Cultura

Criatividade, talento e saudades… 20 anos sem a irreverência de Liu Arruda

Excêntrico, criativo, crítico, peculiar, talentoso, irreverente, único. Definições que podem representar a consagração para qualquer artista. Termos que podem, facilmente, descrever Liu Arruda. No próximo dia 24 de outubro, completa-se 20 anos da morte do ator que se inspirou no cotidiano da, hoje, tricentenária capital cuiabana para alcançar o sucesso, e que ainda assim, segue vivo no imaginário da sociedade.

O intérprete de personagens como Comadre Nhara, Juca, Gladstone, Ramona, entre tantos outros, nasceu em 30 de maio de 1957, em Cuiabá. Criado na Rua 24 de Outubro, que, coincidentemente, foi a mesma data da sua partida, Elonil de Arruda era o caçula em uma família de 10 irmãos. A paixão pelo teatro começou cedo, ainda na adolescência, quando entrou para um grupo de apresentação do Sesi, denominado “Pequenos Gigantes”. 

Um dos integrantes do elenco era o ator, escritor e pesquisador Ivan Belém. A parceria com Liu teve início nos anos 1970, mas foi interrompida por, aproximadamente, cinco anos, devido à mudança de Arruda para o Rio de Janeiro, onde cursou a Faculdade de Comunicação Social na Universidade Gama Filho.

Ivan Belém completou 40 anos de carreira em 2017

A dupla voltou a dividir os palcos nas décadas de 1980 e 1990, com o famoso grupo Gambiarra, que reuniu grandes nomes da cultura local como Claudete Jaudy, Wagton Douglas Fonseca, Vital Siqueira, Maria Tereza e Meire Pedroso. No espetáculo “Elas por Eles”, os atores criaram dois dos maiores personagens da arte cuiabana: Comadre Nhara e Comadre Creonice. Ivan, que já tem mais de 40 anos de carreira artística, conta que as senhoras foram inspiradas no período em que Liu esteve na Cidade Maravilhosa.

Liu Arruda criou a personagem de Comadre Nhara

“A Comadre Nhara, que era uma cuiabana com um sotaque carregado e com um jeito escrachado, foi inspirada no besteirol carioca, que estava em voga na época. Os shows, na maioria das vezes, eram formados por duplas de atores interpretando personagens femininos, caricatos e com um humor descompromissado”.

“Já a Comadre Creonice nasceu para ser o contraponto de Nhara. Enquanto uma tinha o linguajar forte e puxado, a outra era loira, com fala mansa e comportamento delicado. Contudo, ambas tinham o perfil de ‘malditas’, pois eram muito irônicas e críticas em relação a tudo o que acontecia na cidade”.

O entrosamento das comadres veio com a experiência adquirida no teatro de rua. Segundo Ivan, a arte popular foi primordial para o sucesso profissional de ambos. “A gente tinha muita química em cena. Levávamos ao extremo a questão de que teatro é jogo […] e isso se deve às apresentações nas ruas, que estimulam a improvisação. Nas ruas, o ator se desenvolve, pois fica sujeito a todos os tipos de situações e tem que saber como tirar tudo de letra”.

Liu Arruda interpretou cerca de 40 personagens em sua carreira

O uso do dialeto característico da baixada cuiabana em seus papeis é apontado por Belém como um dos fatores que contribuíram para o sucesso de Liu. De acordo com o veterano das artes, os personagens vividos por Arruda fez com que as pessoas valorizassem a cultura local.

“Aquele momento [do surgimento da Comadre Nhara] foi muito peculiar. O linguajar cuiabano era duramente criticado, sendo até motivo de chacota pelos que aqui chegavam. Neste período, houve um intenso fluxo migratório, quando Mato Grosso recebeu gente de várias partes do Brasil, provocando um choque cultural. Com isso, o cuiabano se sentiu intimidado dentro da sua própria casa, mas voltou a demonstrar o orgulho de mostrar o seu sotaque nas ruas, nos bares, espaços alternativos e, até mesmo, nos teatros. Isso elevou a autoestima do cuiabano”.

