Política

Com e sem tornozeleira, réus por corrupção cumprem penas brandas

“Se o homem falhar em conciliar a justiça e a liberdade, então falha em tudo” (Albert Camus).

O monitoramento eletrônico com utilização de tornozeleiras começou a ser usado no Brasil há exatos 11 anos. Foi em maio de 2007 que o juiz da Vara de Sucessão da Comarca de Sucessões de Campina Grande (PB) Bruno Azevedo iniciou essa forma de progressão de pena.

Em Mato Grosso, são 2.826 apenados em regime semiaberto, sob monitoramento, em 33 comarcas. Em tese, eles têm que comprovar trabalho e residência fixos, não podem se ausentar de suas cidades sem autorização da justiça e devem relatar periodicamente suas atividades. Em tese, porque alguns apenados graúdos, como o ex-secretário Marcel Cursi e o ex-deputado José Geraldo Riva, e investigados em prisão preventiva, como o ex-secretário de Segurança Pública de Mato Grosso, Rogers Jarbas, têm alguns privilégios. (Veja a situação do uso das tornozeleiras de vários outros no quadro nesta mesma página)

Todos eles transitam livremente pela cidade, trabalham, frequentam academias e, pelo menos no caso de José Geraldo Riva, deslocam-se livremente. O ex-deputado hoje é corretor de imóveis, viaja ocasionalmente a Brasília e pelo interior do estado desde que o desembargador Juvenal Pereira da Silva, do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT), concedeu a ele a soltura sem utilização de tornozeleira porque, como escreveu na decisão, trata-se de uma pessoa conhecida, assim, a população se encarregaria de fiscalizá-lo.

Situação bem diferente da que vivem os 11.500 apenados em regime fechado no sistema prisional do Estado ou da maioria dos 2.826 que estão em semiaberto. Ainda que em casa, eles seguem uma série de restrições, como ter que ficar onde estiverem no momento em que a bateria da tornozeleira descarregar, não poder estar fora de casa entre 18h e 6h da manhã, não poder viajar e ter que ir prestar contas ao Judiciário sobre todas as suas atividades semanais, quinzenal ou mensalmente, a critério do juiz.

Regra subjetiva

A lei no Brasil é pouco precisa sobre quem deve usar a tornozeleira em especificidade, apesar de ter uma regra genérica. O advogado criminalista Eduardo Mahon explica que em Mato Grosso não existe sistema semiaberto, pois não há colônia penal.

“Não tem a pessoa só dormir (no cárcere) aqui. O que acontece geralmente, depois da compra maciça das tornozeleiras, é a pessoa ser liberada com a obrigação de comparecer uma vez por mês em juízo, fazer um relatório, algum serviço social etc. e tal, mas não pode mais ficar em sistema fechado; como não tem colônia penal, a pessoa é controlada via tornozeleira”.

Nos casos de Marcel de Cursi e Riva, Mahon explica que ambos não estão cumprindo pena, têm medidas cautelares contra eles, mas conseguiram contracautelas, a liberdade com determinadas condições. “Eu não sei quais são, mas deve ser comparecer em juízo, não faltar a nenhuma audiência… Por que não estão cumprindo pena? Porque o Tribunal de Justiça ainda não confirmou a condenação deles, então, eles estão em grau de recurso apenas”, continua o advogado.

A legislação brasileira diz que ninguém pode ser preso antes de condenação em segunda instância (a polêmica em torno da prisão do ex-presidente Lula trouxe o assunto à baila), porém pouco se fala sobre o fato de, por exemplo, mais de 52,53% dos presos em regime fechado em Mato Grosso serem de pessoas que sequer foram condenadas em instância alguma. Presos “preventiva ou provisoriamente”, assim seguem durante anos, décadas.

“Quando você é condenado, não começa a cumprir pena. Vai ter recurso. Perdeu o recurso? Vai ter embargo. Perdeu o embargo? Uma nova diretiva do STJ diz que pode começar a fazer a execução provisória da pena. Só aí começa a cumprir pena”, explica Mahon.

Cumprimento da lei, benefício ou contradições do exercício jurídico, fato é que isso não acontece com gente como P., 34 anos, morador do bairro Santa Isabel, que faz uso da tornozeleira eletrônica após conseguir liberdade provisória para responder a um processo por tráfico de drogas (ele estava com oito trouxinhas de pasta-base quando foi preso, próximo à sua casa, no meio de 2017, mas disse à reportagem que era pra consumo próprio).

