A comissão Especial de Demarcação de Terras Indígenas, da Câmara dos Deputados em Brasília, aprovou no dia 27 de outubro o Projeto de Emenda à Constituição 215/2000, que em seu texto inicial “acrescentava às competências exclusivas do Congresso Nacional a aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”. Na prática, a PEC retira a prerrogativa do poder executivo e transfere para os deputados e senadores, por meio de uma comissão mista, a palavra final sobre a homologação de um território indígena (TI).
A proposta tem causado apreensão entre os povos indígenas, organizações de classe que representam os descendentes dos nativos brasileiros e estudiosos que enxergam na iniciativa o retorno das chamadas “guerras justas” – atos normativos da Coroa Portuguesa que legitimavam o assassinato de povos indígenas, na época da colonização do Brasil.
Para o doutor em Antropologia e docente da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Paulo Sérgio Delgado, a proposta da PEC 215, que vem sofrendo transformações desde que entrou em pauta, no ano 2000, é “perversa para os povos indígenas”. Ele afirma que a discussão atual na sociedade, que tenta vender o Projeto como uma solução para “apaziguar os conflitos por terra entre índios e agricultores” é, em sua opinião, “uma grande falácia”, ponderando que nenhum grupo ou etnia indígena apoia a iniciativa.
“É uma grande falácia. É como se você botasse a raposa para cuidar do galinheiro. Os deputados possuem interesse no assunto porque são bancados pelo agronegócio. Esse dispositivo pode incitar mais conflitos”, disse.
Uma das propostas presentes no texto prevê um “marco de temporalidade”. Um trecho da página 18 da PEC, disponível no site da Câmara dos Deputados – www.camara.leg.br – sugere que as demarcações de “Terra Indígenas Tradicionalmente Ocupadas” ficarão restritas somente àquelas “efetivamente habitadas por grupos indígenas na data da promulgação da Constituição de 1988”, ou seja, se os índios foram expulsos de seu lar de origem por grileiros até a data de publicação da Carta Magna, não teriam direito de ocupá-la novamente.
O especialista da UFMT considera essa proposta um equívoco, pois deixa de considerar a “memorabilidade” desses povos, afirmando que ela reconhece o direito aos espaços dos indígenas, “algo previsto inclusive pela Constituição”, segundo ele. Delgado critica ainda a perda de autonomia das etnias sobre suas terras, pois, na prática, “a PEC autoriza qualquer um a entrar, inclusive missões religiosas e grandes projetos, como usinas hidrelétricas, tudo sem a participação dos povos indígenas na discussão”.
Ele aponta ainda para consequências internas e externas caso o PEC 215 seja aprovada.
“Internamente, além de fomentar o genocídio indígena, a aprovação da PEC 215 será um duro golpe na preservação do meio ambiente. Além disso, na esfera internacional, o Brasil é signatário de propostas da ONU e da OIT que vão contra a iniciativa. Podemos ser réus em cortes internacionais”.
CIMI vê interesses eleitoreiros na questão
O Circuito Mato Grosso procurou o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), órgão ligado à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), da Igreja Católica, que, desde 1972, vem assessorando os povos indígenas na defesa de seus interesses.
Mário Bordignon, conselheiro que se despede da entidade após décadas de serviços prestados aos povos indígenas mato-grossenses, recebeu o Circuito para dar sua opinião sobre a PEC 215. Segundo ele, os parlamentares que apoiam a causa, capitaneados pelo líder da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), foram eleitos sob “certas condições”, pois, segundo ele, tiveram investimentos de empresas do agronegócio, interessadas no Projeto de Emenda à Constituição 215.
Uma dessas condições seria colocar a PEC em pauta novamente.
“Eduardo Cunha e alguns deputados que vêm defendendo essa iniciativa foram eleitos sob algumas condições, uma delas, colocar em pauta novamente a PEC 215, que desde o ano 2000 vem sendo engavetada. A proposta foi brutalmente modificada de sua proposta inicial”, afirma.