O ator André D’Lucca enxerga da mesma forma. Para ele, Liu conseguiu trazer de volta o modo de falar e o orgulho em ser de Cuiabá. “O grande legado dele foi resgatar o linguajar e o sentimento de ser cuiabano, com o jeito debochado, as gírias e expressões tradicionais daqui, que eram características consideradas como vergonhosas e que estavam se perdendo com a chegada de pessoas do sul do país. Ele foi um grande marco, pois todos os artistas que fazem linguajar cuiabano atualmente tem influência de Liu Arruda”, assegura André.

André D'Lucca – ator

O comediante, reconhecido nacionalmente por protagonizar Almerinda, também já atuou em peças de teatro dando vida a papeis consagrados por Arruda. André contou que a primeira oportunidade para interpretar Nhara, Juca, Ramona e Gladstone surgiu durante a Copa do Mundo de 2014.

“Fui convidado pela organização do FIFA Fan Fest para fazer um dos quatro papeis mais conhecidos dele no projeto Liu Arruda e o Linguajar Cuiabano. Porém, pedi para fazer todos os personagens e mergulhei de cabeça para interpretar o jeito de falar do cuiabano, que era algo novo para mim, até então. Passei a estudar vendo DVDs das peças antigas e conversei com ribeirinhos para conhecer mais os trejeitos. E logo depois, mudamos o nome do espetáculo para Foi um Liu Que Passou em Nossas Vidas, que foi um sucesso e acabou dando origem ao projeto Cuiabá Digoreste. A minha intenção nunca foi imitá-lo, até porque, somos muito diferentes fisicamente. O objetivo era fazer uma releitura dos papeis”, relembrou.

D'Lucca homenageou Liu Arruda no espetáculo "Cuiabá Digoreste"

André D’Lucca contou que nunca atuou com Liu Arruda e que sua mãe não o permitia assistir às obras do comediante. Todavia, ele destaca que o humorista foi uma de suas maiores inspirações para seguir na carreira artística. “Minha mãe não me deixava ver os espetáculos do Liu por considerá-lo pornográfico e boca suja. Alguns shows dele eram mais pesados, realmente. Mas, geralmente, os palavrões que os personagens dele diziam eram expressões que o cuiabano usava muito antigamente. Isso fazia com que as pessoas olhassem para os papeis de forma natural, inocente e sem maldade”.  

"O meu estilo de fazer humor foi muito influenciado por Liu Arruda, Jô Soares e Chico Anysio. Os três foram as minhas maiores referências por fazerem críticas à política de forma contundente e sagaz. Geralmente, o ator tem medo de abordar esse tema, pois a repressão é muito grande quando se trata desse assunto, mas acredito que o artista tem a obrigação de se posicionar. Depois de 10 anos de carreira como ator, senti que precisava de uma assinatura para o meu trabalho. E foi aí que passei a falar sobre temas políticos”.

Ivan Belém e André D’Lucca enfatizam que o comediante foi o grande responsável por revolucionar a cultura de Cuiabá e por despertar o interesse das pessoas pela arte, sobretudo o teatro.

“Mato Grosso era um Estado que recebia diversos artistas nacionais, a maioria da Rede Globo, que faziam excursões pelo país para fazer espetáculos, com viés comercial e sem profundidade. Após o sucesso do Liu, as pessoas passaram a frequentar o teatro, principalmente feitos por grupos locais, que abordavam temas que seduziam as pessoas por abordar a realidade na qual elas estavam inseridas”, comenta Ivan.

Os últimos momentos da vida de Liu Arruda foram marcados por problemas de saúde. O ator faleceu em 1999, em decorrência de complicações após um procedimento estético. “O Liu adorava fazer a Ramona, que era uma personagem muito sensual. Porém, em uma de suas apresentações, o figurino não lhe caiu bem e ele decidiu fazer uma lipoaspiração, contrariando a recomendação médica. Foi aí que ele contraiu uma infecção e não resistiu”.

Mesmo 20 anos após a morte de Liu, Ivan Belém destaca a saudade que sente do velho amigo. Em 2016, o escritor homenageou o companheiro de décadas ao lançar o livro Liu Arruda – A Travessia de um Bufão. “O que mais sinto falta é de dar gargalhadas com o meu amigo, das conversas e fofocas [risos] e do artista que não se calava diante das injustiças. Ele foi um grande companheiro”.

 

                                                                                  

Redação

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Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.

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