“Outra cidade dentro de Cuiabá”. Se você ainda não ouviu essa definição, um dia ainda vai escutar alguém usando essas palavras sobre a grandiosidade da região que forma o complexo dos bairros do Grande CPA.
De fato, os números comprovam que ali poderia ser outra cidade. Principalmente quando comparados com outras realidades dentro de Mato Grosso. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são seis agências bancárias, 75 mercados, oito lojas de móveis e eletrônicos, 26 padarias, 44 farmácias e 74 bares apenas nos quatro bairros que formam o complexo habitacional do Centro Político Administrativo (CPA), os CPAs I, II, III e IV.
Para entender como foi o surgimento desta “grande cidade” é preciso fazer um breve resgate histórico e descobrir que esses bairros onde vivem cerca de 200 mil habitantes surgiram de uma proposta de se criar uma nova Brasília mato-grossense.
O projeto surgiu em 1974, quando o Poder Executivo estadual era comandado pelo governador José Fontanilas Fragelli, o idealizador da região. Fragelli também foi conhecido como o governador que modernizou a antiga Cuiabá, por ter aberto grandes avenidas e feito um boom de obras na capital, antes mesmo de o Estado ser separado em outubro de 1977.
O complexo de órgãos do governo do CPA foi finalizado pelo governador José Garcia Neto, mas a inauguração dos primeiros prédios ocorreu na gestão do próprio Fragelli, em 1975. As manchetes dos jornais de época anunciavam que em Cuiabá estava sendo erguida uma “Nova Brasília”.
O ponto zero de criação da região foi o Palácio do Governo de Mato Grosso, junto com suas secretarias, denominado Centro Político Administrativo, daí a sigla CPA. Além desse propósito, a construção veio com o objetivo de estimular que as famílias saíssem da região do Centro e do Porto, expandido a cidade para outras áreas, uma vez que na época já havia pontos considerados “inchados.” Diante dessa realidade da época, junto com a sede dos poderes, veio também a construção de moradias próximas aos prédios de governo do CPA.
Na década de 1980, o perímetro urbano de Cuiabá, estabelecido pela Lei nº 2.023, de 1982, fez com que a área urbana da capital passasse de 104,98 km2 para 153,06 km2. Segundo os dados do IPDU, foi justamente a criação desses novos bairros que impulsionou esse crescimento.
Como relembra a pesquisadora Silvia Maria Pillon Garcia, em seu estudo sobre os planos diretores e o planejamento urbano de Cuiabá e Várzea Grande, “Cuiabá, como capital do Estado de Mato Grosso, não estava estruturada para receber tamanho contingente e os problemas urbanos sofridos pelas grandes cidades surgiram e se agravaram de forma rápida. Durante a década de 1970, era difícil encontrar habitação disponível, tanto na capital como na vizinha Várzea Grande. Faltava tudo, desde infraestrutura (água, luz, pavimentação…), equipamentos públicos e serviços (escolas, hospitais, creches)”. As pessoas, especialmente as mais humildes, se instalaram em loteamentos clandestinos, em áreas “griladas”, em áreas de preservação permanente e em terras públicas.
Diferente do que vemos hoje, as obras de conclusão dos prédios para a instalação das secretarias de governo levaram apenas um ano. Em fevereiro de 1975, o governador Fragelli inaugurava o Palácio Paiaguás do governo e as suas secretarias, o Gabinete da Casa Civil e Militar, o Tribunal de Contas do Estado, entre outros.
Dois anos depois do início das obras da sede do governo, em 1976, começaram as obras de construção do primeiro núcleo habitacional da região, a Companhia de Habitação Popular do Estado de Mato Grosso, a Cohab do CPA I, com 944 casas. Na época, houve grande procura por parte das famílias interessadas em ganhar uma casa no local e foram pensados modelos de novos projetos para construção de novas unidades, ampliando o programa habitacional. Com essa expansão, foram crescendo os futuros CPA II e III, até chegar ao modelo grandioso que conhecemos hoje.
Três anos depois, em agosto de 1979, as casas destinadas às famílias do CPA I foram concluídas. Com isso, 944 famílias sorteadas foram comtempladas com uma nova residência.
Os primeiros moradores da região relatam as dificuldades de serem os desbravadores dessa nova Cuiabá. José Carlos Sampaio, eleito com 451 votos pelos moradores em 2015 como um dos líderes do CPA III, foi um dos que se aventuraram na região antes mesmo que a infraestrutura prometida pelo governo chegasse aos novos bairros. O morador mudou-se para o CPA na década de 1980 é um dos moradores mais antigos do bairro.
