Foto: Ahmad Jarrah / Circuito MT
Ao que tudo indica, o período tenebroso no Lar da Criança, em Cuiabá, chegou ao fim, dando-nos a esperança de que tantas denúncias envolvendo desde profissionais despreparados para cuidar dos internos (crianças vítimas de violência doméstica e abandono) até superlotação, clausura e agressões, nunca mais se repitam em Mato Grosso.
A dura e cruel realidade dos tempos em que a responsabilidade sobre o abrigo era da Secretaria de Estado de Trabalho e Assistência Social (Setas), gerida pela ex-primeira-dama de Mato Grosso, Roseli Barbosa (esposa de Silval Barbosa), começou a ser transformada após as diversas denúncias feitas pelo Circuito Mato Grosso, a partir de depoimentos de servidores, conselheiros tutelares e documentos.
Hoje, depois de dois anos desde a primeira denúncia de descaso no tratamento das crianças e adolescentes acolhidos no local, o abrigo passa por um processo de humanização. Seguindo as resoluções do Conselho Estadual de Defesa da Criança e Adolescente (CEDCA) e do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), além de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre o Governo e o Ministério Público (MPE MT), o Estado montou uma comissão de reordenamento para a transição e a readaptação dos internos a uma nova modalidade de acolhimento conhecido como casas-lares.
O atual secretário da Setas, Valdiney de Arruda, explicou a pretensão de que até o fim deste ano o Estado apresente e efetive o processo de humanização do atual modelo do abrigo – que em determinadas épocas chegou a abrigar mais de 100 internos. Para isso, o atual prédio do Lar deve ser fechado, transferindo os menores atendidos para uma casa lar e aproximando-os da realidade vivida em lares com familiares.
Conforme explicou o gestor a nossa reportagem, o papel do Estado será o de adequar o Lar da Criança a uma modalidade de acolhimento mais humana, focar na adaptação dos menores, para, então, passar a responsabilidade ao município de Cuiabá, como previsto no TAC com o MPE. A transferência da responsabilidade do acolhimento de crianças e adolescentes abandonados para a Prefeitura deve ser feita até o ano de 2017.
“No caso de Cuiabá existe este Lar da Criança, que é do Estado, mas que deve ser entregue ao município. Existe um Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público, que está em análise no Governo, exigindo que em no máximo um ano o Lar seja municipalizado […] Elaboramos o cronograma de atividades e até o final deste ano nós queremos apresentar e dar efetividade nessa transformação para as crianças e adolescentes, a um ambiente de casas lares. E em um segundo momento, manter toda a estrutura de cuidados e cuidadores para fazer com que essas casas continuem dando o tratamento que os internos merecem”, explicou Arruda.
Dispensa de servidores – O processo de ‘fechamento’ do Lar da Criança gerou certo tipo de temor entre os servidores que se dedicam ao local. São 106 trabalhadores classificados no último concurso público do Estado, que podem ser dispensados, pois, ainda em estado probatório, estão lotados em um cargo técnico exclusivo para trabalhar no abrigo.
Informações dão conta de que um parecer da Procuradoria-Geral do Estado, ainda não homologado, sugere a extinção dos cargos criados no final de 2013, para atender as demandas da instituição que apresentava falta de profissionais capacitados.
Entretanto, o secretário desqualificou o burburinho e tranquilizou os servidores ao afirmar a necessidade de mantê-los no quadro de funcionários do Estado até que seja concluído o processo de municipalização do Lar.
“Por parte da Setas os servidores permanecerão no Governo, por dois motivos: primeiro: nós temos até 2017 para fazer todo esse processo; segundo: por mais que tenhamos o compromisso com o TAC para municipalizar, a nossa casa-lar, hoje ela ainda recebe crianças e adolescentes”, garantiu Valdiney.
Outro motivo, que segundo o gestor obriga o Estado a manter os servidores, é a possibilidade de o processo de municipalização do Lar não ser concluído. Valdiney de Arruda alerta que não só Cuiabá, mas outros municípios do estado podem não ter capacidade técnica e financeira para trabalhar com o acolhimento dos menores abandonados.
