Jurídico

Em 1941, cuiabana precisou provar virgindade para não ter casamento anulado 

No ano de 1939, quando Getúlio Vargas governava o Brasil após o golpe que instaurou o chamado ‘Estado Novo’, Pedro*, um comerciante de Cuiabá, conheceu a jovem Florinda*. Após o encantamento inicial, começaram a namorar, o relacionamento ficou cada vez mais sério e acabaram ficando noivos. Foram dois anos juntos, comprando enxoval para a futura casa em comum, até a chegada do tão sonhado casamento. O aguardado enlace foi selado em uma sexta-feira (27 de junho de 1941) e, no dia seguinte, Florinda foi devolvida à própria mãe pelo marido. A acusação: não ter se casado virgem. 

Essa é mais uma das histórias contidas no Arquivo do Fórum de Cuiabá, descobertas por meio do projeto Memória Judiciária, desenvolvido pela Coordenadoria de Comunicação do Poder Judiciário de Mato Grosso, e que integra a séria especial “145 anos: o Judiciário é história”, em comemoração ao aniversário do Tribunal de Justiça (1º de maio de 1874). A narrativa demonstra os avanços sociais obtidos nas últimas décadas, em especial pelas mulheres, que, como Florinda, se viam vítimas de uma sociedade extremamente machista e opressora.

Na segunda-feira seguinte ao casamento, em 30 de junho de 1941, a ‘Acção Ordinária de Nulidade de Casamento’ foi autuada no Juízo de Direito da Comarca da Capital. “Tremenda, entretanto, foi a sua decepção, quando ao realizar no seu leito conjugal o ato que constitui a função principal do matrimônio, chegou a dura realidade de que fora enganado, encontrando sua esposa desvirginada”, alegou o advogado na peça inicial. Pedro acabou devolvendo a esposa à família dela, “por repugná-lhe aceitá-la como tal”. O homem alegou ter sido enganado durante todo o período de noivado, pois a noiva teria ocultado “a sua prometida tão grave falta – a mácula de sua desonra”.

Nessa mesma segunda-feira o juiz responsável pelo caso mandou que Florinda fosse citada para contestar a ação. No dia seguinte, não obstante ter sido devolvida à própria família no dia seguinte ao casamento, a mulher ainda teve que passar por um segundo exame, pleiteado pelo marido, como medida preventiva.

Pedro queria saber as respostas para três perguntas: 1) Estando a suplicada desvirginada, é antigo ou recente esse desvirginamento? 2) Há quanto tempo? 3) Tendo o casamento se realizado no dia 27 deste, em cuja noite teve o suplicante relações sexuais com a suplicada, é possível que o defloramento se tenha dado em praso (sic) tão recente, isto é, no referido dia 27?.

Dois peritos foram nomeados para realizar o exame: os médicos Agrícola Paes de Barros e Antonio de Pinho Maciel Epaminondas, assim como um assistente técnico indicado por Pedro. Ao contrário do que pensava o marido, eles responderam que o ‘desvirginamento’ seria recente, com menos de oito dias, e que seria possível que Florinda tivesse tido sua primeira relação sexual exatamente no dia do casamento.

Ao contestar a ação judicial, a defesa de Florinda destacou os predicados da mulher e questionou a boa fé do noivo. “Moça modesta, de vida recatada e de conduta irrepreensível, qual não foi o seu abalo moral ao ver, quando de sangue tinto ainda o lençol do leito conjugal, selo do seu desvirginamento, conduzida, como se rameira fosse, à casa materna e entregue à família, como uma despudorada. De quanto é capaz a miséria humana! (…) O autor conhecia a verdade: ser a contestante virgem. O seu modo de vida irrepreensível e o próprio ato sexual com resistência e derramamento de sangue não deixaram dúvida. Acrescente-se a isso o exame pericial presidido por V. Excia, com assistência do Dr. Promotor de Justiça e levado a efeito pelos médicos legistas oficiais, do conhecimento imediato do autor”, ressaltou o advogado de Florinda.

No total, ela teve que se submeter a dois exames, com peritos distintos, que comprovaram sua recente perda de virgindadeO primeiro exame médico legal feito na paciente, no dia seguinte ao casamento, também constatou “defloramento recentíssimo (menos de 24 horas)”.

Chamam atenção detalhes do processo, como o fato de Florinda ter apresentado o lençol e uma roupa utilizados na noite de núpcias, manchados de sangue, para supostamente comprovar que até então ela não tinha tido relações sexuais. “Que o próprio lençol do leito nupcial de hontem e que será apresentado a esse juízo, tinto de sangue do imen (sic), é prova irrefragável da grande infâmia que lhe atira o seu noivo de hontem hoje marido”,narra trecho do processo.

Apesar de todo o transtorno causado à vida de Florinda e de sua família, em 11 de agosto de 1941, menos de dois meses após a ação ter sido ajuizada, o advogado de Pedro apresentou uma petição desistindo da ação ordinária de anulação de casamento anteriormente proposta. Ele explicou que Pedro teria se reconciliado com a esposa, “por ter verificado a improcedência da referida ação, cujo laudo pericial junto aos respectivos autos bem demonstra o equívoco do suplicante”. Ou seja, mesmo após ter passado por situação extremamente vexatória e ter sua intimidade exposta, Florinda, vivendo à época numa sociedade conservadora e machista, ainda assim preferiu manter o casamento a viver como mulher divorciada.

*Os nomes foram alterados para preservar a identidade das partes.

Redação

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