Cidades

Questão de história no Enem provoca polêmica entre especialistas

Uma  questão do primeiro dia de provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) tem levantado questionamentos de historiadores. A questão, de história do Brasil, abordou a política migratória do governo brasileiro durante o Estado Novo, especificamente em relação aos judeus. Para o historiador Fábio Koifman, nenhuma das alternativas oferecidas aos estudantes está correta historicamente, inclusive a alternativa apontada pelo gabarito oficial, que, segundo ele, "confunde" o anti-semitismo com o nazismo. Para Koifman, a questão oferece brecha para ser questionada e anulada. Procurado pelo G1, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) não se pronunciou até a publicação desta reportagem.

A questão caiu no primeiro dia de provas do Enem 2016, em 5 de novembro: é a de número 13 da prova branca, 33 na prova amarela, 36 na prova rosa e 27 na prova azul.

O trecho usado no enunciado da questão é uma adaptação de um trecho já adaptado da fonte original, o artigo “Nova língua interior: os judeus no Brasil”, da historiadora Keila Grinberg, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). O artigo foi publicado originalmente em 2000 no livro “Brasil: 500 anos de povoamento”, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que contém a história dos diferentes povos do país, entre eles índios, portugueses, negros, árabes, espanhóis, italianos, japoneses e judeus.

O próprio IBGE criou um site chamado “Brasil 500 anos”, onde reuniu partes dos artigos publicados no livro. No capítulo do site sobre a migração de judeus durante o Estado Novo, há apenas quatro parágrafos do artigo original. Já o trecho que apareceu na questão do Enem continha apenas partes de dois dos parágrafos. (compare as três versões do texto da pesquisadora Keila Grinberg ao final da reportagem)

O gabarito oficial e os cursinhos pré-vestibulares que fizeram a correção extraoficial da prova apontaram como correta a alternativa E: "simpatia de membros da burocracia pelo projeto totalitário alemão".

Alternativas incorretas
Segundo Koifman, a alternativa poderia ser considerada correta caso fosse reformulada: a simpatia de parte dos funcionários do governo da época, segundo ele, não foi ao "projeto totalitário alemão", mas sim ao "anti-semitismo". Porém, os dois termos não devem ser considerados sinônimos, mesmo em se tratando deste período histórico.

O pesquisador diz que há um "senso comum" que confunde qualquer ação anti-semita, ou seja, de discriminação contra judeus, do período entre guerras com ações motivadas pelos ideais nazistas. No caso do governo brasileiro, ele sustenta que houve ações anti-semitas, mas que elas não eram nazistas, e sim seguiam o modelo eugenista praticado em outras partes do mundo, inclusive nos Estados Unidos.

"Eu diria que mais do que simpatia, 'adesão'. Adesão de parte da burocracia (em verdade, também da sociedade dita culta da qual essas pessoas faziam parte) a uma ideia negativa generalizada em relação aos judeus como imigrantes. Em alguns casos, 'apenas' julgavam a totalidade dos judeus inassimiláveis, o que dificultaria a miscigenação e, portanto, não se prestava à 'solução' de melhorar o Brasil por meio da vinda de novos imigrantes brancos, conforme o projeto de branqueamento. Ou seja 'adesão em maior ou menor grau a ideário anti-semita'. Ou ideário que atribuía valores preconceituosos negativos a totalidade do povo judeu", explicou Koifman.

O historiador lembra que, no período histórico entre a ascensão dos nazistas na Alemanha e a eclosão da Segunda Guerra Mundial, nenhum país do mundo aceitava conceder vistos permanentes para os refugiados judeus. "O Brasil não era o único a negar essa concessão. Os países que aceitavam estabeleciam critérios bastante seletivos em relação aos [judeus] que iriam receber. Da mesma maneira que o Brasil fez."

Correção extraoficial
O G1 ouviu outros historiadores e professores de cursos pré-vestibulares a respeito da questão. Durante a correção extraoficial do Enem 2016, feita por professores no próprio sábado (5), não houve objeções a essa questão específica de história. A maior parte dos cursinhos explicou a escolha pela alternativa E afirmando que, nesse período, havia, dentro do governo de Getúlio Vargas, tanto funcionários de alto escalão simpáticos às políticas dos Estados Unidos quanto os que seguiam ideologias ligadas ao fascimo e ao autoritarismo, e que o texto do enunciado citava exemplos de ações de membros que se identificavam ideologicamente com o último caso.

