Alex Tajra
O Tribunal Superior do Trabalho confirmou, no final de maio, o uso de geolocalização — ferramenta de GPS disponível nos telefones celulares — para comprovar se o trabalhador esteve, de fato, em determinado local até determinado horário, o que consiste em prova robusta para julgar pedidos de horas extras e adicional noturno, por exemplo.
No caso julgado pela Subseção II Especializada em Dissídios Individuais (SDI-2) da corte, os ministros decidiram, por maioria de votos, que a busca pela verdade processual (no processo em discussão, a comprovação das horas extras trabalhadas pelo empregado) respalda a produção de prova digital de geolocalização, e que esta não viola a intimidade e a privacidade do trabalhador. Os processos que contêm esses dados, no entanto, devem correr sob sigilo, e as informações dos celulares devem se restringir aos dias postulados na ação — que, no caso concreto, discutia se um banco poderia pedir a um ex-empregado prova de geolocalização para confirmar se ele estava nas dependências da empresa nas horas em que alegava estar trabalhando.
Para os especialistas no assunto entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico, a autorização do uso dessa ferramenta pode ajudar o empregado a comprovar que cumpriu jornadas muito longas, mas também dá à empresa — sempre o lado hipersuficiente na ação — o poder de acessar a intimidade do trabalhador. Em alguns casos, a geolocalização pode ser uma espécie de “cavalo de troia” contra o empregado.
Essa situação é ambígua porque já há decisões de segunda instância autorizando o trabalhador a usar esse tipo de prova digital em seu favor; agora, por outro lado, o TST respaldou o uso pelas empresas para averiguar se as demandas procedem.
Paridade ilusória
Em tese, empregador e empregado têm a mesma possibilidade de solicitar a geolocalização para provar determinado argumento. Essa suposta paridade, porém, não deve se observar na prática, já que a não comprovação das alegações do autor da ação resulta obrigatoriamente em indeferimento do pedido, enquanto para a empresa não há previsão legal nesse sentido, conforme destacou o procurador do Ministério Público do Trabalho Ilan Fonseca.
“A regra da produção de prova dirá que se o autor (empregado) não lograr provar o que está afirmando, a consequência será a negação do seu pedido (art. 333 I do CPC)”, afirmou ele. “E me parece que a decisão do TST contradiz a proteção que a SDI-2 conferiu a plataformas digitais, em caso que pode ser trazido à comparação. Na ocasião, buscava-se identificar a subordinação de motoristas de app através de perícia técnica nos algoritmos e códigos-fonte da plataforma.”
Para Fonseca, ainda que haja uma impressão de situação benéfica para o trabalhador em outros casos (produção de prova em seu favor), a abertura desse precedente é negativa para ele.
“Se, para empresas, a exposição de tais dados pode comprometer a competividade no mercado em que atuam, para o cidadão trabalhador isso é ainda mais agudo. A devassa em dados de geolocalização do obreiro pode comprometer aspectos de sua intimidade e privacidade em definitivo, torná-lo vulnerável, expor a sua imagem, gerar conflitos interpessoais e familiares, entre outras consequências imprevistas.”
Daniela Poli Vlavianos, sócia do escritório Poli Advogados & Associados, acredita que o balanço da decisão é positivo para os trabalhadores porque garante o direito ao acesso a uma prova irrefutável sobre sua presença no local de trabalho, entre outras vantagens. Ela, no entanto, também tem preocupação com a violação da privacidade, o que pode gerar uma cultura de vigilância.
“A geolocalização fornece uma prova objetiva de onde o trabalhador estava em determinado momento, auxiliando na comprovação de horas extras, deslocamentos e intervalos. Por outro lado, há preocupações legítimas sobre a invasão de privacidade. O monitoramento contínuo da localização do trabalhador pode ser considerado intrusivo e desnecessário, especialmente fora do horário de expediente. Isso vai gerar um ambiente de vigilância constante, prejudicando a relação de confiança entre empregador e empregado.”
Limites necessários
O acórdão proferido pelo TST não encerra o assunto, mas oferece, pelo menos até o momento, a principal perspectiva para a Justiça do Trabalho tratar do tema. Daniela entende que, para sanar o desequilíbrio entre as partes que pode ser causado pela geolocalização, é necessária uma limitação de como e por quais razões se utiliza a ferramenta.
