Tudo parece uma brincadeira inofensiva: passar de fase, ganhar poderes, ganhar prêmios e, assim, ir cada vez mais longe no jogo. O problema é que tem gente que não consegue parar. A brincadeira vira vício. E esse vício virtual abre portas para crimes sérios e bem reais, como prostituição, clonagem de cartão de crédito e até pedofilia.
Um mundo mágico, personagens fantásticos, superpoderosos, indestrutíveis. E você no controle de tudo. “Perdi praticamente todos os meus amigos, a minha faculdade eu tranquei”, conta um jogador.
“Já cheguei até a 2, 3 dias sem tomar banho”, diz a aposentada Isabel Ferreira.
“Investi mais de R$ 500 mil”, revela o jogador que não ser identificado.
Mas quem são essas pessoas?
“Eles encontram na vida virtual muito mais satisfação social do que eles têm na vida real”, explica o psiquiatra Cristiano Nabuco.
Estamos falando de jogos de internet, que acontecem em ambientes virtuais. O tempo que alguém dedica a esse mundo virtual é o principal sintoma de que algo não vai bem. O dia todo, a noite inteira ali dentro e a vida lá fora deixada de lado. O que começou como uma brincadeira se torna vício e, por trás da relação doentia de milhares de pessoas com os jogos virtuais, tem um lado oculto e bem real: o lado do crime.
“Aí já entra a questão do cartão clonado, pornografia, pedofilia”, afirma um homem que não quis ser identificado.
Em alguns jogos online, para avançar, passar de fases, é preciso cumprir tarefas, conquistar armas e equipamentos, dar experiência aos personagens. Você só consegue isso com muito tempo ou muito dinheiro.
E quem não tem nenhum dos dois?
“Fazer poses, tirar a roupa, coisa erótica, coisa de homem mesmo”, conta uma jovem. Ela não quer mostrar o rosto por vergonha da família. A estudante de 23 anos não se intimidou na hora de tirar a roupa na frente da câmera do computador.
Fantástico: Você fez um strip-tease?
Jovem: Sim, fiz.
Fantástico: Tudo isso pelo jogo?
Jovem: Tudo isso pelo jogo.
Do outro lado da tela estava um jogador que prometia dar diamantes, que valem como moeda num dos jogos online, mas não era um jogador qualquer.
Era também o que eles chamam de mediador.
Fantástico: O mediador está no jogo para quê?
Jovem: Mediador ele está lá para te ajudar na verdade.
Fantástico: E ele tem acesso a seus dados?
Jovem: Sim.
Os moderadores são contratados pelas empresas que controlam os jogos, principalmente onde são bem populares, como no Brasil, Turquia e Estados Unidos. Eles devem ajudar os novatos a jogar e são um tipo de fiscal. Por isso, têm acesso a informações de todos os jogadores, inclusive fotos. Aí alguns se aproveitam desse poder para cometer crimes.
Um rapaz foi um desses moderadores e denuncia casos de pedofilia, envolvendo crianças que estavam jogando.
Moderador: No jogo tem um bate-papo, tem um chat, online, instantâneo. Você conversava normal. Pessoas anunciavam no chat, às vezes, que o moderador tinha solicitado foto da fulana X pelada para dar 100 diamantes, 200 diamantes. Então, isso era muito comum acontecer.
Fantástico: Com crianças?
Moderador: Com crianças.
Para se tornar um jogador importante nesses jogos online, parece não haver limites. Ícaro, no mundo real, é um publicitário. No mundo virtual, o primeiro colocado em um desses jogos online. Mas isso teve um preço alto.
Ícaro: Já cheguei a investir mais de R$ 500 mil.
Fantástico: R$ 500 mil?
Ícaro: Sim.
É isso mesmo! Ícaro gastou meio milhão de reais para equipar o personagem e se tornar o número um no jogo. Como prova dos gastos, ele nos mostrou o histórico recente de compras. De família rica e bem de vida, para ele dinheiro não é problema. No dia da entrevista, em apenas três horas, Ícaro tinha gastado R$ 2,5 mil em créditos.
Fantástico: Você é o número um. Você deve ser bem amado nessa comunidade.
Ícaro: Ah, sou bem amado e odiado ao mesmo tempo. Esse é um jogo que mexe com o ego.
Odiado porque revelou mais um crime nesse mundo virtual. Jogadores com bem menos dinheiro do que eles participam de uma fraude na compra dos tais diamantes que valem como moeda.
Ícaro: Cartão de crédito clonado, entre outras coisas.
Fantástico: E você conhece pessoas que fazem isso? Você sabe de pessoas que fazem isso?
Ícaro: Sei, sim.
Fantástico: Então, esse não é um mundo virtual apenas.
Ícaro: Não é. Exatamente.
