Opinio Juris

Breves apontamentos sobre a análise jurisprudencial da procuração in rem suam

Resumo

            A procuração em causa própria ainda suscita muita discussão no âmbito dos órgãos judiciários monocráticos e colegiados, tendo em vista que a própria doutrina civilista tem apresentado divergência a respeito da sua natureza jurídica com a existência de três principais correntes de pensamento. A pretensão deste artigo é fazer a sua verificação diante de um caso concreto julgado pela Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais com a aplicação na atualidade da doutrina encampada pela jurisprudência referente a não correspondência à cessão de direitos ou a título translativo de propriedade.

1. Do Caso Concreto

O recorrente interpôs recurso inominado visando reformar sentença de primeira instância que não acolheu embargos à execução, a fim de que fosse declarada a sua ilegitimidade de parte, pois não seria o proprietário do imóvel, sendo assim afastada o seu responsabilidade do sobre as despesas condominiais.

O fundamento de sua ilegitimidade estaria no fato de ter outorgado procuração em causa própria para o atual possuidor direto do apartamento, o que transferiria a propriedade do bem imóvel com todos os consectários legais. 

A sentença do juízo a quo afirmou a sua legitimidade para responder a cobrança, assentado no fato de que não foi juntado o contrato de compra e venda do imóvel e ainda que a matricule e escritura pública vinculam o imóvel ao nome do recorrente, decorrendo daí a sua responsabilidade como executado com relação ao pagamento da taxa condominial por se tratar de obrigação propter rem.

A Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais por unanimidade negou provimento ao recurso inominado entendendo ser a procuração em causa própria não correspondente à cessão de direitos ou a título translativo de propriedade.

2. Da procuração in rem suam ou procuração em causa própria e os posicionamentos doutrinários

Instituto originário do direito romano, incorporado ao direito francês e ao ordenamento português, por conta dessas influências constou das Ordenações Filipinas (livro III, título XLV), no Código Civil de 1916, no art. 1.317, inciso I, e no Código Civil de 2002, art. 685, conforme se pode verificar das lições contidas no Tratado do Mandato e Prática das Procurações, 2ª edição, Curitiba: Editora Guaíra Ltda. 

Assim sendo, no nosso ordenamento jurídico atual a procuração em causa própria se encontra definida pelo art. 685 do Código Civil de 2002, que está topograficamente inserido na Seção VI (Da Extinção do Mandato) do Capítulo X (Do Mandato) do Título VI (Das Várias Espécies de Contrato). O seu teor é o seguinte:

Art. 685. Conferido o mandato com a cláusula “em causa própria”, a sua revogação não terá eficácia, nem se extinguirá pela morte de qualquer das partes, ficando o mandatário dispensado de prestar contas, e podendo transferir para si os bens móveis ou imóveis objeto do mandato, obedecidas as formalidades legais. 

Lida a dicção do dispositivo legal que define a procuração em causa própria é preciso deixar assentado que existe divergência quanto a natureza jurídica do instituto  na doutrina, podendo ser definidos três posicionamento sobre a temática, cada um com portentos fundamentos.

Sinteticamente, passa-se a citar os posicionamentos, tendo em vista o escopo deste artigo, no qual não se pretende esgotar o tema, mas apenas apresentar um singelo estudo de caso de julgado da Turma Recursal dos Juizados Especiais que se debruçou sobre a lide a ser dirimida sobre essa matéria. 

O primeiro posicionamento é no sentido de que se trata de uma procuração que permite a transferência do poder de dispor sobre determinado bem ou obrigação. O segundo posicionamento afirma que a procuração em causa própria ou nome próprio corresponde a instrumento de cessão de direitos pessoais. E o terceiro posicionamento é que a procuração em causa própria ou nome próprio teria como efeito até mesmo a transferência da propriedade. 

Assim visto, inicialmente é necessário verificar os conceitos de mandato e procuração. Para tanto, vale a visita ao mestre Orlando Gomes, que distingue mandato, representação e procuração. Segundo ele, “mandato é a relação contratual pela qual uma das partes se obriga a praticar, por conta da outra, um ou mais atos jurídicos”. 

