“Para nós, falar da água é falar da vida, é falar da existência, é falar do poder”, explica o babalorixá Paulo T’Osumare, em entrevista ao Circuito Mato Grosso sobre um dos atos ecumênicos mais importantes da capital, a lavagem das escadarias da Igreja de Nossa Senhora do Rosário.
O líder espiritual da tradição do candomblé definiu o tema central da “Lavagem das Escadarias da Igreja de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário” como “Axé – Salve as águas”. “[Esse tema] é justamente para a preservação; se acabar a água, todos nós vamos perecer”, completa.
Neste sábado (23), o rito que une a fé católica cristã aos cultos dos afrodescendentes vai anteceder a tradicionalíssima Festa de São Benedito. A segunda edição da Lavagem das Escadarias da Igreja de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário vai ocorrer entre 8h e 12h.
Contando com a presença das caravanas do Rio de Janeiro e da Bahia, e interior do estado, é esperado que nesta edição por volta de 1.500 pessoas compareçam. Também é esperada a presença de crianças das comunidades quilombolas e do Sr. Antônio Mulato, o mais antigo remanescente quilombola da comunidade de Mata Cavalo.
“A lavagem do espaço é um ato de consagração; e também de emanar a purificação do espaço devido ao seu caráter litúrgico de renovação, melhoria, paz e humanidade”, explica o babalorixá. A água utilizada para o ato é consagrada através de orações (aduras), rezas e louvores, e em sua composição há seiva de alfazema ou essência da folha de laranjeira.
Não somente como um ato religioso, mas também como de reconquista de espaço. Aqueles que a construíram – os negros, descendentes de africanos e remanescentes escravos – não tinham qualquer acesso. Limpavam o caminho e todo o espaço para que seus senhores fossem à igreja e esperavam do lado de fora. “É uma reconquista do espaço através de novos ancestrais. É importante marcar o espaço com as novas gerações que conquistaram a liberdade de expressar o seu rito religioso”, explica.
A programação é recheada, se estendendo das 6h ao meio-dia. No amanhecer, às 6h, acontece a concentração no Centro Cultural Casa Cuiabana, com um café da manhã até às 7h30, contando com a presença dos povos de santo, secretários de Cultura (municipal e estadual) e outras autoridades. Já às 8h, se reúnem na Avenida Coronel Escolástico, e na bifurcação sentido igreja realizam-se os primeiros louvores, pedindo licença para acontecer o ato, um adura de boas-vindas e durante toda caminhada até a igreja louvores em orubá, as cantigas dos orixás.
Ao chegarem ao alto do pátio da igreja, serão cantados hinos católicos em louvor a São Benedito. O encerramento é previsto para as 12h15, e logo após seguem para o Clube da Caixa Econômica para uma confraternização com muita feijoada.
“As religiões de matriz africana e cultura afro, em nome do Grupo Cultural Kuntakité e da presidência da Comissão da ‘Lavagem do Rosário’ tem a honra de convidar todos os povos para abraçar esse ato de paz, amor e fé entre todos os povos; e que se combata a intolerância religiosa e o preconceito”, convida o babalorixá Paulo T’Osumare.
Quebra de preconceito
O candomblé e a umbanda são tradições religiosas de origem africana alvo de preconceito de muitos. Em muitos casos essa intolerância religiosa ocorre porque a grande maioria sequer conhece essas religiões que tanto condenam.
“O nosso ato não é de combater nenhuma das religiões, é professar a nossa. É quebrar o paradigma dessa distância, desse falar mal, dessa intolerância. Porque seria mais fácil se as pessoas nos perguntassem como acontece o nosso rito, por que nós usamos branco, por que às sextas-feiras nós não comemos carne vermelha, por que o nosso luto é branco ao invés de preto”, desabafa Paulo T’Osumare.
Para ele, a Lavagem do Rosário é uma grande oportunidade para esclarecer todos esses pontos.
Resgate
A lavagem de escadarias é um ato bem tradicional em algumas cidades brasileiras, como na Bahia, onde acontece a famosa lavagem na Igreja de Nossa Senhora do Bonfim, com quase 250 anos de tradição. Aqui em Cuiabá, o ato caminha a pequenos passos para se firmar na cidade. Há 15 anos houve a primeira tentativa de realizar a lavagem. Na época, o ato durou somente uma edição e foi retomado somente no ano passado.
Em 23 de abril daquele ano, as lideranças de matrizes africanas foram convocadas para formar um grupo para retomar a lavagem, promovendo uma interação entre as demais religiões. A Lavagem do Rosário é realizada através da Associação da Umbanda de Mato Grosso (Assumat), Associação de Cultura Afro de Candomblé e Umbanda Várzea-Grandense (Acacuv), e pelo Grupo Cultural Kuntakité.
Festa de São Benedito
A Lavagem das Escadarias da Igreja de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário antecede a Festa de São Benedito, que acontece entre os dias 28 de junho e 1º de julho. A festa, neste ano, contará com os músicos da Orquestra de Violas – Cultura Caipira de Valinhos. Tradicionais atividades como missas pela madrugada, procissões, apresentações e feira gastronômica com comidas típicas da região também estão previstas na programação.