Os diamantes que valem como créditos nos jogos são vendidos em sites de compra. Dependendo da quantidade, custam entre R$ 10 e R$ 2,1 mil, mas funcionários desses sites oferecem os diamantes pela metade do preço. Como? Os funcionários vendem os diamantes com desconto para os jogadores e ficam com o dinheiro. Depois, pagam às empresas pelo valor total com cartões clonados.
Fantástico: Mas cartão de quem?
Mediador: Ai que está, de quem que são os cartões? Os cartões são de várias pessoas, cartões clonados mesmo. São daquelas pessoas que, às vezes, abasteceu em um posto e sem querer o frentista foi lá e clonou o cartão
O mediador negociou uma compra e guardou todos os e-mails que trocou com o funcionário do site de compra. As compras também são chamadas de recargas. O funcionário escreve: "Basta você fazer o pedido como se fosse comprar diamantes normalmente, mas por boleto ou depósito. Vai pagar direto na conta que te mandar". Preocupado, ele pede aos clientes que sejam discretos: "Peço a todos que aguardem as recargas para não gerar transtorno e desconfiança entre os jogadores".
As autoridades dizem que nem sempre podem agir, porque os crimes não são denunciados. “A internet não é uma terra sem lei. As pessoas têm que acabar com esse mito de que na internet elas não são identificadas. São identificadas e devem ser punidas se praticarem crimes. O importante é denunciar”, afirma a procuradora regional da República Neide de Oliveira.
É só um jogo. É virtual. Um clique e tudo desaparece. Desaparece? Não é simples assim. O chamado "transtorno por jogos de internet" entrou oficialmente no manual usado por psiquiatras do mundo todo para o diagnóstico de doenças mentais. E por um motivo simples: nada é real, mas as consequências do vício são. “Esses jogos são montados de uma maneira em que, nas fases iniciais, você consegue ganhar pontos de uma maneira muito fácil e rápida, exatamente, para mexer com a sua autoestima”, explica o psicólogo Cristiano Nabuco.
Foi o que aconteceu com uma jovem de 19 anos. Ela tinha acabado de ser aprovada para uma universidade federal. Entre o vestibular e o início das aulas, seis meses de espera. O jogo seria um passatempo, mas passou tempo demais. Por causa do vício, desistiu da faculdade. “É como se fosse uma droga. É um vício muito grande e as pessoas, infelizmente, não têm ideia, acham que é idiotice, acham que é bobagem, que é fase, mas não é”, diz.
Ela se isolou no quarto com o computador. Vida social, contato com amigos e com os próprios pais… “Eu perdi tudo. Eu perdi tudo. Eu tinha uma vida, ela parou. Parei minha vida por causa disso”, conta a jovem.
O caminho para vencer o vício é duro. É o que conta Isabel Ferreira, que precisou ser internada. Ela jogou por quatro anos sem parar. “Foram quatro anos de perda de tempo. Foram quatro anos de ilusão, de fuga da realidade”, relembra Isabel Ferreira.
Depois de brigar com a família e desenvolver problemas de saúde graves, Isabel procurou ajuda em uma clínica em Araçoiaba da Serra, no interior de São Paulo. Na semana passada, teve alta depois de oito meses de tratamento. Os passos seguidos por Isabel para se livrar do vício são os mesmos usados por grupos como Alcoólicos Anônimos. “Eu poderia ter resolvido apenas com sentar com a minha família ou conversar com a minha filha ao invés de fugir da realidade, dos problemas”, diz Isabel.
Psiquiatras dizem que esse tipo de jogo seduz ainda mais quem está com a autoestima baixa. “A vida virtual se tornou uma vida tão interessante, ele é tão bem sucedido, tão querido, tão valorizado, que a realidade concreta se torna uma realidade sem graça”, explica o psiquiatra Cristiano Nabuco.
Enquanto isso, a indústria de games cresce, e rápido.
Uma consultoria estima que o mercado de jogos movimente US$ 91 bilhões no mundo inteiro apenas neste ano. No Brasil, o mercado de games vai na contramão da economia e cresceu entre 9% e 15% nos últimos cinco anos. São milhões de brasileiros conectados e jogando online todos os dias
“A dica qual é: seu filho quer fazer parte de um jogo? Ele quer utilizar o videogame pela internet? Não tem problema, você pode, pode até jogar com ele se for o caso. A questão fundamental é: estabeleça um horário e um tempo de duração”, aponta Nabuco.
Nesse mundo mágico de personagens fantásticos e indestrutíveis, o importante é manter o controle para ser só uma diversão, porque, sem controle, a pior das batalhas é ser sair do jogo.
Fantástico: Você não vai voltar a jogar?
Jovem de 19 anos: Não, não vou. Não quero, não vou e não tem quem faça.
Fantástico: Quanto tempo você já está sem jogar?
Jovem de 19 anos: Já tem uns quatro, cinco meses.
Fantástico: Isso aqui acabou, pode fechar?
Jovem de 19 anos: Pode fechar.
Fantástico: Tem certeza?
Jovem de 19 anos: Absoluta.
Fonte: G1