, pois definido no habeas corpus (HC 90.962), julgado pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que “instituto da delação premiada consiste em ato do acusado que, admitindo a participação no delito, fornece às autoridades informações eficazes, capazes de contribuir para a resolução do crime.” Aqui se encontra a definição jurisprudencial para a delação premiada ou colaboração premiada, outros requisitos vão ser encontrados na Lei Federal 12.850/2013.
Aliás, na referida lei federal estão os benefícios aos delatores, no entanto o mesmo diploma anota que para a sua dosagem se deve levar em conta “a personalidade do colaborador (delator), a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração (delação).
Ocorre que não se pode jamais pensar em termos absolutos de conclusão que o delator numa delação premiada se portará “sempre com honestidade, lealdade e boa-fé”, como consta de diretiva do Ministério Público Federal. Não se pode ser tão ingênuo, tão puro, tão pueril, a não ser que se creia num delator convertido ao bem como aconteceu com Saulo, que depois se transforma em Paulo de Tarso nas Sagradas Escrituras.
Ora, lembre-se que todo delator está negociando – isso mesmo, negociando – com as autoridades sua liberdade processual, sua futura punição e ainda a definição de sua pena e regime de cumprimento. Como confiar cegamente neste delator se não há nenhuma maneira de lhe impor virtudes que não tem. E não tem comprovadamente, tanto que cometeu os graves crimes que busca minorar as consequências em relação a si, seus bens e sua liberdade com a delação pretendida.
Portanto, jamais e em tempo algum se poderá impor ao delator tenha essa esperada “boa-fé”, muito menos por ter sido colocada essa qualificação ou exigência no texto de uma lei ou de um ato administrativo, assim como, com todas as vênias, se poderá esperar e garantir que autoridades responsáveis guardem as informações dele recebidas com o sigilo absoluto, como mostram os vazamentos de informações constantes relatados vez por outra pela mídia.
A grande verdade é que o instituto da delação ou colaboração premiada exige de todos os partícipes muito equilíbrio profissional, não podendo as autoridades se deixar conduzir pela fama de momento do caso, mas sim atuando de forma absolutamente profissional e levando a máxima potência todas as possibilidades de investigação para, antes de tudo, confirmar os fatos delatados e depois oferecer as denúncias cabíveis.
Com isso será possível evitar situações como a dos conselheiros mato-grossenses, punidos injusta e antecipadamente por conta de uma delação que não passou de criações artificiais nas mentes de quem pretendia se safar das graves consequências dos verdadeiros crimes que cometeu. A reparação num caso desses jamais será suficiente para repor os prejuízos de ordem pessoal, familiar e profissional e mesmo que ocorra virá sempre tardiamente, mostrando que o instituto e o sistema penal falharam clamorosamente.
E aqui fica a pergunta: Quis custodiet ipsos custodes? A frase em latim do poeta romano Juvenal, traduzida como "Quem há de vigiar os próprios vigilantes?" cala fundo na espera que as autoridades que acolheram essa delação tomem as medidas esperadas contra aqueles que a fizeram, uma vez que, salvo melhor juízo, a lei assim exige e espera, bem como nunca se esqueçam que delação e deslealdade caminham juntas.
Antonio Horácio da Silva Neto é magistrado e colaborador especial do Circuito Mato Grosso.