É, pois, um contrato com obrigações e regulamentações dos interesses dos contratantes, sendo certo que o mandatário necessita a outorga do poder de representação do mandante para que possa cumprir o avençado. A representação, in casu, projeta-se exteriormente para dar a legitimidade ao mandatário para contratar em nome do mandante, inclusive para os efeitos jurídicos referentes ao patrimônio deste último. 

O ato jurídico unilateral realizado pelo mandante é que atribui esse poder de representação, não se vinculando necessariamente ao mandato e, mais do que isso, tem existência independente da relação jurídica estabelecida entre quem o atribui e quem o recebe. Por sua vez, a procuração seria o instrumento do ato concessivo de poderes, mas tecnicamente se diz que seria um vocábulo próprio para sua definição.

 Daí porque, sintetizando, o mandato seria um negócio jurídico bilateral, enquanto a procuração corresponde a instrumento jurídico unilateral e independente, segundo o qual se transmite o poder de representação. Essa distinção é feita por Pontes de Miranda, verbis:

PRECISÕES CONCEPTUAIS. – Quando o Código Civil diz, no art. 1.288, 2.a alínea, que a procuração é o instrumento do mandato, não faz da procuração a forma, o documento do mandato; apenas se referiu ao que mais acontece: fazer-se a procuração para que mais facilmente se exerçam os poderes a que alude o mandato e podem ser diferentes daqueles que se mencionam no escrito ou no contrato oral de mandato. Não há a essencialidade de se passar a procuração (= outorgar, unilateralmente, poderes), de modo que há mandato sem procuração e há procuração sem mandato. A procuração, conforme temos frisado, é negócio jurídico unilateral, abstrato. Se, no mesmo instrumento (na mesma forma!), se dão os poderes, unilateralmente, e se conclui o contrato de mandato, o que exige a assinatura dos dois figurantes, porque se trata de negócio jurídico bilateral, é outro problema, que se reduz à afirmação de se terem posto no mesmo escrito os dois negócios jurídicos. No mesmo “instrumento” (no sentido técnico), poder-se-iam inserir três ou mais negócios jurídicos diferentes, como o contrato de advogado, o contrato de mandato e o negócio jurídico unilateral de procuração. Procuração não se aceita. Quando se diz que o outorgado “aceita a procuração”, apenas, sem termos próprios, se declara que o outorgado aceitou e se fêz mandatário, ou o advogado aceitou o contrato de advocacia. Nos autos, por exemplo, o juiz, que verifica quais os poderes do procurador judicial, nada tem com o que se concluiu como contrato de mandato, ou como contrato de advocacia, entre o outorgante e o outorgado (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: direito das obrigações, gestão de negócios alheios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, Tomo XLIII, 2012. p. 186). 

Aliás, para essa confusão o art. 685 do Código Civil de 2002 contribui quando afirma se tratar “a procuração é o instrumento do mandato”. Em razão dessa confusão de termos sobre os institutos da representação e mandato, os doutrinadores tem dito que o termo “procuração”, em virtude de sua repetitiva utilização, assumiu uma plurissignificação, embora, tecnicamente, deva ser compreendido como um negócio jurídico unilateral de outorga de poderes (Gagliano, Pablo Stolze e Pamplona Filho, Rodolfo. Mandato, Procuração e Representação no Novo Código Civil Brasileiro. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, São Paulo, n. 50, set./out. 2012). 

Retornando a procuração em causa própria, tem-se que outorga poderes de representação, de maneira irrevogável, com a distinção de que o outorgado os exerce de acordo com seu próprio interesse e sem a necessidade de prestar contas ao outorgante. Observe-se que a diferença para a procuração tradicional é que na procuração em causa própria o outorgado atua no seu interesse, enquanto na tradicional o outorgado deve agir no interesse exclusivo do outorgante (Nery, Rosa Maria de Andrade. Instituições de direito civil [livro eletrônico]: das obrigações, dos contratos e da responsabilidade civil, v. II. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022). 

Como lecionou Pontes de Miranda, na procuratio in rem propriam, verbis:

“o que se transfere não é o direito de crédito, ou a propriedade, ou outro direito transferível: é o poder de transferi-lo, com todo o proveito e dano desde o momento em que se deu a procuração em causa própria”.  Trata-se, pois, de direito formativo dispositivo, no qual não há a “transferência ou a constituição do direito de que se pode dispor”, mas a “transferência ou a constituição do poder de dispor do direito como seu” (Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: direito das obrigações, gestão de negócios alheios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, Tomo XLIII, 2012. p. 239-240). 