A justiça o enquadrou como flagrante pela posse da droga. Passou por audiência de custódia e foi liberado, mas com a condição de usar a tornozeleira, se apresentar ao fórum com um relatório de suas atividades legais e restrições de horário. Também não pode frequentar bares, boates ou danceterias nem sair de casa nos finais de semana ou feriados.

Como ele, também vive outro conhecido, M., 37 anos, preso por furto no início deste 2018 e com situação agravada porque a ex-esposa o denunciou por ameaça durante uma discussão em casa. Não a agrediu fisicamente, mas, bêbado, xingou a então esposa, que conseguiu uma medida protetiva. Agora ele não pode ficar a menos de 750 metros de distância da casa onde morava, pois a outra unidade eletrônica, que fica com ela, é ligada à dele, e vibra se ele entrar nesse perímetro.

Os dois fazem parte de outra estatística do Ministério da Justiça: como 64% dos encarcerados do Brasil, ambos são negros e pobres e, diferente de alguns nos bairros periféricos (veja box nesta mesma página), sentem constrangimento e incômodo com o uso do aparelho. Outros três utilizadores de tornozeleira eletrônica são bem mais famosos, mas também passam pelos percalços deles quando as baterias acabam, por exemplo, à parte serem ex-governador (Silval Barbosa), terem um título de comenda outorgado pela Assembleia Legislativa (João Arcanjo Ribeiro) ou serem ex-secretários de governo (Eder Moraes).

No entanto, o problema da bateria e os relatórios ao fórum são as únicas semelhanças. Algumas diferenças saltam aos olhos quando se comparam os cinco monitorados pela justiça mato-grossense. A primeira é o local onde ligam suas tomadas, pois Silval Barbosa mora num apartamento um por andar no Jardim das Américas, João Arcanjo Ribeiro passa a maior parte do tempo numa fortaleza no bairro Boa Esperança ou em uma de suas fazendas e Eder Moraes vive confortavelmente no condomínio Florais Cuiabá.

A segunda é que o primeiro, Silval Barbosa, foi condenado a 13 anos e sete meses de prisão por liderar uma organização criminosa que desviou mais de R$ 2,5 milhões dos cofres públicos, Arcanjo recebeu sentença de 19 anos por mandar matar um jornalista e Eder Moraes cumpre pena de 24 anos de prisão por corrupção e peculato.

Em tempo: os dois réus graúdos que respondem em liberdade citados no começo da matéria e não usam tornozeleira eletrônica também são condenados: José Geraldo Riva a uma pena total de 70 anos de prisão após confessar o desvio de R$ 9,3 milhões da Assembleia Legislativa por meio de um esquema de anos e Marcel de Cursi tem uma condenação de 12 anos e um mês de prisão inicialmente em regime fechado por integrar organização criminosa e por prática de concussão.

Para o advogado de defesa de Riva, Mário Ribeiro de Sá, não se trata de um privilégio o fato de o ex-deputado não precisar reportar suas atividades à justiça ou usar tornozeleira (em decisão do desembargador Juvenal Pereira da Silva, do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT).  “Não é privilégio. A justiça assim decidiu. Ele não está em regime (semiaberto). A doutora Delma concedeu-lhe o direito de recorrer em liberdade e o cumprimento da pena ainda não se iniciou”.

Para Mahon, questionado se não deveria haver uma regra para todos, trata-se da ampla contradição das decisões judiciais, mas em breve resumo, antes da execução penal, a tornozeleira é colocada como medida de contracautela à prisão, a exceção das exceções, contracautelarmente usa-se a tornozeleira para casos que o juiz ache necessário, há casos em que não acha, depois do cumprimento da pena, a tornozeleira geralmente é utilizada em sistemas de regime semiaberto, justamente porque não tem colônia penal em Mato Grosso.

Mato Grosso, o estado da liberdade

“Mato Grosso não tem colônias agrícolas ou similares para cumprimento de penas no regime semiaberto, de certa forma, acaba sendo atrativo para detentos de outros lugares virem cumprir pena por aqui”, essa foi a análise feita pela promotora de Justiça Josane Fátima de Carvalho Guariente, durante uma coletiva realizada nesta quarta-feira (25) na sede da Polícia Civil para explicar a Operação Regressus, que apura um esquema de progressão fraudulenta das penas de reeducandos.

