Texto e foto de Valéria del Cueto
Quem não sabe que Cuiabá remete a duas coisas: ao calor e ao atraso? Não ao atraso de vida, maldoso leitor, mas aquele de nunca chegar na hora aos compromissos? Sofria com ambas características, especialmente a segunda, para fechar as pautas das reportagens nas TVs. Os jornais não levavam em consideração essa dinâmica tão cuiabana.
No samba também é quase assim. Menos na Sapucaí, com o horário rígidos e cronometrado das escolas que desfilam. Menos no sábado das campeãs, que não tem transmissão global.
Dito isso, quero fazer mea culpa. E aí, entra o capim navalha que corta tudo, menos esse atraso-preguiça cuiabano. Acontece que anos atrás, mais especificamente entre 2021 e 2022, o jornalista Rodrigo Vargas desenvolveu o projeto “O propósito de Aline”, sobre a renomada crítica de artes Aline Figueiredo. Era composto por um livro e um documentário média metragem.
O livro recebi do autor antes do lançamento. Caí dentro e, poucos dias depois, mandei pra ele minhas elogiosas impressões. Na sequência, exatamente no dia 2 de fevereiro de 2022, recebi o link do vídeo e a informação de que havia sido rodado na casa de Aline.
Corta para: Enquanto morei em Cuiabá fui frequentadora assídua dos maravilhosos almoços pantaneiros que juntavam horas de conversas as delícias preparadas por Márcia e sempre regadas a vinho tinto, já que não tomo cerveja. Não listarei meus pratos preferidos, nem os temas abordados porque foram justamente esses que me fizeram deixar correr o timeline de outras mensagens trocadas com Rodrigo sem abrir o link do vídeo.
Sabia que se o conteúdo aguçasse as saudades não poderia voar para Mato Grosso. A pandemia estava acabando, o carnaval adiado seria em abril, e tinha outras prioridades na vida. Rodrigo nunca perguntou o que achei do trabalho audiovisual, fotografado por José Medeiros, nem eu me justifiquei.
Aline andou pelo Rio em outubro numa palestra da exposição “Podre de Chic”, com obras de Adir Sodré, no Paço Imperial. Fiz fotos e gravei pequenos trechos de sua aula com ótimo conteúdo e nenhuma qualidade das imagens captadas. Faltava luz. Novamente arquivei o assunto e guardei o material sem publicá-lo. Sabia que ele seria a isca para pescar minhas saudades.
De vez em quando lembrava do vídeo, mas nunca achava que era o momento certo para explorá-lo. Queria que fosse num intervalo de foco total, quando não estivesse mergulhada, por exemplo, no carnaval. Depois decidi que só o veria quando a falta do calor cuiabano fosse insuportável.
Com o passar do tempo e acompanhando o cotidiano da cidade concluí que a distância que me separava da minha Cuiabá só aumentava. E, pela velocidade das transformações locais o progresso tratorou parte do encanto do local que tão calorosamente me acolheu. Portanto, nada “Eu sou de Capim Navalha”!
O que virou a chave foi esse fenômeno climático que assusta e surpreende o país inteiro. “Já vi esse filme, já usei esse filtro fotográfico que parece um fog londrino, esconde o sol e, quando a gente abre a porta ou a janela, é aquela pancada de calor”, pensei. E também lembrei do vídeo que não tinha assistido. Resolvi desvendar a lenda e assistir a obra.
Não me arrependo de ter guardado a última bolacha do pacote com tanto cuidado. Com as câmeras de José Medeiros e Diogo Diógenes passei pelos recantos da casa e, “tertuliei” nos diálogos de Aline Figueiredo sobre sua vida, seus trabalhos e suas paixões.
É quase só ela na tela, meio desnuda e crua, sem firulas e muitas edições. Exemplo claro de que menos pode ser muito mais quando o objeto do trabalho esbanja riqueza de ideias e personalidade. Passou pelos meus sentidos a essência da Cuiabá que tanto amo, a que me cercou de amigos, muitos citados no documentário, e referências que levo pra vida.
Sabiamente o vídeo não mostra a mesa posta e as delícias que brotam das mãos de Márcia. Um bom motivo para que volte aos meus planos uma ida à antiga Cidade Verde, depois que esse inferno amainar.
No fim do doc, a surpresa: meu nome – escrito errado, pra variar, aparece! Nos créditos, na lista de agradecimentos. O que deve aumentar a pena pelo crime de não o ter assistido antes… Desculpe, Rodrigo, foi o espírito do atraso cuiabano que permanece vivo em algum lugar da minha alma carioca.