Tifanny Abreu voltou aos holofotes da Superliga Feminina de Vôlei na última terça-feira. A jogadora do Bauru anotou 39 pontos na partida contra o líder Praia Clube, um novo recorde de acertos em uma única partida na competição, apesar da derrota por 3 sets a 2. Ainda no clima do Dia Nacional da Visibilidade Trans, celebrado na última segunda, a oposta mais uma vez tornou visível a participação de atletas transgêneros em esportes de alto rendimento.
Ao mesmo tempo que inspira pessoas – trans ou não – por seu papel pioneiro de quebrar barreiras, Tifanny também incita – mesmo sem querer – a indignação de pessoas que consideram que a oposta leva uma vantagem injusta por ter tido seu desenvolvimento corporal sob influência de hormônios masculinos, mesmo que hoje seus níveis de testosterona sejam inferiores aos de outras mulheres.
Há argumentos prós e contra a participação da jogadora no vôlei feminino. Tifanny, em todo caso, tem o respaldo do Comitê Olímpico Internacional (COI) por cumprir os requisitos estabelecidos em novembro de 2015. A entidade pede que mulheres trans se declarem do gênero feminino (reconhecimento civil) e tenham nível de testosterona inferior a 10 nmol/L por pelo menos 12 meses antes da estreia em competições femininas. Tifanny nasceu Rodrigo e jogou em competições masculinas de vôlei até os 29 anos, quando iniciou a transição de gênero. Aos 31 anos, começou a jogar em ligas femininas na Itália, já dentro dos padrões recomendados pelo COI. Hoje ela tem 33 anos. Seu corpo mudou com o tratamento hormonal, mas ainda não há estudos que quantifiquem o tamanho dessa mudança em parâmetros internacionais, o quanto crescer sob efeito da testosterona dá uma vantagem pregressa à jogadora. Seria essa vantagem uma injustiça?
Apesar de ser uma questão nova aos olhos de muitos brasileiros, o COI está atento às questões de identidade de gênero há alguns anos e acompanha os estudos científicos no tema. A entidade deve atualizar neste ano seu guia de diretrizes para a participação de mulheres trans em competições femininas. Joanna Harper, americana líder em pesquisas sobre a presença de atletas trans em esportes de alto rendimento, consultora do COI e também mulher trans, acredita que as alterações não devem impedir a jogadora do Bauru de disputar competições.
– Fiz parte do comitê que sugeriu que o COI reduzisse o nível máximo de testosterona permitido de 10 nmol/L para 5. Nós não fizemos nenhuma outra recomendação significante. Ficaria muito surpresa se o COI fizesse mudanças além daquelas que nosso comitê recomendou. E é extremamente improvável que o COI faça qualquer mudança que impeça Tifanny de jogar – afirmou a pesquisadora, lembrando que o nível de testosterona de Tifanny é de 0,2 nmol/L, inferior aos valores de mulheres cisgêneras (entre 0,21 e 2,98 nmol/L).
O que diz o Comitê Olímpico Internacional
Tifanny preenche os requisitos estabelecidos pelo COI em seu guia de diretrizes para a participação de mulheres trans em competições femininas. A entidade recomenda que as organizações esportivas aceitem como elegíveis mulheres trans que se declararam do gênero feminino (reconhecimento civil) e que ficaram pelo menos 12 meses em tratamento hormonal com no máximo 10 nmol/L de nível de testosterona – o índice deve ser mantido durante o período de elegibilidade. Segundo o COI, exigir mudanças anatômicas cirúrgicas não é necessário para preservar uma competição justa e é inconsistente com as noções de direitos humanos.
– A abordagem do COI visa equilibrar inclusão, justiça e segurança para todas as atletas, e é baseada no consenso de médicos e especialistas. Estamos constantemente revisando nosso guia em um processo liderado pela Comissão Médica, informada por experiências da Comissão de Atletas e de especialistas externos – afirmou o COI, em nota ao GloboEsporte.com.
