Chegou aos cinemas na última quinta-feira, 11, Suçuarana, novo filme dos diretores Clarissa Campolina e Sérgio Borges que provoca reflexões profundas sobre pertencimento, coletividade e os rumos da sociedade brasileira contemporânea. O longa, que conquistou cinco prêmios Candango no Festival de Brasília – incluindo Melhor Atriz para Sinara Teles e Melhor Ator para Carlos Francisco -, nasceu de uma inspiração inusitada: o clássico A Fera na Selva, de Henry James.
“Há mais de dez anos, a Clarissa leu A Fera na Selva e me convidou para ler também”, relembra Sérgio Borges em entrevista ao Estadão.
O que começou como uma possível adaptação de época logo se transformou em algo muito mais ambicioso: uma “transcriação” que mantinha a alma do livro original, mas a transportava para a realidade brasileira contemporânea. “A gente logo viu que queria aproveitar algo que gostava do livro – essa narrativa que fala muito, mas não revela totalmente todas as coisas”, explica o diretor.
A protagonista Dora, interpretada por Sinara Teles, é uma mulher solitária que vive na estrada há anos, sem pouso fixo.
Seu único apego é uma fotografia da mãe em um lugar idílico chamado Vale do Suçuarana, que se torna o motor de sua busca incessante. Ao longo da jornada, ela encontra outros personagens igualmente desenraizados, como Ernesto (Carlos Francisco) e o cão Encrenca – que, segundo os diretores, funciona como um espelho dos sentimentos da protagonista.
A crítica social por meio da paisagem devastada
Para além da jornada individual, Suçuarana se revela uma reflexão aguçada sobre a precarização do trabalho e a crise do coletivo na sociedade brasileira.
“O trabalho é o lugar social onde antes a gente se organizava coletivamente, e hoje em dia há uma individualização do trabalho para termos menos força enquanto trabalhadores”, observa Clarissa.
A diretora estabelece uma conexão poética e política entre a imagem de crianças trabalhando na Revolução Industrial e a realidade atual. “Hoje em dia, a criança trabalhando no feed do celular”, exemplifica.
A escolha das locações em Minas Gerais não foi casual. Os diretores mapearam cidades que vivenciaram os ciclos econômicos do estado – do ouro ao extrativismo, das fábricas aos fechamentos industriais. “A gente conheceu fábricas que foram abertas em Minas e absorveram mão de obra que antes estava na mineração”, conta Borges. Essa pesquisa resultou em cenários que funcionam como personagens do filme, materializando visualmente o estado de ruína e abandono que permeia a narrativa.
A paisagem árida e devastada não é apenas pano de fundo, mas elemento dramático essencial. “A gente materializa o desejo dela numa paisagem, numa foto. O drama dela está no corpo, no caminhar, no cansaço, na fome”, explica Campolina.
Diferentemente do livro de Henry James, que é introspectivo e psicológico, o filme opta por uma abordagem mais tátil e material, onde as questões psicológicas se manifestam através do físico e do concreto.
Do individual ao coletivo: uma protagonista em movimento
Dora é uma personagem complexa que recusa muitos dos lugares tradicionalmente atribuídos às mulheres na sociedade. “Ela recusa enquanto mulher muitos lugares que a sociedade coloca: casa, cuidado, estabilidade, vaidade”, aponta Campolina.
Essa recusa se manifesta desde a cena de abertura, onde ela trabalha enquanto o cachorro tenta brincar, estabelecendo imediatamente quem é essa mulher que escolheu o movimento como forma de existência.
O processo de desenvolvimento do roteiro contou com dois anos de trabalho através de um núcleo criativo do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual), permitindo aos diretores aprofundar tanto o entendimento da obra de Henry James quanto as questões contemporâneas que queriam abordar. “A gente teve essa oportunidade de entrar mesmo no filme, entender o contexto da época, entender o Henry James, e entender o que a gente queria dizer”, resume Campolina.
Suçuarana é, fundamentalmente, um filme sobre a necessidade de encontrar novas formas de viver que considerem o coletivo. Através de uma narrativa errante, conduzida por uma mulher que faz do caminho sua forma de existência, o longa convida o espectador a repensar não apenas o presente, mas também reconhecer o fracasso de um modelo econômico predatório que deixa rastros de devastação por onde passa.