Internamento de portadores de hanseníase em colônias era lei até os anos 80. Filhos eram enviados em cestos a educandários.
Como uma espécie de caça às bruxas, o Brasil viveu entre as décadas de 30 e 80 um período de controle da hanseníase, doença popularmente conhecida como lepra, e obrigava todos os seus portadores a viverem em um dos 37 hospitais-colônias, longe das famílias. O contato com filhos e futuros filhos também era proibido por uma lei federal de 1949. Periodicamente, novas “ninhadas de filhos de leprosos” eram enviadas em cestos aos educandários ou preventórios, espécie de creche aos órfãos de pais vivos.
A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência (SDH/PR) estima que pelo menos 40 mil bebês foram separados dos pais no século passado. Entre as crianças, estava José Irineu Ferreira que – hoje aos 65 anos – ainda carrega marcas psicológicas do que enfrentou. O aposentado nasceu no hospital-colônia Dr. Pedro Fontes, na cidade de Cariacica (ES).
José é fruto do relacionamento de Osvaldo e Terezinha, diagnosticados com hanseníase e internados desde os 15 anos. O casal viveu sob o regime da lei federal (lei nº 610) de 13 de janeiro de 1949, que determinava “que todo recém-nascido, filho de doente de lepra, será compulsória e imediatamente afastado da convivência dos pais”. O isolamento das pessoas portadoras da doença seguiu até o ano de 1986.
Ferreira foi separado de sua mãe imediatamente após o parto e levado ao educandário Alzira Bley. Ali passou toda sua adolescência, entre uma “surra e outra” e trabalho forçado nas áreas rurais. Ele deixou o local com 19 anos, sem laços sociais e sem os dois irmãos, que não sobreviveram sem leite materno.
Duas vezes por ano, Ferreira visitava os pais por “rápidos minutos”. O parlatório, espaço destinado aos encontros, separava pais e filhos por um vidro grosso. Havia temor de contágio. Com o avanço da medicina e esclarecimento sobre a hanseníase, o local sofreu modificações e passou a separar os internos e filhos por uma grade de proteção. “Parecia um campo de concentração. No colo de uma das guardas, fui apresentado aos meus pais. Elas falavam: ‘Ó, esse é seu pai. Aquela é sua mãe’. Mas a gente virava a cara porque não entendia o significado dessa palavra."
Ferreira conseguiu encontrar a mãe Terezinha, hoje com 85 anos, que ainda mora na colônia Dr. Pedro Fontes. Desde 1986, os portões já não são trancados com cadeados. Mas a idosa não quer deixar a colônia, explica o filho. “Ela foi praticamente criada lá. Não consegue sair. Quando posso, visito. Mas a gente não tem nenhum vínculo amoroso. Eu a conheço como minha mãe, mas não fui criado por ela."
Indenização incompleta
Desde 2007, ex-pacientes dos hospitais-colônia recebem uma pensão vitalícia do governo no valor de dois salários mínimos. No entanto, segundo especialistas, a ação foi incompleta já que poderia ser estendido também aos filhos. “A mesma política que ocasionou e manteve o isolamento compulsório [dos portadores de hanseníase], gerando o crime de Estado, também ordenou a separação dos filhos. Após a indenização dos pais, abrimos a discussão”, explica o coordenador nacional do Morhan, Artur Custódio.
A ação do governo para os filhos separados deve ser rápida, prega o coordenador, por conta da idade avançada dos atingidos sejae há alto índice de mortalidade. Estima-se que a faixa etária do grupo esteja entre 50 e 80 anos. É preciso ainda, diz Custódio, estudar diferentes formas de reintegração na sociedade. “A indenização vai além do fator financeiro. Precisamos reintegrá-los na sociedade e resgatar essa história."
Entre 2007 e 2014, segundo dados da SDH/PR, foram analisados 11.740 solicitações de pensão especial por isolamento compulsório de pessoas atingidas pela hanseníase, sendo 8.821 deferidos e 3.603 indeferidos. Um relatório completo do caso está programado para ser divulgado neste mês de dezembro.
Fonte: iG