Ele relembra que antes da mudança vivia de aluguel, próximo ao atual Restaurante Choppão, no centro de Cuiabá. “Graças a Deus, eu fui sorteado com esta casa aqui e acabei vindo morar aqui no CPA com minha esposa, desde agosto de 1982. Apesar de que no início aqui ter sido muito difícil, pois era terra pura, não tinha nem água”, conta.
Mesmo sem muito luxo, a população disputou intensamente as primeiras casas do CPA. Na época, algumas moradias construídas estavam sendo inclusive invadidas por outras pessoas. Isso motivou que o líder comunitário se apressasse mais para mudar e não perder a sua casa. “Eu peguei a chave e falei para minha esposa que tínhamos que ir logo para assumir o local e não perder nosso imóvel, ela concordou e mudamos às pressas”, relembra.
O morador conta que pagou um valor simbólico pela moradia construída. O valor cobrado pelo governo era muito pequeno, na época era tempo da moeda cruzeiro. “Sinceramente não lembro quanto era, mas era na época do cruzeiro, foi muito pouco, tinha uma taxa que pagávamos todo ano”, relembra.
Dando sequência ao crescimento, o CPA foi se expandido, se verticalizado, no final da década de 70 e início dos anos 80, foi inaugurado na região o conjunto habitacional do CPA II, na ocasião, 13 mil famílias seriam abrigadas em mais 2.654 moradias que estavam em construção. A região começava a ganhar os contornos de “nova cidade”, como é conhecida hoje.
Falta d’água e sequestro de ônibus
Embora as moradias do CPA fossem planejadas pelo governo, a infraestrutura demorou muito para chegar à região. Os moradores enfrentaram dificuldade com a falta de energia, asfalto e água. Muitos, inclusive, tinham que buscar água em outros pontos da cidade.
Houveram também grandes ações em conjunto entre a própria comunidade. Com a omissão do poder público, os moradores se uniram para construção de calçadas no bairro. Local onde havia apenas mato e lixo passou a ganhar vida com a união de todos que realizaram um trabalho conjunto.
“Era complicado passar neste local, um beco, então consegui um caminhão de areia e um de cascalho com um vereador e o cimento foi resultante da união por meio de contribuição da comunidade”, conta Sampaio.
Relatos de jornais da época também comprovam que muitas famílias desistiram de morar no CPA I e retornaram ao centro de Cuiabá por conta desses desafios. Essa desistência foi motivada pela falta de estrutura, pois outro problema enfrentado pelas famílias era ausência de comércio de produtos alimentícios, farmácias, transporte coletivo e escolas.
Quem permaneceu no CPA I teve que ser forte para esperar o progresso e a urbanização do local. Protestos de moradores marcaram esse período. Na época, apenas uma única linha de ônibus atendia todo o bairro, com horário reduzido e encerrando as suas atividades às 21h. Um dos eventos mais dramáticos foi quando um grupo de trabalhadores “sequestrou” um ônibus no centro da cidade e obrigou o motorista a dirigir até o bairro. Chegando ao CPA I, apedrejaram o ônibus pedindo mais atenção e melhorias para que as empresas colocassem mais linhas em outros horários.
Segundo dados da prefeitura de Cuiabá, atualmente, 18 linhas de ônibus coletivo atendem à população do CPA. Por dia, são transportados mais de 7 mil passageiros nos pontos e terminais que chegam e saem do bairro.
“Cpaenses” consideram que crescimento afastou os moradores
Hoje, 200 mil pessoas moram na região dos bairros CPA I, II, III e IV e 350 mil no complexo do Grande CPA, que integra bairros como o Morada do Ouro, Morada da Serra, Três Barras, Nova Conquista e 1º de Março, entre outros.
Há mais habitantes no Grande CPA que no município de Rondonópolis, uma das principais cidades de Mato Grosso, por exemplo. Se fôssemos colocar todos os habitantes da região em um estádio de futebol do tamanho da Arena Pantanal, seriam necessários mais quatro estádios para alocar todos dentro.
Com 30 anos, morando no CPA III, o líder comunitário Rauany de Oliveira relata que os pais foram um dos primeiros moradores do local. A família enfrentou os problemas já relatados, como a grande poeira.
