O aeroporto de Heathrow é um lugar vazio às duas da manhã. Uma das poucas pessoas esperando ônibus em suas dependências é Ahmed.
Faz parte de sua rotina. É na rede de ônibus noturnos que circulam por Londres que ele tem conseguido abrigo à noite há mais de três anos.
Não é este o nome real do indiano de 44 anos que não conseguiu asilo na Grã-Bretanha. Ele está no país desde 2002, depois de deixar a província rural de Gujarat supostamente fugindo da violência étnica que tomou conta da região naquele ano. Ahmed pertence à minoria muçulmana na Índia.
Traumatizado – ele conta que um de seus tios foi morto na sua frente -, ele conseguiu um visto de turista, pegou um voo para Londres e deu entrada num pedido de asilo, que foi rejeitado pelo Ministério do Interior.
Na opinião das autoridades britânicas, a Índia é país relativamente seguro e grande o suficiente para que Ahmed recomeçasse sua vida em outro ponto, longe de Gujarat.
Apelo negado
O indiano entrou com um apelo, também indeferido, e foi convidado a se retirar da Grã-Bretanha. Em vez disso, Ahmed preferiu ficar no país ilegalmente. Sem permissão para trabalho, ele logo ficou sem dinheiro e teve de dormir na rua – em vielas, escondido em meio a latas de lixo, ou de em abrigos para sem-teto de Londres. Até que um dia ouviu a ideia do uso dos ônibus noturnos.
Sua jornada esta noite começou às 23h, em Leicester Square, no coração turístico de Londres. Uma região lotada a qualquer hora do dia. É um lugar perfeito para ficar invisível.
"Com todas essas pessoas indo a bares, restaurantes e teatros, você pode ficar por aqui até quatro da manhã", conta.
Normalmente, Ahmed começa sua viagem a bordo do ônibus número 24, um linha convencional que vai para Hampstead Heath. No ponto final, ele salta para depois entrar de novo no ônibus e voltar para o ponto de partida.
Quando o indiano chega ao centro de Londres, o serviço noturno já começou, então ele pode escolher as linhas que cumprem as rotas mais longas – e que permitem mais tempo de descanso. A que vai do centro da cidade para Heathrow, por exemplo, tem tempo de viagem de 80 minutos.
"Às vezes penso em me matar", diz ele, quando fala na possibilidade de ser preso e deportado para a Índia.
Ahmed criou técnicas para permanecer "invisível". Mas também desenvolveu formas de dormir com um pouco de conforto.
Discreto
Normalmente, ele tenta ser o primeiro a entrar nos ônibus, porque há outros sem-teto como ele disputando assentos "estratégicos", localizado no piso térreo dos ônibus de dois andares londrinos – eles ficam no fundo e sobre o motor, onde é mais quente.
O indiano conta que é fácil identificar outros como ele: muitos estão vestindo jeans e várias camadas de casacos, frequentemente evitando olhar nos olhos dos outros passageiros.
Numa das paradas, Ahmed mostra outros imigrantes com quem já viajou nos ônibus antes. É um raro momento de camaradagem entre esses viajantes noturnos.
Ele é um dos milhares de pessoas que tiveram pedido de asilo recusado, mas que vivem ilegalmente na Grã-Bretanha. Muitas estão à espera do resultados de apelos. Não existem números precisos, pois é extremamente difícil contar pessoas que "desapareceram do radar". Um recente estudo do Parlamento Britânico acusou o Ministério do Interior de não saber quantos das 175 mil pessoas que tiveram asilo negado nos últimos anos ainda estão na Grã-Bretanha.
Ahmed só pensa em conseguir o máximo de descanso possível à noite. Ele diz ter um sonho recorrente. "É como se alguém está me perseguindo, pronto para me matar ou bater em mim". Seu medo constante, porém, é de ser descoberto pelas autoridades. Por isso, ele tem uma estratégia de nunca causar problemas e de ficar longe deles.
Nas noites de sexta-feira e sábado, por exemplo, os ônibus noturnos são mais barulhentos e lotados. Se a confusão descamba para a violência, Ahmed desce no próximo ponto.
'Bênção'
Ele não está absolutamente sozinho em sua luta pela sobrevivência. Há diversas organizações que auxiliam imigrantes e asilados, provendo desde dinheiro a aconselhamento legal ou confortos como uma refeição e um banho quentes.
Três vezes por semana Ahmed visita um centro no leste de Londres em que pode tomar banho e lavar suas roupas. Ele também guarda lá as duas sacolas plásticas contendo seus objetos pessoais. Em outra instituição de caridade, Ahmed trabalha como cozinheiro em troca de dinheiro para suas despesas de viagem. Lá ele também joga pingue-pongue e Scrabble (jogo de tabuleiro de palavras-cruzadas) com outros imigrantes.
"Adoro cozinhar e fico feliz em ver as pessoas comendo e me abençoando. Isso para mim tem valor maior que conseguir meu visto para ficar aqui".
Nos meses de inverno, a vida de Ahmed fica mais difícil. Por que ele ainda insiste em ficar na Grã-Bretanha vivendo nessa situação? O que há de tão errado com voltar para a Índia?
"Não posso voltar. Minha situação lá é mais perigosa que aqui. Não estou pronto para voltar", explica Ahmed.
Ahmed acredita que, se conseguir ficar na Grã-Bretanha por 12 anos, obterá direito de viver legalmente. Porém, a legislação que permitia essa alternativa só existiu até 2012 – e originalmente previa um período mínimo de 14 anos para pessoas vivendo legalmente ou ilegalmente no país. O período de carência agora é de 20 anos.
A não ser que Ahmed volte para a Índia ou seja deportado, ele tem muito mais horas de espera e muitas noites em ônibus pela frente.
Fonte: Terra