A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu, por unanimidade, na noite de terça-feira, proibir o uso das gorduras trans industriais em alimentos a partir de 2023.
Com a medida, o Brasil se torna o 50º país no mundo a adotar restrições contra os ácidos graxos trans industriais (AGTI), aliando-se a um objetivo da Organização Mundial da Saúde (OMS), que é eliminar a substância produzida industrialmente em três anos. Além de vários países europeus, EUA, África do Sul, Índia, Canadá, Argentina, Chile e Colômbia adotaram leis que limitam o uso desse tipo de gordura.
“O mundo tende ao banimento da gordura trans. A gente entende que é um processo de muito impacto para o setor produtivo, mas, óbvio, o papel da agência é resguardar a saúde do cidadão. Doenças crônicas e cardiovasculares são as mais citadas [como consequência da ingestão da gordura]. Quando a gente olha pro impacto da ingestão dessa substância a gente vê uma gama de muitas doenças que vêm e encurtam a vida ou limitam muito a vida, como a hipertensão, outras de ordem metabólica, sobrepeso”, afirmou a relatora da resolução no órgão, a diretora Alessandra Bastos Soares.
Apesar da medida ser uma vitória especialistas consideram o prazo de implementação muito longo. A gordura trans, também conhecida como gordura vegetal hidrogenada, é amplamente utilizada pela indústria para aumentar o prazo de validade e a crocância dos alimentos, assim como diminuir o preço dos produtos. A lista dos alimentos que contêm a substância é grande: sorvetes, pipoca de micro-ondas, biscoitos, margarinas e congelados, por exemplo.
Além disso, a gordura trans está presente no preparo por serviços de alimentação, como restaurantes, lanchonetes, bares e vendedores ambulantes.
“Temos evidências convincentes de que o consumo de ácidos graxos trans acima de 1% do valor total da dieta afeta fatores que desencadeiam as doenças cardiovasculares. Então, há uma relação muito clara com o aumento das doenças coronarianas, o risco de desenvolvimento dessas doenças e até a morte por causa dessas doenças”, explica Thalita Lima, gerente geral de alimentos da Anvisa.
Outras evidências científicas afirmam que a substância também aumenta os índices de colesterol ruim (LDL), diminui o bom (HDL) e causa inflamações no organismo.
Até hoje, no Brasil, não havia nenhum tipo de proibição da quantidade de gordura trans nos alimentos industrializados e óleos vegetais. Assim, é possível encontrar produtos nas prateleiras dos supermercados que têm muito mais do que os 2% de limite de gordura trans que deve ser estabelecido. Uma projeção da própria Anvisa aponta que o Brasil poderia se tornar o país da América com o maior volume de mercado de óleos e gorduras parcialmente hidrogenados (OGPH), ultrapassando os Estados Unidos.
As diretrizes da OMS determinam que a substância deve representar, no máximo, 1% do valor energético de uma dieta. No entanto, estudos recentes têm apontado que a média de consumo entre os brasileiros está entre 1,4% e 1,8%, muito acima do limite. Segundo a Anvisa, as pessoas com baixa renda são as mais vulneráveis.
A decisão da Anvisa desta terça, dá um cronograma para eliminação da gordura trans industrial. A partir de julho de 2021 fica estabelecido o limite de 2% nos óleos refinados (produzida em função do tratamento térmico aplicado durante a etapa de desodorização). Nesse mesmo momento, há restrição, também de 2%, na quantidade de gordura trans industrial nos alimentos comercializados em geral. Essa restrição é válida até janeiro de 2023, quando ela será banida.
O diretor de Assuntos Regulatórios e Científicos da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA), Alexandre Novachi, afirma que a associação está “satisfeita” com a decisão da Anvisa e que o prazo oferecido visa atender todo o setor.
“Para as empresas associadas o prazo é mais do que suficiente porque vêm se movimentando há anos na redução da gordura trans nos alimentos industrializados. Existe um acordo voluntário desde 2008 que já retirou mais de 310 mil toneladas de gordura trans do mercado. Mas é preciso considerar todo o universo e algumas empresas não têm a mesma capacidade de inovação e tecnologia”, disse.
Já para a nutricionista do IDEC (Instituto de Defesa do Consumidor) Laís Amaral, o prazo dado pela Anvisa é muito longo. Desde 2008 há acordo para redução na gordura trans e a indústria “já devia estar preparada”.
“A gordura trans já é restrita e banida há algum tempo em outros países e há evidências cientificas robustas de que não há limite seguro de consumo, não oferece nenhum benefício, pelo contrário. A norma é uma vitória para o consumidor brasileiro, mas como a questão é discutida há muito tempo, achamos que o prazo é muito longo. É uma questão de saúde pública. A implementação deveria ocorrer antes”, disse.
O IDEC, nutricionistas e endocrinologistas também cobram da Anvisa a aprovação da rotulagem, inclusive para que a população saiba de forma clara sobre a presença da gordura trans até 2023.
“Como não há padronização do termo, a gordura trans pode aparecer como gordura vegetal hidrogenada, gordura parcialmente hidrogenada, óleo vegetal hidrogenado. Quando esses ingredientes aparecem, a gente tem certeza que tem. Mas há termos inespecíficos como gordura vegetal, margarina e creme vegetal que podem ou não conter gordura trans. Se não tenho as normas durante esse período ainda vou continuar ferindo o direito à informação do consumidor”, conta.
ALTERNATIVAS – A discussão para eliminar as gorduras trans industriais já existe há anos e, por isso, foram elaborados substitutos — substâncias e tecnologias — que variam conforme o alimento. Assim, não deve haver impacto em textura, sabor ou valor dos produtos oferecidos aos consumidores.
“Quarenta e nove países já adotaram essa medida. As empresas já vêm num movimento de redução gradual. Existem substitutos que consigam suprir essa capacidade tecnológica. A expectativa é que a gente consiga manter as características de sabor, de crocância dos alimentos, mas utilizando um ingrediente mais saudável”, disse Thalita.
O diretor da ABIA diz que o mercado já trabalha com algumas soluções: “Você tem algumas alternativas, como o óleo de palma, o processo de transesterificação, ou pode substituir por espessantes e estabilizantes. Já existe tecnologia, mas é necessário achar a melhor alternativa para cada produto, cada público”, afirma Novachi.
Para a engenheira de Alimentos, que trabalha com consultoria em Qualidade, Pesquisa e Desenvolvimento de Produtos e Segurança Alimentar Cassandra Massignan Avellar, há muita pesquisa, mas não consenso sobre o substituto.
“O que está por vir é o óleo de girassol, com aplicação de uso industrial, após passar por processos físicos. Usam a gordura de palma, mas também não é recomendada: dá crocância, maciez, aumenta a vida de prateleira porém faz tão mal quanto a gordura trans”, finaliza.