O morador tem dois projetos sociais no bairro, um dos quais o Criança Sorrindo, sempre realizado no dia 12 de outubro, há 14 anos, para promover diversão e distribuição de brinquedos. Além disso, ele promove torneios de futebol na quadra esportiva de moradores de bairro.
“Eu sou um representante da comunidade do CPA, eu não recebo salário, estou aqui porque gosto”, relatou Oliveira. Segundo o líder de bairro, o processo de sua escolha como porta-voz da comunidade veio a pedido dos próprios moradores.
“Aqui em casa pode vir em qualquer horário que se precisar de algo; nós ajudamos, nunca fechamos a porta. Então todas essas ações fizeram que nos fôssemos escolhidos para estar buscando melhorias para o bairro”, disse.
Os títulos conquistados no futebol de bairro atraíram a atenção do poder público, que passou a visitar mais o local. “Aqui era o fim do CPA, ninguém queria saber, aí depois dessa movimentação os políticos vieram, com isso o lugar começou a mudar bastante”, conta.
O crescimento da região trouxe outro problema para os moradores: a falta de segurança pública. O medo da violência que acaba inclusive limitando os moradores de sair no período noturno. “Aqui passa pouca polícia, somos muito carentes disso aqui, mas acho que está faltando em todos os bairros”, afirma Oliveira.
A união para solucionar problemas comuns continua uma forte característica da região do CPA. Segundo o líder comunitário Oliveira, ele junto com demais lideranças tem buscado parcerias para ativar a única quadra esportiva que estava abandonada na região.
“Estou batendo duro para conseguir reformar tudo de novo, estamos na luta buscando fundo financeiro por parte da prefeitura, mas tem investimento do meu bolso também, nem tudo que pedimos ao poder municipal conseguimos. Se demorar muito, sabemos que não podemos esperar”, disse.
Apesar da união, alguns moradores contam que a região perdeu um pouco do sentimento de comunidade que unia os primeiros moradores. Heloisa Alves, 49 anos, residente há 30 anos no local e mãe do líder comunitário Oliveira, afirma que o CPA mudou bastante. Em entrevista ao Circuito Mato Grosso, em sua residência, ela relembra que na época do surgimento do bairro as casas não tinham muros e o contato com as outras pessoas do bairro era mais simples.
“Meu falecido filho nasceu nesta casa, ele era um ‘Cpaense’ e viveu nessas ruas. Aqui a gente via as pessoas lavando roupa, o quintal do outro e a vida privada eram comuns”, conta.
A moradora acredita que a evolução do bairro tornou os moradores mais individualistas. Para ela, os eventos sociais são importantes para resgatar a interação da comunidade.
“As pessoas se afastam, chega todo mundo e não interage, simplesmente elas entram e saem. Você tem que fazer um evento para chamar todos até a pracinha, falar um oi e conversar um pouco. Por isso, a evolução é boa, mas por outro lado ela também afasta as pessoas”, concluiu.
Faltam áreas verdes e Lagoa Encantada segue poluída
Criada em 2009, às margens do córrego do Caju está a Lagoa do CPA ou Lagoa Encantada. O local foi idealizado pelo ex-prefeito Wilson Santos, em 2009, para ser uma das principais áreas de lazer da região, com 32 hectares de pistas de caminhadas que poderiam ser usadas pelos moradores da região para prática de atividade física. Mas o esgoto in natura depositado na Lagoa afastou os visitantes.
Hoje, os moradores reclamam principalmente do mau cheiro. A lagoa não tem recebido tratamento nas águas e durante o dia fica difícil respirar, pois o odor que sai das águas é forte.
O local já espantou moradores do lugar, fazendo com que alguns se mudassem devido ao péssimo cheiro. Hoje, as águas do lago não têm tratamento, segundo denuncia o líder comunitário Rauany de Oliveira, que explica que na época da gestão de Wilson Santos veio uma verba do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento do governo federal) para o tratamento da água, mas que o dinheiro sumiu e não foi usado.
“Nós já fizemos um abraço em torno da lagoa como forma de protesto, consegui juntar mais de mil moradores”, relembra.
Ainda de acordo com morador, a cobrança por um pedido de tratamento nas águas na lagoa encantada já passa por duas gestões e ainda segue sem uma medida definitiva para dar conta do problema.
“Estive com o ex-prefeito (da época) Chico Galindo explicando este problema, entrou por um ouvido e saiu pelo outro e nada foi feito. Depois entrou Mauro Mendes, estive com ele, mostrei o documento, foram tiradas foto e nada foi resolvido”, afirma.