A justificativa dada pelo Colégio Etapa para a escolha da alternativa E foi a seguinte: "Durante o período do Estado Novo existiam membros da burocracia governamental simpáticos aos regimes nazifascistas, com poder suficiente para influenciar nas decisões do governo associadas à adoção de uma orientação política anti-semita."

A pedido do G1, o professor Thomas Wisiak, coordenador de história do Etapa explicou a escolha. Segundo ele, o tema é controverso, "mas há muitos estudos sobre o antissemitismo no Brasil na época de Getúlio Vargas" e "é comum afirmar que, ainda que não tenha existido uma política de Estado contra judeus no Brasil, havia membros do governo simpáticos aos regimes fascistas e, em especial, ao nazismo". Para ele, "essa pareceu ser a intenção do exercício, inclusive considerando as outras alternativas" do exercício, que eram: "receio do controle sionista sobre a economia nacional", "reserva de postos de trabalho para a mão de obra local", oposição do clero católico à expansão de novas religiões" e "apoio da diplomacia varguista às opiniões dos líderes árabes".

"Procuramos a melhor resposta considerando o texto usado, as alternativas disponíveis e o que se costuma afirmar sobre o assunto na história do Brasil", explicou Wisiak.

O historiador Matias Pinto considera "questionável" a alternativa apontada como oficialmente correta. "Se de um lado você tinha o Filinto Müller, chefe da Polícia do Distrito Federal, declaradamente simpático ao Partido Nacional-Socialista da Alemanha, do outro podemos citar o Oswaldo Aranha, ex-Ministro da Fazenda e embaixador nos EUA e ministro de Relações Exteriores no Estado Novo, que, mesmo antes da Segunda Guerra Mundial, já combatia os setores germanófilos do 'establishment' varguista", explicou ele.

Koifman diz que, entre as demais alternativas apresentadas pelo Enem, algumas são "absurdas, senão preconceituosas, mesmo que em tese sejam as 'erradas'". Segundo ele, a indução à alternativa E pode acontecer, "se não por mera eliminação", por uma tentativa de "identificar qual, pelo espírito do texto e da pergunta, estaria correta".

Porém, ele explica que "não há dúvida que existiu e de maneira generalizada no Brasil, especialmente durante o Estado Novo (1937-45) simpatia pelos 'regimes autoritários'", e que "o Estado Novo foi estabelecido tendo como modelo os regimes fascistas europeus, especialmente o Estado Novo português, como também em alguns aspectos o fascismo italiano." Porém, segundo o especialista, o anti-semitismo não era uma característica específica dos fascismos, e sim do nazismo. "Há confusão em relação aos regimes e ideologias", segundo ele. "Os anti-semitas daquele tempo podiam ser simpatizantes dos EUA e até antipáticos aos nazistas."

O G1 também ouviu a professora e historiadora Keila Grinberg, autora do texto que foi adaptado e reproduzido no enunciado da questão. Keila afirmou que acha ser louvável "o fato de uma questão sobre a trajetória dos judeus no Brasil ter sido objeto do Enem". Segundo ela, "é fundamental perceber e estudar a presença judaica no Brasil (na verdade, desde o período colonial), e uma questão sobre a imigração judaica na Era Vargas possibilita isso".
Confira abaixo a comparação entre o texto original da historiadora, publicada pelo IBGE em 2000, a versão disponível em um site do IBGE e a versão adaptada que foi impressa na prova do Enem 2016:

Versão original no livro do IBGE
“(…) A década de 1930, no entanto, veio modificar substancialmente um cenário já pouco favorável aos judeus europeus. Com a ascensão dos nazistas ao poder na Alemanha, em 1933, e a subsequente promulgação das Leis de Nuremberg, teve início um grande êxodo de judeus alemães. Mas estes já não encontrariam portas abertas nos Estados Unidos, que havia adotado leis restritivas à imigração, nem nos muitos outros países que haviam feito o mesmo. Estava criado o drama dos refugiados, que se tornava mais grave à medida que países como a Itália endossavam as medidas anti-semitas tomadas pelos nazistas e o início da II Guerra Mundial se aproximava.