De acordo com a promotora, o sistema de tornozeleira sem a necessidade de prisão é um tema complexo que precisa ser colocado em debate para que a justiça passe a atuar de forma mais punitiva para quem cometer atos ilícitos.

“Os presos ficam monitorados, porém não ficam recolhidos em uma unidade prisional, existem opiniões contra e a favor, existem os que defendem a colônia e que o regime semiaberto dessa forma não funciona, mas a discussão se abre para isso e de uma forma mais contundente, e existe uma ação civil pública proposta pero Ministério Público (MP) que iniciou em 2008 e foi concluída agora em 2018, que determina que o Estado de Mato Grosso viabilize definitivamente os regimes de pena para o cumprimento do regime semiaberto”, informou Josane.

“Vejo com muito bons olhos que agora, diante de toda essa situação, possamos realmente discutir esse assunto, e possamos estar bem próximos da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh) do Estado e de todos que demonstram interesse em trabalhar em união”, completou.

A Operação Regressus revelou um esquema de desvio de recursos para pagamento destinado à realização de laudos criminológicos para progressão de regime em que presos que progrediram usaram atestados ideologicamente falsos e declarações de trabalho em empresas de fachada, além de atestados de cursos falsos e diplomas de emprego idem.

De acordo com o juiz da Vara de Execuções Penais de Cuiabá, Geraldo Fidelis, a cada três dias de trabalho há a remissão de um dia de pena e a cada 12 horas de curso ou estudo, é reduzido um dia no cumprimento da sentença.

Havia suspeita de que as escolas estavam emitindo atestados ideologicamente falsos, pois em alguns constavam 4.400 horas, correspondendo a quase um ano de pena remida. Em uma incursão noturna, realizada por investigadores do Grupo de Controle ao Crime Organizado (GCCO), com permissão do juiz Geraldo Fidelis, em 100 processos analisados foram constatados que 34 apresentavam atestados com provável suspeita de falsidade ideológica.

 “O reeducando passa do regime mais gravoso, no caso o regime fechado, para o semiaberto ou aberto, utilizando atestados de estudos e de trabalho falsos. Tivemos todo o apoio da 2ª Vara no levantamento dessas informações e verificamos algumas instituições que estariam, supostamente, confeccionando esses atestados ideologicamente ou materialmente falsos. O objetivo das buscas de hoje é justamente nesse sentido, de verificar se essas empresas teriam lastro para justificar os atestados juntados aos autos”, explicou o delegado da gerência de Combate ao Crime Organizado, Diogo Santana.

Marcelo Vip e suas fraudes no semiaberto 

Um dos primeiros detentos a fazer o uso de tornozeleira eletrônica no Estado foi Marcelo Nascimento da Rocha, 42, conhecido por muita gente como “Marcelo Vip”. O réu deixou a Penitenciária Central do Estado (PCE) em março de 2014 fazendo uso do aparelho pelo qual é monitorado 24 horas por dia.

Tal benefício foi concedido a Marcelo Vip após comprovar que tinha trabalho. De acordo com a justiça, ele informou que possui três empresas em seu nome e se apresenta como promotor de eventos, inclusive já realizou diversos shows nacionais de rock na capital, depois de conseguir a liberdade provisória.

Marcelo foi um dos alvos da Operação Regressus que apontou que o detido teria se aproveitado de atestados duvidosos e também apresentado declarações de trabalho em empresas que não tiveram os endereços localizados fisicamente, podendo ser de fachada.

Com a suspeita, a investigação chegou a cinco empresas supostamente de fachada ligada aos ex-presidiários Marcelo Vip e Márcio Batista da Silva, o “Dinho Porquinho”, sendo uma a empresa FB Brasil, e outra a empresa RMX Comércio Representações Serviços Ltda, esta última tem como sócio o filho de Dinho Porquinho. Um dos sócios da RMX possui uma empresa no Rio de Janeiro, a UP Service Consultoria Gestão em Negócio, que aparentemente também é de fachada.