Ainda de acordo com o líder comunitário, um laudo de uma bióloga da UFMT apontou que as pessoas que andam em volta da lagoa colocam em risco a própria saúde. Isso porque o esgoto faz com que bactérias fiquem suspensas no ar e a pessoa que caminhe acaba respirando esses microrganismos levando-as para dentro do corpo, o que pode acarretar doenças de pele, entre outras.
O líder comunitário relembra que algumas opções de tratamento eram realizadas no local para tentar acabar com o problema do mau cheiro, mas que atualmente nada é feito.
“Na época a Sanecap (companhia de saneamento estatal) comprava uma bactéria na Argentina, muita cara, que era jogada na entrada do esgoto e ela comia as bactérias que exalavam o mau cheiro. Depois, a CAB Cuiabá estava jogando cal para tentar amenizar o odor”, conta.
Recentemente, uma ação foi movida no Ministério Público de Mato Grosso requerendo medidas da prefeitura para o tratamento do local.
Segundo dados da prefeitura de Cuiabá, em 2009, foi criada a Estação de Tratamento de Esgoto (ETE), da Companhia de Saneamento da Capital (Sanecap), no CPA III – local que abriga hoje o complexo da Lagoa Encantada. No Brasil esta teria sido a segunda ETE a apresentar uma estrutura ecologicamente correta e a primeira a possuir estruturas físicas voltadas ao turismo, ao social, à educação, novas tecnologias, esporte e lazer, compreendendo 31,7 há, com pista de caminhada de 1,9 km, aparelhos de ginástica, mirante, quiosque, maquete de bacia hidrográfica, auditório e viveiro, todos voltados para a educação socioambiental.
A prefeitura afirmou que na época realizava todo o tratamento do esgoto coletado do CPA, na Lagoa Encantada. E que também desenvolvia projetos científicos aprovados por agências de fomento, tais como: Centro de Referência de Reuso de Água (CRRA), patrocinado pela Petrobras Ambiental, no valor de R$ 1.6629.532,67, que contemplou a construção de dois laboratórios físico-químico-microbiológicos; Educação Socioambiental e Gestão de Recursos Hídricos por meio da mobilização social e capacitação técnica como ferramenta para implementação de gestão integrada, descentralizada e participativa de recursos hídricos na Bacia Hidrográfica do Rio Coxipó, aprovado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Mato Grosso (Fapemat) no valor de R$ 43.159,20.
Este projeto contemplava ações de capacitação e mobilização em recursos naturais, em específico, os recursos hídricos e Tecnologia para Otimização do Uso da Água em Domicílios, por meio do Sistema de Reuso de Água para a Alimentação de Descargas Domésticas. Aprovado pelo MCT/CT-HIDRO/CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), o projeto tinha o valor de R$ 190.785,00 e era destinado a ações de Reuso da Água de Enxágue de máquinas de lavar roupa.
Hoje, quase oito após sua construção, o complexo da Lagoa Encantada localizado no Bairro CPA III, em Cuiabá, encontra-se completamente abandonado, com estruturas depredadas e tomadas pelo matagal. A falta de iluminação tem aumentado o número de moradores em situação de rua e contribuído para o consumo de drogas no local.
O empreendimento que nasceu junto com CPA
No ramo gastronômico, um dos principais restaurante especialistas em peixe na capital de Mato Grosso começou a sua história no CPA. A Peixaria Okada teve seu primeiro restaurante na região, desde 1983, quando inaugurou a primeira unidade e hoje matriz.
Valdir Araújo, genro do proprietário, Hitoshi Okada, conta que a ideia de montar um restaurante partiu do sogro, que na época começou como um dos primeiros pequenos negócios do CPA.
“Meu sogro saiu da empresa de transportes e com o dinheiro da indenização trabalhista abriu um pequeno restaurante que com o tempo cresceu”, relembra.
Ainda de acordo com o responsável, o restaurante se expandiu e hoje é uma referência dentro de Mato Grosso na especialidade de peixes.
“Além da nossa matriz, que fica no CPA I, temos outra unidade na Av. Miguel Sutil e nossa terceira unidade fica no em Rondonópolis”, afirmou.
Assim como o CPA, o simples restaurante aberto na década de 80 cresceu e se modernizou, passando de pai para filha.
“Atualmente eu e minha esposa trabalhamos na gerência do local, meu sogro já não atua mais na linha de frente como antes, mas os negócios seguem a todo vapor”, afirmou.