Decorre daí que a procuração em causa própria dá ao mandatário apenas o poder de dispor, no seu próprio interesse, sobre determinado direito (real ou pessoal), cuja titularidade e propriedade, no entanto, permanecem com o mandante, sem ocorrer a transferência da propriedade de bem, pois fica na dependência de outro negócio jurídico. 

Observe-se que o próprio art. 685 do Código Civil de 2002 faz ressalva de que o mandato conferido com a cláusula “em causa própria”, confere poderes ao mandatário a “transferir para si os bens móveis ou imóveis objeto do mandato, obedecidas as formalidades legais”, o que denota existir atos distintos de transmissão de poderes e da propriedade.

 Nesse sentido é válido voltar às lições de Pontes de Miranda:

“o procurador em causa própria tem de exercer o poder que se lhe outorgou; se quer adquirir, tem de representar o outorgante, em contrato do representante consigo mesmo; se quer alienar a outrem, representa o outorgante na alienação e transmissão da propriedade e da posse, se a tem” (Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: direito das obrigações, gestão de negócios alheios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, Tomo XLIII, 2012. p. 232). 

Portanto, força reconhecer não ser correto concluir que a procuração em causa própria possa transferir, diretamente, a propriedade de determinado bem, seja esse de que natureza for, uma vez que se incorreria em desrespeitar as disposições legais a respeito das suas transmissibilidades, atentando contra o sistema de registro público nacional.

E aqui, apenas para o necessário registro, sabe-se que a transmissão da propriedade somente ocorre por meio do registro do título translativo no Registro de Imóveis, conforme prescrito no art. 1.245, § 1º, do Código Civil de 2002, que giza:

Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis. 

§1º Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.

 Ora, a procuração in rem propriam é o instrumento inicial de legitimidade que serve apenas para ingressar no Registro de Imóveis com intenção de transferir a titularidade dominial, no entanto, é mister que se formalize a escritura pública de compra e venda com base nos seus poderes constituídos para ser alcançado tal desiderato. 

Desse modo, analisados rapidamente os três posicionamentos doutrinário citados no início se tem como conclusão a procuração em causa própria atualmente não corresponde a título translativo de propriedade, haja vista seus contornos jurídicos como instituto de direito disciplinada pela atual legislação civil. 

3. Do Posicionamento da Jurisprudência quanto à procuração em causa própria

O que se afirmou em relação às divergências da doutrina é válido para indicar que de igual forma houve divergência na jurisprudência pátria, de acordo com os precedentes dos tribunais superiores os quais se passa a informar de forma mais minudente.

Começa-se pelo Pretório Excelso que inicialmente deu a procuração em causa própria o status de instrumento de compra e venda e, até mesmo, um potencial de transmitir a propriedade de bem (RE 18678, 2ª Turma, DJe 8/1º/1953 e RE 25629/SP, Tribunal Pleno, DJe 3/10/1957). Decidiu também que “a procuração em causa própria, antes de ser transcrita, não é meio de transmissão de domínio” (RE 35061, 1ª Turma, DJe 8/5/1958). 

Ainda, a Suprema Corte por sua Segunda Turma em julgamento sob a relatoria do Ministro Antonio Villas Boas entendeu que a procuração em causa própria poderia valer como título translativo da propriedade imobiliária se contivesse os elementos essenciais da compra e venda (coisa, preço e consentimento) (RE 25.814/SP). 

Abaixo cita-se a ementa para conferência:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO. A PROCURAÇÃO EM CAUSA PROPRIA NÃO PODE SER CONSIDERADA TÍTULO TRANSLATIVO DE PROPRIEDADE, SE NÃO CONTEM OS ELEMENTOS ESSENCIAIS DA COMPRA E VENDA OU DE QUALQUER OUTRO NEGÓCIO CAPAZ DE PRODUZIR A TRANSFERENCIA DOS BENS, DE UM PATRIMÔNIO PARA OUTRO. IMPROCEDENCIA DO EXECUTIVO FISCAL, TENDO POR BASE UMA OUTORGA DE PODERES PARA A CESSÃO DE UM COMPROMISSO, DE AÇÕES DE UMA PESSOA JURÍDICA OU DE LOTES. (STF – RE n. 25.814/SP, Relator Ministro ANTONIO VILLAS BOAS, Segunda Turma, DJ 5/12/1957). 