Segundo o site da Câmara dos Deputados, três parlamentares de Mato Grosso estão entre os titulares da Comissão: Nilson Leitão (PSDB), que é o presidente, Professor Victório Galli (PSC) e Ságuas Moraes (PT). Adilton Sachett (PSB) também é membro do grupo, mas como suplente.
De acordo com Bordignon, todos eles, à exceção de Ságuas Moraes – que não proferiu seu voto em virtude do abandono da bancada do PT, que se recusou a votar uma matéria considerada “inconstitucional”– manifestaram-se a favor da PEC 215, e apontou o que considera um “paradoxo”: um parlamentar investigado pelo STF por incitar a ocupação da reserva dos índios Marãiwatsédé, a antiga gleba Suiá Missu, no município mato-grossense de Alto Boa Vista (1062 km de Cuiabá), presidir esse tipo de comissão no Congresso.
“Nilson leitão é investigado por incitar a ocupação da reserva indígena Marãiwatsédé. E preside a comissão especial de demarcação de terras indígenas. É um paradoxo”.
Oposição à PEC
O Circuito Mato Grosso tentou contato com os parlamentares federais eleitos no Estado, mas conseguiu conversar apenas com Valtenir Pereira (PROS). De acordo com o deputado federal, “as demarcações de terras indígenas precisam, sim, ser discutidas”, afirmando, no entanto, “que a PEC 215 não é a solução para esse problema”.
“Precisamos de alguns ajustes para melhorar a transparência desse processo. As pessoas não podem ser surpreendidas uma vez que já estão ocupando a terra. No entanto, entendo que o caminho para chegarmos a um acordo não será alcançado pela PEC 215”.
O caso da reserva xavante Marãiwatsédé
Em conversa com o Circuito Mato Grosso, o professor de Xavante/Português de uma escola estadual da região, e líder indígena, Cosme Rite, afirmou que em três anos após a retirada da gleba Suia-Missú, os indígenas vêm sofrendo ameaças de invasão ao assentamento. Ele afirma que é comum “jogarem gado morto” na fazenda para intimidar os índios, provocarem incêndios na mata, e aponta uma suposta falta de repasses protagonizada pelo prefeito de Alto Boa Vista, Leuzipe Domingues Gonçalves (PMDB).
“Nós recebemos recursos federais para utilizarmos em benfeitorias para nosso povo. Acontece que eles chegam para a prefeitura e o prefeito fala que nunca tem dinheiro. Nunca tem dinheiro para nós”, diz ele.
Os Xavantes são um grupo indígena que habita o leste de Mato Grosso, assim como o noroeste de Goiás, e espalham-se pela região da Serra do Roncador e do Vale do Araguaia.
A etnia protagonizou recentemente um embate de repercussão nacional envolvendo a reserva Maraiwatsede, no município de Alto Boa Vista (1062 km de Cuiabá). A ocupação da área começou nos anos 1960, após a criação da fazenda “Suia-Missú”, que já foi considerado o maior latifúndio do Brasil, com um 1,5 milhão de hectares. A terra foi adquirida pela multinacional Agip que, posteriormente, em razão de pressão internacional e do povo Xavante, durante a ECO-92, se viu obrigada a devolvê-la ao governo federal.
De lá para cá, sucessivas disputas entre posseiros, que ocupavam um território já demarcado, e a etnia, transpassaram duas décadas, até dezembro de 2012, quando a Força Nacional promoveu a retirada de não-índios da reserva. A situação da etnia, entretanto, continua dramática.
Cosme afirmou ainda que os indígenas querem apenas ser respeitados e critica a exclusão do grupo de alguns programas sociais do Governo Federal .
“Os indígenas estão excluídos de alguns programas do governo. Precisamos de escolas para educar nossos filhos e hospitais para darmos tratamento adequado para nosso povo. Não temos apoio de ninguém”.