Cultura

Gilberto Gil: ‘Só a partir da vacinação coletiva é que a gente pode fazer festas’

O belo disco Obatalá – Uma Homenagem à Mãe Carmen foi lançado em 2019 como uma ode aos orixás, sendo Obatalá o pai da criação, e à Mãe Carmen, ialorixá do terreiro do Gantois da Bahia, importante representante do candomblé no País e filha da lendária Mãe Menininha. Contando com um grande elenco da MPB, incluindo nomes como Gilberto GilCarlinhos BrownMarisa MonteAlcioneGal CostaDaniela MercuryJorge Ben JorIvete Sangalo e Zeca Pagodinho, o álbum reúne canções entoadas no idioma iorubá e outras em português, levando a cultura dos terreiros para a canção popular.

O projeto deu origem ainda ao documentário Obatalá, o Pai da Criação, que a GloboNews, em parceria com Gege Produções, exibe neste domingo, 10, às 23h. Com registros inéditos de bastidores e depoimentos, o filme, em P&B, assim como já fazia o disco, reforça a importância do candomblé e da ancestralidade africana, tendo como símbolo de referência – e resistência – o terreiro do Gantois. Vale ressaltar aqui: o filme foi feito antes da pandemia. Filho de Xangô, Gil, aos 78 anos, falou por telefone, ao Estadão, sobre o documentário – e o reencontro musical com Jorge Ben Jor, 44 anos depois de eles gravarem o disco Gil & Jorge – Ogum, Xangô.

A questão da intolerância é uma das discussões trazidas no documentário. Você tem uma fala ali em relação a uma nova tendência de busca de hegemonia religiosa no País, com ênfase político-religioso. Mas há também a questão do racismo, sendo o candomblé uma religião de matriz africana, não?

 

Também, claro. Um dos traços básicos da rejeição a manifestações de matriz africana é o racismo. Essa questão da defesa dos interesses religiosos em relação ao candomblé e seus derivados é uma coisa que vem desde a hegemonia católica. Agora, essa hegemonia católica foi desafiada pelo pentecostalismo, que chega com novas estratégias políticas, de luta, e esses ataques, essa ameaça a essas manifestações afro-brasileiras recrudescem agora com essas novas ambições desses grupos neopentecostais, políticos. 

Por falar no tema, temos visto uma grande repercussão contra atos racistas, muito tem se falado sobre antirracismo, e isso tudo tem sido potencializado pelas redes sociais. Como você tem visto essas manifestações?

Há pelo menos dois aspectos relevantes nisso tudo. Primeiro é a capacidade crescente de conscientização e mobilização dos próprios setores, dos próprios grupos negros afro-americanos, afro-brasileiros, afrointernacionais de um modo geral, atuando nos vários países. Toda essa mobilização, todo esse surgimento mais evidente de uma indignação resultam nisso, no crescimento dessa atuação dos grupos negros. A segunda questão é também o crescimento de uma solidariedade cada vez maior dos setores não negros, das sociedades contemporâneas, no mundo inteiro. São brancos, mestiços, etc., do mundo inteiro, que solidarizam cada vez mais com a luta negra, que reconhecem cada vez mais os direitos de inserção plena desses segmentos nas vidas nacionais, nas sociedades nacionais. A luta negra é cada vez menos uma luta negra e cada vez mais uma luta das sociedades por inteiro. 

Outro aspecto importante tratado no documentário diz respeito ao matriarcado, da figura da mulher nos terreiros do candomblé, e como isso vem de gerações. 

Com relação a essa questão da forte presença matriarcal, nessa institucionalidade do candomblé, das religiões afro-brasileiras, tem aí também uma aliança importante com o feminismo, com toda essa emergência da força feminina. Há uma ligação direta entre o prestígio crescente dessas entidades, tipo as mães de santo importantes, e a causa feminista. Então, também tem isso: o matriarcado clássico vindo lá de trás, do candomblé, se associando, desaguando nessa coisa do feminismo contemporâneo. 

O disco promoveu um reencontro seu com Jorge Ben Jor, que disse que foi levado à Bahia por Iemanjá (no dia 2 de fevereiro), e por isso acabou participando do disco. Fale desse encontro, que foi totalmente por acaso, não?