No mesmo rumo, o acórdão proferido pelo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal na análise da AR 430/DF, relatada pelo Ministro Amaral Santos, com a seguinte ementa: 

AÇÃO RESCISÓRIA JULGADA IMPROCEDENTE. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE DE PARTE REJEITADA. A PROCURAÇÃO EM CAUSA PROPRIA, DESDE QUE CONTENHA OS REQUISITOS DA ESCRITURA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS, VALE POR ESTA. A TRANSCRIÇÃO DA ALIENAÇÃO PODE DAR-SE APÓS O FALECIMENTO DO MANDANTE, CONFORME AUTORIZA O ART. 233, DO DEC. 4.857/39, UMA VEZ QUE É ATO UNILATERAL. (STF. AR n. 430/DF, Relator Ministro AMARAL SANTOS, Tribunal Pleno, DJ 5/9/1969) 

Noutro julgamento também a Segunda Turma da Suprema Corte, sob a relatoria do Ministro Moreira Alves, consignou que a procuração em causa própria não apenas outorga poderes de representação, mas igualmente atribui direito ao outorgado (RE n. 83.946/PR).

Outros há sobre a temática como os que se colacionam a seguir:

MANDATO IRREVOGAVEL. INEFICÁCIA DA RETRATAÇÃO SE CONTÉM MEIO DE ULTIMAR NEGÓCIO DEFINIDO DO INTERESSE DE OUTREM. E NULA A RETRATAÇÃO DE MANDATO EM CAUSA PRÓPRIA, IRREVOGAVEL, CONFERIDO EXCLUSIVAMENTE PARA ULTIMAÇÃO DE NEGÓCIO JURÍDICO BILATERAL DO EXCLUSIVO INTERESSE DO MANDATARIO (C.C., ART. 1317, I E II). EM TAIS CASOS, A REVOGAÇÃO UNILATERAL NÃO SE RESOLVE EM PERDAS E DANOS, PORQUE SE CONTAMINA DE EFICÁCIA COMPLETA. PRECEDENTES: RE 57.695 – PR, RTJ 33/540; RE 50.052 -BA, RTJ 47/174. (STF – RE n. 69.424/SC, Relator ALIOMAR BALEEIRO, Primeira Turma, DJ 5/10/1973).

PROCURAÇÃO EM CAUSA PRÓPRIA. IRREVOGABILIDADE. O ART. 1317 DO CÓDIGO CIVIL ESTATUI QUE A PROCURAÇÃO EM CAUSA PRÓPRIA E IRREVOGAVEL. ASSIM, NULO E O ATO DE REVOGAÇÃO DE TAL MANDATO. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO DOS ARTS. 1590 DO CÓDIGO CIVIL E 87- XIV-B DA LEI 4215/63. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO, EM PARTE. (STF – RE n. 107.981/GO, Relator Ministro FRANCISCO REZEK, Segunda Turma, DJ 12/12/1986).

Modo outro, o Superior Tribunal de Justiça se posicionou de duas formas. A primeira, indicando a possibilidade de a procuração em causa própria constituir “negócio oneroso, com transmissão da posse” (REsp n. 4.589/PR, 4ª Turma, DJe 18/11/1991 e REsp 303.707/MG, 3ª Turma, DJe 15/4/2002), bem como concluiu, em período posterior, pela ineficácia da estipulação em face de terceiros, quando inexistente o registro da avença (REsp 1.269.572/SP, 3ª Turma, DJe 9/5/2012). 