“Isso configura fraude. Tentaram induzir a erro o juízo. Isso retira completamente dessas pessoas a progressão de regime. No momento da progressão, é necessário observar dois requisitos, o objetivo é que o tempo de cumprimento da pena se reduza. Mas não basta, tem que ter o mérito, requisito subjetivo. Tem que comprovar atividade lícita e outros tantos. Uma vez que os documentos utilizados não são verdadeiros, não há direito a progressão, com base nisso há regressão”, esclareceu a promotora Josane Guariente.

A promotora ainda esclareceu que após a operação Regressus Marcelo deverá novamente ser encaminhado ao presídio e permanecer em regime fechado. Há inclusive a possibilidade de ele ser transferido de Cuiabá.

“Com a feitura dos relatórios elaborados pela GCCO, tivemos elementos suficientes para requerer a regressão do recuperando, que deve permanecer definitivamente em regime fechado, com a possibilidade de ser recambiado a seu estado de origem”, acrescentou Josane.

Marcelo chegou a Cuiabá em 2013, no regime fechado, e atualmente estava cumprindo pena de livramento condicional. Ele tem condenação de mais de 34 anos. Antes de ser transferido para Cuiabá, já havia passado por 11 estados.

Questionado sobre o fato de Marcelo Vip ter condenação por mais de 10 crimes e estar em liberdade, o juiz Geraldo Fidelis explicou que ele cumpriu os requisitos para que tal benefício lhe fosse concedido.

“Ele (Marcelo) passou por 11 estados e, quando cheguei, em 2013, em Cuiabá ele já estava aqui, e acho que ele veio de Rondônia, mas acontece que todos que estão em regime fechado hoje, por exemplo, Fernandinho Beira-Mar e Marcola serão colocados em liberdade algum dia. Nosso sistema legal e a lei dizem isso: alcançando tempo necessário (requisito objetivo), alcançando o requisito subjetivo do exame psiquiátrico, no caso deles, determina-se a progressão de regime, e assim foi”, explicou Fidelis.

“Foi observado pari passu esse direito, felizmente ou não, a lei determina isso, progressão de regime, e ele ganhou a progressão. Observa-se que muito desse direito ele alicerçou em trabalhos ou estudos dos quais está sendo investigada agora a veracidade, daí eu, acolhendo pedido do Ministério Público, determinei a prisão dele ontem (terça-feira, 24) para regressão de regime, após trabalho da GCCO que demonstrou que as empresas em que ele dizia trabalhar eram inexistentes”, completou o magistrado.

O famoso estelionatário ganhou notoriedade nacional ao se passar por várias outras pessoas, empresários e artistas na maioria, como um dos cofundadores da companhia Linhas Aéreas Gol e um dos guitarristas da banda Engenheiros do Hawai. Sua fama no mundo criminal lhe rendeu até perfil na enciclopédia livre, o Wikipédia, além de um documentário e um filme no qual o ator Wagner Moura interpreta Marcelo.

Inversão de valores no uso de tornozeleiras

A polícia vem investigando a venda de falsas tornozeleiras eletrônicas no Shopping Popular da capital e também em sites e redes sociais; moradores de bairros periféricos fazem uso do equipamento para ganhar notoriedade e “respeito” dos moradores.

Se de um lado a população dos bairros nobres ou mais centralizados recrimina ou age com preconceito ao uso do equipamento, em bairros de classe econômica e social mais baixa o uso de tornozeleira tem se tornado comum e atrai a atenção do sexo oposto.

“Em bairros periféricos, muitos jovens têm usado tornozeleira falsa com o intuito de chamar a atenção das meninas, que ainda se sentem atraídas por esse tipo de pessoa, que querem viver um mundo de aventura, e os jovens, sabendo disso, acham que conseguem um respeito dentro da comunidade”, informou um policial militar do setor de inteligência que não se identificou pelo cargo que ocupa na instituição.

Em outubro de 2017, o Circuito Mato Grosso noticiou a morte de Fernando Gonçalo Conceição Lucio, 40, a tiros, na Avenida Miguel Sutil, no bairro Jardim Paulista, em Cuiabá. A vítima fazia uso de tornozeleira eletrônica.

Porém, ao ser consultado no sistema do Ciosp, Fernando não apresentou antecedentes criminais, mesmo fazendo uso de tornozeleira eletrônica. Em contato com o sistema de monitoramento, a equipe disse não saber por que ele estava com o equipamento, já que não foi achado delito em desfavor da vítima.

Redação

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Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.

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