Totalmente. O interesse profundo de Jorge Ben por todas essas questões é uma coisa muito conhecida por nós. Ele é um dos grandes mentores desse discurso do engajamento na luta negra no Brasil com seu modo próprio, bem particular através de suas músicas. Ele queria ver a festa de Iemanjá na Bahia, ligou para nós e disse: estou indo, vou ficar aí com vocês. Coincidentemente, esse dia era o dia que eu ia gravar uma das faixas. Na hora, ele disse: vou com você. E foi. Ele participou (de ‘Odu Re Odure Ayelala / Orixá Oxalá’), ensinamos para ele na hora o canto, as palavras em iorubá, e ele gravou. 

 

Gilberto Gil
Gil e Jorge Ben Jor em reencontro musical no projeto depois de décadas. Foto: André Sant' Ana

Você tem forte relação com o candomblé, mas há um sincretismo na sua vivência. Você já disse em música que ‘minha religião é a luz na escuridão’. Fale da sua relação com as religiões.

Para muitos da minha geração, a aproximação com o candomblé é feita por essa dimensão mais sincrética que você menciona. Pelo fato de ter já, na tradição da música baiana, uma forte presença dos elementos ligados ao candomblé, dos ritmos, dos temas, dos nomes dos orixás. Então, a minha geração cresce ali na Bahia convivendo com esse sincretismo: Oxalá com Senhor do Bonfim, essa aproximação entre o catolicismo popular e o candomblé. Tudo isso foi porta de entrada para essa minha geração. Então, o sincretismo é uma porta de entrada para esse interesse mais direto, mais profundo, mais específico em relação ao candomblé. A religião para mim é essa conversa permanente entre todas as manifestações do desejo da transcendência, do desejo da religação com uma essência primordial. E, entre isso tudo, o candomblé, sem dúvida alguma, participando de uma forma muito grande, porque é um segmento importantíssimo da formação brasileira do ponto de vista do povo, da raça brasileira, da cultura brasileira. 

Numa entrevista, Flora Gil (mulher de Gil e diretora do projeto ‘Obatalá’) disse que o carnaval para família Gil só após a vacina. 

É, Flora e todos os meus filhos, e essa comunidade em torno da família, vêm fazendo há 20 e tantos anos o carnaval e agora darão essa parada e, se eventualmente voltarem a fazer, só será depois que as questões sanitárias estiverem propriamente resolvidas. 

Para você, é o que faz sentido: não é possível fazer carnaval sem a vacinação.

Até que a gente tenha uma imunidade de rebanho, que acho que só a vacina pode garantir. Só a partir dessa imunidade coletiva é que a gente pode fazer as festas. Enquanto a contaminação estiver ainda em alta, como é o caso, não dá para fazer essas coisas. Uma das reclamações mais fortes que a gente faz hoje, todos os segmentos mais sensatos da sociedade brasileira, é isso, com relação a esse descuido, a esse descaso em relação a aglomerações. O carnaval é a maior aglomeração possível que a gente tem no País. 

Você tem visto esses vídeos de festas que têm acontecido, de aglomerações? O que sente em relação a isso?

Tenho, aqui e em vários outros lugares do mundo. Há várias maneiras de reagir a isso. Primeiro com uma certa indignação pelo fato de que as pessoas sejam tão descuidadas, tão negligentes em relação aos cuidados. Também por outro lado, uma reação de compreensão, as pessoas não habituadas a esses regimes de obediência a protocolos, uma falta de cultura de vivências desse tipo. Não é toda hora que a gente tem pandemias ou coisas desse tipo que obriguem as pessoas a adotarem regimes rígidos de disciplina. Então, tem os dois sentimentos. 

Assim que você for vacinado, qual a primeira coisa que pensa em fazer?

Não tenho pensado nisso, não. Outro dia alguém me perguntou isso e eu disse: no dia em que eu tomar a vacina, a primeira reflexão mais imediata que vou fazer é com relação à manutenção dos cuidados: uso da máscara, cuidado com as aglomerações, porque os resultados efetivos da vacinação só virão tipo um ano depois, se pelo menos mais da metade da população esteja vacinada. 

Você tem feito composições neste período?

Não, a única composição que eu fiz foi uma música com Ruy Guerra (Sob Pressão) para Sob Pressão – Plantão Covid. Até agora só isso. 

Você fez EP com sua neta Flor. Tem sido um período produtivo de outras formas, com muitas lives, mas não para compor?

Compor, não. Não sinto impulso ainda. Preciso sossegar um pouco mais, desviar um pouco a atenção. Essa atenção muito concentrada nos cuidados que temos que ter. Quando passar um pouco isso, acho que então a mente e a alma vão dar espaço a outras coisas, à parte mais criativa mesmo, mais inspiracional, digamos assim. 

Redação

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Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.

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