O Tribunal da Cidadania também assentou:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. OMISSÃO E CONTRADIÇÃO. INEXISTÊNCIA. PROCURAÇÃO EM CAUSA PRÓPRIA. NEGÓCIO JURÍDICO UNILATERAL. PODER DE REPRESENTAÇÃO DO OUTORGADO, EM SEU PRÓPRIO INTERESSE. TRANSMISSÃO DE DIREITOS REAIS OU PESSOAIS, EM SUBSTITUIÇÃO AOS NECESSÁRIOS SUPERVENIENTES NEGÓCIOS OBRIGACIONAIS OU DISPOSITIVOS. INEXISTÊNCIA. […] 2. A procuração em causa própria (in rem suam) é negócio jurídico unilateral que confere um poder de representação ao outorgado, que o exerce em seu próprio interesse, por sua própria conta, mas em nome do outorgante. Tal poder atuará como fator de eficácia de eventual negócio jurídico de disposição que vier a ser celebrado. Contudo, até que isso ocorra, o outorgante permanece sendo titular do direito (real ou pessoal) objeto da procuração, já o outorgado apenas titular do poder de dispor desse direito, sem constituir o instrumento, por si só, título translativo de propriedade. (REsp n. 1.345.170/RS, relator Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Quarta Turma, julgado em 4/5/2021, DJe de 17/6/2021) 

DIREITO CIVIL. NEGÓCIOS JURÍDICOS. INVALIDADES. CESSÃO DE USO DE TÍTULO DE OPERADOR ESPECIAL DA BOLSA DE VALORES. CONSTITUIÇÃO DE MANDATO COM CLÁUSULA “EM CAUSA PRÓPRIA” COMO FORMA DE GARANTIA. ALIENAÇÃO DO TÍTULO PELO CESSIONÁRIO/MANDANTE A TERCEIRO DE BOA-FÉ. 1.- O beneficiário de mandato com cláusula “em causa própria”, tem garantido, ante quem lhe outorgou esse mandato, o direito subjetivo de transferir para si os bens móveis ou imóveis objeto do contrato, desde que obedecidas as formalidades legais. (REsp n. 1.269.572/SP, relator Ministro SIDNEI BENETI, Terceira Turma, julgado em 17/4/2012, DJe de 9/5/2012.) 

CIVIL E PROCESSO CIVIL. AÇÃO DE IMISSÃO NA POSSE. DIREITOS HEREDITARIOS. PROCURAÇÃO EM CAUSA PROPRIA. CONTRATO DISTINTO DO MANDATO TRADICIONAL. TRANSFERENCIA DE DIREITOS. MORTE DO PROMITENTEVENDEDOR. IRRELEVANCIA. VALIDADE DO INSTRUMENTO. DOUTRINA. JURISPRUDENCIA. RECURSO PROVIDO. I – Pelo contrato de mandato em causa própria, o mandante transfere todos os seus direitos sobre um bem, móvel ou imóvel, passando o mandatário a agir por sua conta, em seu próprio nome, deixando de ser uma autorização, típica do contrato de mandato, para transformarse em representação. II – Ao transferir os direitos, o mandante se desvincula do negócio, não tendo mais relação com a coisa alienada, pelo que não há que se falar em extinção do contrato pela morte do mandante. O contrato permanece valido e, em consequência, a procuração, que e sua forma, mesmo depois do decesso do vendedor. III – Esse posicionamento, ademais, ajusta-se ao entendimento segundo o qual a promessa de compra-e-venda somente reclama inscrição do instrumento para sua validade e eficácia perante terceiros, mostrando-se hábil a obtenção da adjudicação compulsória em relação ao promitente vendedor independentemente desse registro. (REsp n. 64.457/RJ. Relator Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, Quarta Turma, DJ 9/12/1997).

AÇÃO ANULATÓRIA DE ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA. ALIENAÇÃO DE IMÓVEL DE FUNDAÇÃO. RETORNO DE IMÓVEL ANTES DOADO PARA O PATRIMÔNIO DO ORIGINÁRIO DOADOR POR PROCURAÇÃO IN REM SUAM E POSTERIOR ALIENAÇÃO A TERCEIRO. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. – A procuração in rem suam não encerra conteúdo de mandato, não mantendo apenas a aparência de procuração autorizativa de representação. Caracteriza-se, em verdade, como negócio jurídico dispositivo, translativo de direitos que dispensa prestação de contas, tem caráter irrevogável e confere poderes gerais, no exclusivo interesse do outorgado. A irrevogabilidade lhe é ínsita justamente por ser seu objeto a transferência de direitos gratuita ou onerosa. – Para a validade da alienação do patrimônio da fundação é imprescindível a autorização judicial com a participação do órgão ministerial, formalidade que se suprimida acarreta a nulidade do ato negocial, pois a tutela do Poder Público – sob a forma de participação do Estado-juiz, mediante autorização judicial -, é de ser exigida. (REsp n. 303.707/MG, Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, Terceira Turma, DJ de 15/4/2002).