“Para conciliar o uso da geolocalização com o princípio da privacidade, é essencial estabelecer limites claros e rigorosos sobre como e quando essa tecnologia pode ser utilizada. Os trabalhadores devem ser plenamente informados sobre o uso da geolocalização, incluindo quais dados serão coletados, como serão utilizados, e por quanto tempo serão armazenados. O consentimento deve ser explícito e revogável a qualquer momento”, argumentou a advogada.
Felipe Mazza, coordenador da área trabalhista do EFCAN Advogados, destaca que é mais comum a Justiça autorizar o trabalhador a produzir provas “menos convencionais”, como é o caso da geolocalização. E ele observa que, no caso julgado pelo TST, o tribunal permitiu a produção da prova pelo empregador por causa da posição do trabalhador, que era de gerência.
“Diante da alegação do banco, relativa à ausência de controle de jornada — pelo exercício do cargo de confiança —, entendeu-se pelo deferimento da produção da prova requerida pelo empregador, uma vez que havia controvérsia em relação à obrigatoriedade ou não de manter controle de frequência escrito, relativizando-se a regra de distribuição de ônus da prova, que nesse caso, via de regra, seria do empregador.”
Segundo Mazza, ainda que represente um avanço para resolver questões como jornadas abusivas, o método deve ser usado pelos magistrados “com total parcimônia, restringindo-se a determinados horários e datas, bem como garantindo às partes o sigilo das informações”.
Mauricio de Figueiredo Corrêa da Veiga, da banca Corrêa da Veiga Advogados, afirma que o uso desse tipo de prova é consequência da influência da tecnologia no Direito. Para ele, é um mecanismo que auxilia na “busca da verdade processual”.
“É uma ferramenta que auxilia na busca da verdade. A SDI-2, no acórdão, já adotou como fundamento a possibilidade de utilização desse meio, e numa ponderação, entendeu que aquilo, por si só, não viola a privacidade do empregado. É interessante também que você pode ter outros meios (digitais) para produção de provas. Tudo o que a tecnologia puder auxiliar na busca da verdade processual vai ser positivo e gerar segurança jurídica para todas as partes envolvidas.”
Fissura da prova
A discussão sobre a produção de provas irrefutáveis faz parte de um debate mais amplo sobre o momento da Justiça do Trabalho. Estudos como o “Justiça em Números”, do Conselho Nacional de Justiça, mostram que a rescisão contratual é o tema que mais sobrecarrega essa ala especializada do Judiciário.
O maior acesso a informações — e, consequentemente, à Justiça —, o estabelecimento de novas formas contratuais a partir da reforma trabalhista e as rotineiras violações à CLT são alguns dos fatores que explicam os números. A baixa qualidade da produção de provas, enfermidade que atravessa o Judiciário como um todo, é outro ponto discutido, e resvala no uso da geolocalização.
“A utilização das provas obtidas por meios digitais funciona como um freio à prova testemunhal e ao próprio relato feito pelo autor na petição inicial, muitas vezes exagerado ou até mentiroso”, disse o advogado Moisés Campelo, do escritório Serur Advogados.
“A Justiça do Trabalho foi pioneira na utilização das provas digitais, desenvolvendo programa próprio, que filtra os dados enviados pelas operadoras de telefonia, por exemplo, para trazer aos autos apenas aquilo que interessa ao processo.”
Para Campelo, não é possível falar em violação de privacidade, já que o Supremo decidiu que não existe “direito absoluto” nesses casos, sendo discricionário ao magistrado apontar a ponderação no caso concreto. Assim como os ministros do TST, ele julga correto que o dispositivo esteja à disposição das partes de forma igualitária.
“No âmbito do Direito Processual, vige a regra da paridade de armas, de modo que não pode haver parâmetros diferenciados para empregado e empregador, devendo a produção das provas digitais ser autorizada pelo juízo sempre que se mostrar proporcional e adequado ao caso concreto, e contanto que fique limitada especificamente a provar as alegações do autor, sem se imiscuir em outros dados que não tenham relevância para o deslinde da causa.”
Processo 23218-21.2023.5.04.0000
Alex Tajra é repórter da revista Consultor Jurídico.
Fonte: CONJUR
Foto: Pichaya Peanpattanangkul