Ser e se perceber. Essas são palavras que podem ajudar a definir o que é a identidade de gênero. Transgêneros são aquelas pessoas que não se identificam com as características biológicas que possui desde o nascimento, como Lupita Amorim, uma mulher transexual e negra de 20 anos, que sente a violência velada em seu dia a dia em Cuiabá por ser quem sente ser.
Moradora de Várzea Grande, Lupita é estudante de Ciências Sociais na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), em Cuiabá. Então, quase todos os dias, ela transita entre as duas cidades e diz sentir diferença no tratamento entre as pessoas, mas isso piora na Capital.
“Eu me sinto a mesma nos dois lugares, mas em Cuiabá parece ser mais violento. É violento através dos olhares, dos gestos, eu vejo as pessoas mudando de lado… Eu sou uma trans negra, então rola também essa questão do racismo junto da transfobia”, relata.
Lupita conta que assumiu sua identidade no final de 2016 e o seu nome foi escolhido em homenagem a atriz Lupita Nyong’o (12 Anos de Escravidão; Pantera Negra, entre outros filmes) e diz que seu nome significa “Negra como a Noite”.
Em casa, para a família, ela diz que sua mãe e sua avó aceitam ela ser quem é e seu pai ainda passa por um processo para compreender tudo o que vem acontecendo com a filha. Ela busca se impor, com paciência, e se afirmar para poder conquistar o respeito da sociedade como um todo.
A estudante relata que quando iniciou suas aulas na UFMT acreditou que seria bem aceita, passaria a ter o respeito, mas teve um desencanto. Lupita compartilha que ainda não tem o nome que escolheu em seus documentos, por isso entrou com um pedido para a UFMT alterar na instituição de ensino. Enquanto a burocracia acontecia, uma professora se recusou a alterar o nome da estudante na lista de chamada. Ou seja, em todas as aulas da disciplina, apesar de Lupita ser uma mulher, ela tinha que responder por um nome masculino.
“Nem todas as pessoas trans se sentem a vontade de gritar para o mundo que são trans. Agora eu consigo me impor mais, sempre consegui chegar aos espaços e me auto afirmar, me colocar, mas enfrento dificuldades ainda. Rola uma aceitação maior das pessoas quando a gente se coloca, mas vai da personalidade de cada pessoa”.

(Foto: Muryllo Lorensoni)
Ainda sobre seu nome, ela conta que enfrenta várias questões por conta do nome de registro. “Todos os dias eu tenho que fazer essa autoafirmação de que esse é o meu nome. Eu estou contando a minha história a partir dele. E é muito bom, eu percebo a diferença da época que eu tinha um nome que não me representava”.
Sempre que chega a um espaço ela precisa se identificar. A universitária diz sentir muita falta de empatia de outras pessoas. Muitos antes de saber o nome dela já a identificam enquanto homem e a tratam de tal forma, ai Lupita precisa de paciência para explicar que não é assim.
“Eu acredito que é total falta de empatia. Se você olha para mim e percebe que sou uma pessoa diferente, você pode até não saber se chama no masculino ou no feminino, mas pergunta ‘como você quer que eu te trate? ’. É o mínimo”.
Enquanto não altera o seu nome em sua documentação, o que pretende fazer ainda este ano, precisa passar por situações constrangedoras, como quando vai ao médico.
“Eu tenho que chegar, dar uma respirada e pedir para me tratar de tal forma. ‘Eu sei que não está ai, mas eu gostaria que fosse dessa forma para que eu fique mais confortável’. Não tive nenhum caso de médico que não me respeitou, mas conheço pessoas que já passaram por situações constrangedoras”.
Lupita diz que sente o preconceito em situações veladas, pessoas que tentam diminuí-la e silenciá-la. Relata conviver com pessoas cisgêneros, que se identificam com as características biológicas, e brancas que esquecem que a estudante é a minoria ali dentro. Ela desabafa que as pessoas precisam se habituar a ter pessoas trans convivendo com elas nos espaços comuns do cotidiano.
“Eu gostaria que as pessoas ouvissem mais as trans e negras, ouvissem o que a gente tem para falar. É uma pessoa trans, não um monstro de sete cabeças. Se não tiver respeito, como vamos construir algum diálogo, alguma relação?”.
A luta pela causa trans
A transexualidade foi retirada há pouco mais de um ano na lista de transtornos mentais da Organização Mundial da Saúde (OMS). Transgêneros e travestis são pessoas que não se identificam com as suas características biológicas, ou seja, ela pode ter nascido em um corpo masculino, mas se percebe enquanto mulher e vice-versa.
Existe a cirurgia de redesignação sexual, onde são alteradas as características genitais do indivíduo, todavia não é necessário que a pessoa realize a cirurgia para se identificar como transexual. Para saber com qual “T” a pessoa se percebe, tem que perguntar.
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(Foto: Arquivo pessoal)
Keila Simpson é presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra) e reconhece que ser transexual, não apenas no Brasil, mas por todo o mundo é difícil.
“A pessoa trans é alvo de chacota, de escárnio e de violências porque tem uma bandeira hasteada no próprio corpo. Sem falar que aqui no Brasil as pessoas são violentadas todos os dias e passam por diversas dificuldades. Há o agravante da naturalização da violência”, diz.
Keila fala sobre decisões judiciais que favorecem a população trans e que reconhece a importância disso, mas falar sobre uma legislação voltada aos LGBTQIA+ é sempre voltado ao polêmico.
“Ser uma pessoas trans no Brasil é viver uma contradição. Contradição do ilegal com o legal. Da ilegalidade que a sociedade passa para as pessoas e da legalidade que nós teimamos e resistimos em existir”.
Uma das maiores lutas da Antra é o reconhecimento do nome social, cujo Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu em 2018 que todo cidadão tem direito de escolher a forma que deseja ser chamado. Pessoas trans podem alterar o nome e o sexo no registro civil sem que se submetam a cirurgia.
“É muito bom quando a gente vê uma pessoa trans pega seu registro de nascimento e lá constar o nome que ela sempre quis, que ela reivindicou. O reconhecimento do nome civil parte do pressuposto de respeitar a pessoa como ela é”.
A presidente diz que a sociedade ainda associam as pessoas trans muito ao órgão genital. “Estamos além do genital, do binarismo, de gênero que se entende como masculino e feminino. Tem todas as diversidades que estão por ai”.
Keila observa que a Antra também luta pela fomentação de educação e empregos para as pessoas trans. É a busca pela possibilidade de frequentar a escola, a universidade, com respeito e dignidade, e também de formalizar o mercado de trabalho para uma população que sente seus direitos negados diariamente.
Além disso, a busca pelo mapeamento e contabilização de assassinato de travestis e transexuais no Brasil. “Quando estamos em posse desses números podemos mobilizar a opinião pública e gestores para mostrar uma parcela da população que está sendo assassinada”.
Um levantamento da Antra, sobre a violência e assassinato de pessoas trans mostra que em 2018 foram subnotificados 163 assassinatos de pessoas trans no Brasil. Sendo 158 travestis e mulheres transexuais, quatro homens trans e uma pessoa não binária. Apenas 15 dos casos tiveram os suspeitos detidos, o que representa 9% dos casos.
O estado do Rio de Janeiro foi o que mais matou a população trans, foram 16 casos. Em Mato Grosso houve oito mortes. Por outro lado, o estado lidera o ranking de assassinatos quando se fala em mais proporções de pessoas trans para cada 100 mil habitantes.