E por fim, em termos de paradigmas de jurisprudência deve ser mencionado o julgamento mais recente da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, no REsp nº 1.962.366 – DF , que é do ano de 2023, com a relatoria e voto vencedor da Ministra Nancy Andrighi, com a seguinte ementa:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL CUMULADA COM RESTITUIÇÃO DE VALORES. PROMESSA DE COMPRA E VENDA. IMÓVEL EM CONSTRUÇÃO. PROCURAÇÃO EM CAUSA PRÓPRIA (IN REM SUAM OU IN REM PROPRIAM). NATUREZA JURÍDICA. NEGÓCIO JURÍDICO UNILATERAL. PODER DE DISPOR. TÍTULO NÃO TRANSLATIVO DE DIREITOS OU DE PROPRIEDADE. LEGITIMIDADE ATIVA DO OUTORGANTE PROMITENTE COMPRADOR DE IMÓVEL. 1. Ação de rescisão contratual cumulada com restituição de valores, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 19/7/2021 e concluso ao gabinete em 2/6/2022. 2. O propósito recursal consiste em definir se o promitente comprador tem legitimidade ativa para pleitear a rescisão de promessa de compra e venda de imóvel, ainda em construção, após outorgar procuração em causa própria a terceiro que, na sequência, a substabeleceu para outrem. 3. O promitente comprador que outorga procuração em causa própria (in rem suam ou in rem propriam) detém legitimidade ad causampara figurar em ação de rescisão de contrato de promessa de compra e venda de imóvel antes de realizado eventual negócio jurídico translativo de direitos sobre o bem. 4. A procuração em causa própria é negócio jurídico unilateral, segundo o qual o outorgante confere ao outorgado poder, formativo e dispositivo, de dispor sobre determinado bem (real ou pessoal), em nome do outorgante, no interesse do outorgado, de maneira irrevogável e sem a necessidade de prestar contas. 5. Não há, por meio da procuração em causa própria, a cessão de direitos creditícios, tampouco a transmissão da propriedade. 6. Hipótese em que o Tribunal de origem, de ofício, concluiu pela ilegitimidade ativa do outorgante para promover ação de rescisão contratual, sob o fundamento de que a procuração em causa própria, outorgada a terceiro, apresenta natureza jurídica de instrumento translativo de direitos lato sensu. 7. Recurso especial conhecido e provido para anular o acórdão recorrido e determinar que o Tribunal de origem, superada a preliminar de ilegitimidade ativa, julgue o recurso de apelação interposto. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, por maioria, dar provimento ao recurso especial nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Votou vencido o Sr. Ministro Moura Ribeiro. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva (voto-vista) e Marco Aurélio Bellizze votaram com a Sra. Ministra Relatora. Brasília (DF), 14 de fevereiro de 2023(Data do Julgamento) MINISTRA NANCY ANDRIGHI Relatora.

Para o conhecimento necessário dos paradigmas é esse o estado da arte na jurisprudência superior nos casos concretos analisados com as diferentes nuances fáticas sobre o tema da procuração em causa própria, a sua definição como instituto jurídico e os seus efeitos.

3. Da Conclusão da Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais sobre o caso concreto analisado

Feita as considerações acima resta agora seguir para analisar o posicionamento da Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais, conforme narrado no primeiro tópico deste trabalho, cuja síntese é a de recurso interposto por mandante que havia outorgado mandato em causa própria, sem ter sido realizada a transmissão de propriedade no registro público, pretendendo não ser responsabilizado pelo pagamento da quota condominial do bem de raiz perante o ente formal.

