No escoar da escrita dos diários, em um ambiente caótico que ora lhe era familiar, ora lhe era desesperançoso, Tolksdorf refletiu sobre o destino dos povos indígenas: ‘o fuzil vencerá a flecha, e o que vem vindo em seguida, não é para entrar na história de glória de um povo’. E, ainda: ‘Quanto sangue já foi derramado aqui e será derramado ainda. Para que?’. Em relação à extração da borracha em territórios indígenas, compara-a a uma ‘guerra em miniatura’, ‘uma guerra cruel’. Um ‘odioso empreendimento etnocidário’ expressão tomada por empréstimo de Mário de Andrade.
Diários de Fritz Tolksdorf: uma vida no Arinos. Comecemos pela capa? Por que não? Afinal, é ela quem recepciona o leitor ao universo das letras. Prossigamos. Uma fotografia originalmente em preto e branco, de autoria desconhecida: Fritz Tolksdorf às margens do rio Arinos – ou seria um de seus afluentes? – oferece água em recipiente de alumínio a duas crianças, possivelmente irmãs e pertencentes ao povo Rikbaktsa. Em primeiro plano, a artista plástica Adriana Milano oferta-nos com uma orquídea, do gênero oncidium cebolleta, nativa de clima quente e úmido e que tem como suporte um vegetal, ainda que não retire dele nutrimentos. A decisão de unir Fritz Tolksdorf, crianças indígenas e orquídea junto ao rio, este, naquela época, um importante meio de acesso à região do vale do Arinos, ocorreu de escassas passagens no diário do alemão de Göttingen. Ainda assim, foram suficientes para esticar a pesquisa até os diários de Margaret Mee (1909-1988), quem coletou, junto à antropóloga brasileira Vilma Chiara (1927-2020), espécies de bromélias e orquídeas, dentre elas, oncidium cebolleta. Em 1962, Fritz, Margaret e Vilma se encontraram na floresta Amazônica. É desse ano a denúncia da artista botânica inglesa ao testemunhar marcas de destruição ambiental com o emprego de agrotóxicos e conflitos pela posse da terra entre não indígenas e indígenas. Foi nesse momento que teve conhecimento de que fazendeiros forneciam alimento envenenado aos indígenas, com o propósito de eliminá-los. A orquídea oncidium cebolleta apresenta-se, também, como um marcador da presença do povo Rikbaktsa.
Sessenta e três anos se passaram desde o último ano em que Fritz escreveu em seu diário. Trinta e três anos após sua tradução do alemão para o português. Agora o livro chega apresentado pelo antropólogo Aloir Pacini SJ, estudioso da atuação jesuíta no Estado de Mato Grosso. Dividido em três partes, a primeira, “Olhares sobre Fritz Tolksdorf”, apresenta textos de Loike Kalapalo, filho adotivo de Fritz Tolksdorf, João Carlos Barrozo, Tarcísio Baltazar e Rubens Barbosa, Anna Maria Ribeiro Costa e José Eduardo Fernandes Moreira da Costa. Esses escritos avulsos descrevem suas vivências junto ao alemão, seja como fruto de convivência em família, no trabalho indigenista ou por seus diários em versão datilografada.
Friedrich Paul Tolksdorf, mais conhecido por Fritz Tolksdorf, nasceu em Göttingen, cidade com relação histórica com Vestfália, na Alemanha, em 1912. Chegou ao Brasil em 1936, mas somente em 1958 seguiu para Mato Grosso para trabalhar na recém-instaurada Gleba Arinos, mais tarde Porto dos Gaúchos. É essa localidade que Fritz Tolksdorf vai descrever sua permanência na floresta Amazônica, em situações bem precárias, em vivências entre colonos, seringueiras e povos indígenas: Apiaka, Kaiabi, Rikbaktsa e Tapayuna.
No decurso do trabalho de organização dos diários, uma dezena de leitura foi realizada com a finalidade de compreender o desencadeamento da história escrita por Fritz, diante do número gigantesco de personagens indígenas e não indígenas, a maioria grafada apenas com seus prenomes ou apelidos. O conjunto documental de Tolksdorf foi lido inúmeras vezes pelos organizadores, com o intuito de definir sobre a necessidade do uso de notas de rodapé e de caixas de diálogo. Assim, aos textos dos diários foram acrescidas “nota dos organizadores”, estas diferenciando-se da “nota do tradutor”. As notas de rodapé, de pouca extensão, a fim de não afastar em demasia a atenção do leitor do texto principal, exercem a função de elucidar termos que facilitem o entendimento do que ou de quem Fritz se referiu. As caixas de diálogos, componentes textuais de interação, alimentam o texto principal. A totalidade dos diários conta com 38 caixas de diálogos, elaboradas com o intuito de disponibilizar informações adicionais sobre os personagens (povos indígenas, antropólogos, etnólogos, religiosos, seringalistas, funcionários do Serviço de Proteção as Índios e da então denominada Fundação Nacional do Índio), instituições religiosas, governamentais, dentre outras.
De 1959 a 1962, Fritz Tolksdorf escreveu 6 diários, totalizando 1024 dias. No decorrer dos diários, inúmeros indígenas são grafados apenas com seus prenomes, assim como os dos seringueiros e trabalhadores da Gleba Arinos. O único indígena contemplado com caixa de diálogo é o velho líder Temeoni, do povo Kaiabi, após exaustiva pesquisa. Ao deixar o anonimato, Temeoni Kaiabi produziu a este estudo um estado de euforia, difícil de ser descrito, mas algo semelhante a encontrá-lo ainda com vida, imune à temporalidade, sobrevivente dos massacres acometidos pelas constantes invasões ocorridas em seu território. Dedicamos este livro a Temeoni, aos demais indígenas citados por Tolksdorf em seus diários e também àqueles que foram silenciados pela violência do processo de colonização instaurado no vale do rio Arinos.

Acervo de Fritz Tolksdorf
Serviço
Data: 11 de junho de 2025
Hora: 18:30
Local: Auditório do Museu Rondon de Etnologia e Arqueologia (MUSEAR)
Universidade Federal de Mato Grosso