No Brasil, as mudanças ocorridas a partir da Revolução de 1930 provocaram alterações importantes no discurso sobre a importância da imigração. Intelectuais nacionalistas como Oliveira Vianna defendiam a limitação da entrada no País àqueles imigrantes desejáveis, que pudessem contribuir positivamente para a nacionalidade brasileira, trabalhando a terra ou trazendo capitais, e assimilando-se ao resto da população. Para eles, os judeus não faziam nem uma coisa, nem outra: moravam nas grandes cidades e dedicavam-se ao comércio, mantinham seus idiomas de origem e neles educavam seus filhos. Mesmo com o grande número de judeus alemães, austríacos e italianos que passaram a procurar vistos para entrar no País – estes confundiam o estereótipo comum do judeu pobre e comunista por falarem muitos idiomas, serem politicamente moderados e disporem de algumas posses –, crescia a rejeição à entrada de judeus no País na mesma velocidade em que o número de pedidos de visto na Europa aumentava. Assim que, depois de adotar restrições à imigração desde o início daquela década, com a criação das cartas de chamada (comprovação da existência de familiares no País) e da implementação do sistema de cotas, em 1935 o governo brasileiro começou a negar vistos a judeus; já durante o Estado Novo, uma circular secreta proibiu totalmente a concessão de vistos a ‘pessoas de origem semita’, inclusive turistas e negociantes, causando uma queda de 75% da imigração judaica ao longo daquele ano.

Daí em diante, até o fim da II Guerra Mundial, a política imigratória brasileira foi extremamente ambígua, ora interrompendo totalmente a entrada de judeus, ora fazendo algumas exceções, geralmente concedidas a partir de intervenções pessoais junto às autoridades. Muitas vezes, diplomatas tratavam a questão de vistos de acordo com suas próprias convicções, ora negando vistos, ora os concedendo, como fazia o embaixador Luís Martins de Souza Dantas, que de Paris salvou inúmeras vidas. Mesmo com as imposições da lei, muitos judeus continuaram entrando ilegalmente no País durante a guerra; as ameaças de deportação em massa nunca foram concretizadas, apesar da extradição de alguns indivíduos por sua militância política, como aconteceu com Olga Benário e Jenny Gleizer.

Por isso, entendem-se as dificuldades e a intensa polêmica que cercam a compreensão da política imigratória do Estado Novo, já que, se muitos judeus foram impedidos de entrar, outros tantos lograram fazê-lo; ao mesmo tempo, aqueles que aqui se estabeleceram em pouco tempo obtiveram suas naturalizações, conseguiram empregos na indústria, no comércio e em universidades brasileiras, ou se estabeleceram em áreas de colonização alemã, como em Rolândia, no Paraná. Assim, longe de serem devidas à política sistematicamente anti-semita do Estado Novo, as atitudes tomadas neste período em relação aos judeus serão bem melhor compreendidas se inseridas no contexto mais amplo da preocupação com a formação da nacionalidade brasileira e da política externa pendular do governo que buscava extrair dividendos da tensa situação internacional.”

Versão adaptada para o site do IBGE
“A partir de 1930, a vinda dos judeus para o Brasil foi muito discutida. Os nacionalistas defendiam a imigração de grupos que contribuíssem para o cultivo da terra ou que trouxessem capitais para serem aqui aplicados. Como os judeus não faziam nem uma coisa nem outra, deveria ser impedida a sua entrada no país.

Em 1935, o governo brasileiro começou a negar vistos a judeus, o que se explica por uma combinação de razões, dentre elas a preocupação em definir a identidade nacional e a ascensão dos nazistas ao poder na Alemanha (1933). Durante o Estado Novo uma circular secreta proibiu a concessão de vistos a ‘pessoas de origem semita’, inclusive turistas e negociantes, o que causou uma queda de 75% da imigração judaica ao longo daquele ano.

Entretanto, mesmo com as imposições da lei, muitos judeus continuaram entrando ilegalmente no país durante a guerra, e as ameaças de deportação em massa nunca foram concretizadas, apesar da extradição de alguns indivíduos por sua militância política. Assim, a proibição da entrada de judeus no país não se deu de forma igual por todo o período da ditadura Vargas: ora era totalmente interrompida, ora aplicada para uns e não para outros, de acordo com a proximidade entre parentes e autoridades.

Muitas vezes, diplomatas tratavam a questão dos vistos de acordo com suas próprias convicções, ora negando vistos, ora os concedendo, como fazia o embaixador Luís Martins de Souza Dantas, que de Paris salvou inúmeras vidas.”

Versão do enunciado da questão do Enem 2016
“Em 1935, o governo brasileiro começou a negar vistos a judeus. Posteriormente, durante o Estado Novo, uma circular secreta proibiu a concessão de vistos a ‘pessoas de origem semita’, inclusive turistas e negociantes, o que causou uma queda de 75% da imigração judaica ao longo daquele ano. Entretanto, mesmo com as imposições da lei, muitos judeus continuaram entrando ilegalmente no país durante a guerra e as ameaças de deportação em massa nunca foram concretizadas, apesar da extradição de alguns indivíduos por sua militância política.”

Fonte: G1

Redação

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