“Temos que entender que, se o município não tem condição de abraçar essas crianças e adolescentes, o Estado tem que continuar. Então se me perguntar se daqui a um ano o município vai ter condições de gerenciar essas casas-lares, eu não tenho certeza. Enquanto nós tivermos condições de cuidar bem delas e isso não for apropriado a alguns dos municípios (Cuiabá e Várzea Grande), vamos continuar realizando esse serviço. Tanto a Justiça quanto o MPE e o Governo têm a consciência de não dar descontinuidade e de não jogar essas crianças no ‘colo’ do município. Além disso, nós temos esses outros munícipios para auxiliar na implantação da modalidade de acolhimento”, destacou o gestor.
Violência, superlotação e fugas deixaram de ser comuns – Em um passado não tão distante, as fugas de menores do Lar da Criança eram consideradas comuns, quase semanais. Com a falta de profissionais capacitados e atendimento individualizado e humano, as crianças e adolescentes denunciavam agressões físicas e acabavam tentando se desvencilhar dos maus-tratos.
O secretário da Setas afirmou ao Circuito Mato Grosso que essa situação já não faz mais parte do abrigo. Segundo Valdiney, o processo de humanização e capacitação dos servidores tornou o local mais acolhedor. Nos últimos seis meses não houve registro de nenhuma tentativa ou consumação de evasão e a superlotação do abrigo foi extinta; hoje, apenas 23 menores são abrigados.
“A casa não é uma prisão. Eles não são cuidados como pessoas encarceradas, há todo um processo de humanização. Agora nas férias há toda uma programação fora do abrigo, por exemplo. Muitos têm familiares aqui na cidade e os menores podem visitá-los. Hoje está mais bem administrado, tem assistência social técnica e psicológica. Nada substitui a família, mas hoje diminuíram os conflitos e as possibilidades de eles tentarem sair por violência, por maus- tratos”, explicou Valdiney de Matos.
Lares Cuiabanos
Cumprindo o processo de municipalização do acolhimento de menores e um TAC firmado entre a Prefeitura e o Ministério Público Estadual (MPE) no ano passado, a capital inaugurou em abril a primeira casa-lar do município. A Casa da Criança Cuiabana é a primeira das quatro casas previstas para serem construídas até o próximo ano – e vai abrigar crianças de até 12 anos que, por determinação da Justiça, foram retiradas do convívio familiar devido a maus- tratos, abandono, negligência, violência doméstica ou abuso sexual.
A casa com 14 cômodos, entre berçário, quartos distintos de meninos e meninas, ampla área de lazer com parquinho, campinho de futebol, sala de TV e sala de brinquedos, além de cozinha industrial, área administrativa e espaço para atendimento psicossocial das crianças e das famílias; oferece um tratamento diferenciado aos internos, bem diferente do que era visto até o ano passado no Lar da Criança.
Além da Casa da Criança Cuiabana, o município mantém uma casa de retaguarda, Nosso Lar, que atende até 10 meninas de 12 a 18 anos.
“Os menores entram nas duas instituições através da Justiça, e daí nós vamos trabalhar para ver se essa criança ou adolescente será reinserido na família de origem, que é o nosso ponto principal […] Dentro da casa-lar é importante que se crie um ambiente familiar. Tem a mãe social, poucas pessoas trabalhando para que os menores criem laços afetivos. Funciona como uma casa normal. As crianças não ficam internas aqui, vão para as creches e escolas. Um modelo em que tentamos reproduzir ao máximo uma família”, explicou a psicóloga das duas casas-lares de Cuiabá, Graciele Girardello.
O recurso para manter as casas-lares é compartilhado entre a Prefeitura (que arca com a folha de pagamento, além de um repasse mensal para manutenção) e a ONG Cena Onze, que administra as duas casas.
Histórico de denúncias no Circuito Mato Grosso
A série de denúncias contra a administração do Lar da Criança no Circuito Mato Grosso teve início em julho de 2013, quando uma reportagem especial trouxe à tona que a secretária da Setas, Roseli Barbosa, realizara um contrato milionário sem licitar e sem especificar sua finalidade.
A partir de então, diversas denúncias chegaram até nossa redação e foram divulgadas no jornal semanal, mostrando a violação de direitos dos menores acolhidos na Lar.
A licitação fraudulenta foi alvo de investigação do MPE, através do Gaeco. Além disso, as reportagens que escancararam maus-tratos, fugas, tratamento inadequado e superlotação no Lar mobilizaram instituições ligadas ao direito da criança e do adolescente, como a Delegacia Especializada de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Deddica), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MT) e Promotoria da Infância e da Juventude.