Vistas as lições da jurisprudência acima retratada e seguindo o posicionamento exarado no REsp nº 1.962.366 – DF  do Superior Tribunal de Justiça, a Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais assentou no Recurso Inominado 1026528-05.2022.8.11.0001 a impossibilidade de exclusão da responsabilidade do mandante para o pagamento das cotas condominiais, uma vez que no atual momento de desenvolvimento e complexidade das relações sociais e jurídicas, não se mostra correto concluir que a procuração em causa própria possa transferir, diretamente, a propriedade do bem.

Com efeito, segundo argumentação aditiva, anotou o voto condutor que se aprende nos bancos da faculdade e da vida pragmática que a transmissão da propriedade somente ocorre por meio do registro do título translativo no Registro de Imóveis, consoante dispõe o art. 1.245, §1º, do Código Civil, cuja dicção é a seguinte:

Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis. 

§1º Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel. 

Dessa forma, à luz da controvérsia instalada no Juizado Especial e no recurso inominado que chegou a julgamento na segunda instância, entendeu o colegiado julgador no sentido de que a procuração em causa própria não corresponde, na atualidade, à cessão de direitos ou a título translativo de propriedade, pois é negócio jurídico unilateral, segundo o qual o outorgante confere ao outorgado apenas o poder, formativo e dispositivo, de dispor sobre determinado bem (real ou pessoal), em nome do outorgante, no interesse do outorgado, de maneira irrevogável e sem a necessidade de prestar contas. 

Confira-se a ementa:

recurso inominado – execução de taxas condominiais – obrigação propter rem – proprietário do imóvel responsável pela dívida – alegação de ilegitimidade por ter vendido o bem imóvel – outorga de procuração em causa própria – instituto que não transfere a propriedade – embargos á execução rejeitados – sentença mantida – recurso desprovido. 

A dívida de condomínio refere-se à obrigação propter rem, ou seja, são obrigações que decorrem do direito real de propriedade, portanto, por expressa previsão legal, o condomínio deve cobrar do atual proprietário. 

A alegação do recorrente de que vendeu o imóvel a terceiros, apresentando procuração em causa própria para demonstrar o alegado, não é suficiente para afastar a sua legitimidade para fazer frente aos débitos do bem de raiz.

À luz da controvérsia instalada no Juizado Especial que a decidiu, conclui-se ser correta a sentença que entendeu ser a procuração em causa própria não correspondente, na atualidade, à cessão de direitos ou a título translativo de propriedade.

Sentença mantida.

Daí que, por meio dela, a cessão de direitos creditícios, tampouco a transmissão da propriedade, razão pela qual concluiu pela legitimidade passiva do outorgante para responder pelas dívidas propter rem do apartamento perante o condomínio, porquanto não houve a sequência de atos translativos da propriedade, in casu a confecção da escritura pública de aquisição e o respectivo registro imobiliário competente. 

Esse se mostra realmente como melhor entendimento judicante a se conformar com os contornos semiológicos dos institutos relativos a representação, mandato e procuração, afastando qualquer possibilidade de insegurança jurídica nas relações contratuais deles decorrentes de acordo com a legislação civil em vigor. 

Abstract

The power of attorney in its own right still raises a lot of discussion within the scope of monocratic and collegiate judicial bodies, considering that the civil doctrine itself has presented divergence regarding its legal nature with the existence of three main schools of thought. The purpose of this article is to verify it in the face of a concrete case judged by the Second Appellate Panel of the Special Courts with the application of the doctrine embraced by the jurisprudence relating to the non-correspondence to the assignment of rights or to the transfer of ownership.

Referências Bibliográficas

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BRASIL. Tribunal de Justiça de Mato Grosso. Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais. Recurso Inominado1026528-05.2022.8.11.0001.

DE PLÁCIDO E SILVA. Tratado do Mandato e Prática das Procurações. 2. ed. Curitiba: Editora Guaíra LTDA., 1892. p. 386-391). 

GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Mandato, Procuração e Representação no Novo Código Civil Brasileiro. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, São Paulo, n. 50, set./out. 2012.

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Antonio Horácio da Silva Neto

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Antonio Horácio da Silva Neto é juiz de direito do Tribunal de Justiça de Mato Grosso e presidente da Academia Mato-grossense de Magistrados. Colaborador especial do Circuito Mato Grosso desde 2015.