A guia de diretrizes do COI é um documento formulado por 20 especialistas e reflete um consenso, apesar de não haver unanimidade em todos os detalhes, a exemplo do nível máximo de testosterona, que deve baixar de 10 para 5 nmol/L na revisão deste ano, depois da Olimpíada de Inverno de PyeongChang. No documento, o COI reconhece a importância da autonomia da identidade de gênero. O guia é um conjunto de recomendações para as organizações esportivas, que podem estabelecer critérios próprios de participação de mulheres trans em competições femininas.
Não há limitações para a participação de homens trans em competições masculinas, uma vez que eles não adquirem nenhuma vantagem em relação aos homens cisgêneros.
O que diz a FIVB e a CBV
Na semana passada, a Federação Internacional de Vôlei (FIVB) reuniu seu Conselho Médico e anunciou que vai estudar mais a participação de mulheres trans em esportes de alto rendimento para implementar um sistema próprio de elegibilidade para essas atletas. A entidade, porém, não estabeleceu prazo para divulgar este novo sistema.
Até que as novas regras sejam anunciadas, a FIVB segue as recomendações do COI, mas não atendeu ao pedido do GloboEsporte.com de esclarecer se Tifanny e outras mulheres trans no momento estão elegíveis para suas competições internacionais, como o Campeonato Mundial do Japão, no fim de setembro. A assessoria da entidade, porém, informou que crê na implementação do novo sistema de elegibilidade antes das competições internacionais desta temporada. O técnico Zé Roberto já deixou a porta da seleção brasileira aberta para Tifanny, assim como está para qualquer outra jogadora.
– Eu acho que se ela foi elegível pelo Comitê Olímpico Internacional, pela Federação Internacional de Vôlei, pela Confederação Brasileira, ela é elegível para jogar em qualquer lugar, até na seleção brasileira. Se ela tiver nível, ela pode jogar sim na seleção – disse o treinador da seleção brasileira.
A Confederação Brasileira de Vôlei (CBV), por sua vez, segue as recomendações da FIVB e por tabela do COI. Até que uma das entidades internacionais atualizem suas diretrizes, Tifanny tem o direito de jogar na Superliga ou em qualquer outra competição nacional. Coordenador da Comissão Nacional dos Médicos de Vôlei (Conamev), João Grangeiro afirma que a CBV não vai de encontro ao COI, apesar de ele observar vantagem de Tifanny nos jogos pela Superliga.
– A Comissão Médica do Vôlei seguiu o que está preconizado pelo COI. O que acho é que a diretriz carece hoje de um aperfeiçoamento. Essa é a expectativa que temos com relação ao COI. A FIVB já se manifestou que vai rever. Precisamos observar do ponto de vista científico qual o impacto das diferenças de uma atleta trans. Limitar simplesmente um valor de testosterona me parece muito pouco. Me parece que coloca em vantagem, mesmo com o controle hormonal. Ela está pontuando bastante. Aparentemente sim, existe uma vantagem. Não sabemos dizer o quanto ela tem mais de força. Quanto mais de velocidade e de potência? Isso não foi medido, não foi quantificado. Acho que precisa quantificar. Sem dúvida alguma existe uma vantagem – disse João Grangeiro.
Tifanny leva ou não uma vantagem injusta?
O que dizem fisiologistas
O fisiologista Turíbio Barros, colaborador do Eu Atleta, explica que a testosterona é a chave na discussão sobre a participação de atletas transexuais em competições femininas. O hormônio é um anabolizante que faz com que a massa muscular do homem seja maior do que a da mulher, influenciando na velocidade, na força e na potência do indivíduo – o homem produz em média de sete a oito vezes mais testosterona do que a mulher. O tratamento hormonal equipara o nível de testosterona, e a mulher trans comprovadamente perde força, resistência e velocidade. Para Turíbio, porém, a atleta carrega parte da herança de anos de crescimento com níveis masculinos de testosterona.