Cultura

Acervo de obras mostra 50 anos de carreira de Humberto Espíndola

Nas obras de natureza morta, os artistas alinhavam frutas, flores, vinhos, enaltecendo o gênero pelas suas cores, texturas, volume, sombras e combinações. Quando a sustentação de um povo berrou, com chifres, andou, comeu e deitou sobre o mato verde, tornou-se essencial um visionário para abranger as novas frutas na bandeja.  Os ciclos passaram com vacas e touros até hoje serem vendidos quando iluminados por LED.  

O artista soube escoltar essas interpretações, expandir para outros conceitos, sem tirar o olho do boi. Deste modo, fatos marcantes foram conquistados: para todos profissionais, a Bienal de Veneza é o auge de uma carreira nas artes plásticas, para uma difusão sólida é fundamental levantar obras em espaços públicos e privados. E assim o visionário segue com aquele sorriso inesquecível, atravessa cinco décadas espalhando boiadas, umas com santas, outras com capuz, sintetizadas em cupins ou entre rosas. 

Travessia é uma oportunidade para observar diversas obras de um dos maiores artistas da atualidade. Numa manifestação de puro respeito, as colecionadoras Erika Abdala e Patrícia Marques compartilham conosco peças de Humberto Espíndola para comemorarmos 50 anos de sua carreira. A exposição, preparada com acervo das colecionadoras, sintetiza a grande admiração que Cuiabá tem pelo artista, enquanto documenta diversos períodos de Espíndola.

Confira uma entrevista exclusiva com o grande artista:

Marchetti: Em outras entrevistas no Circuito Mato Grosso, você é mencionado por vários artistas afirmando a possibilidade do artista desta região no diálogo com as bienais mundiais. Diante desta homenagem, como você resume sua iniciação nas artes?
 
Espíndola: Sempre gostei de desenhar, aos 13 anos estudei pintura em São Paulo, pintei meia dúzia de quadros e desisti, porque o professor retocava tudo e percebi que os elogios que a família me fazia não eram para mim. Acho que tive sorte de desenvolver esse senso de autocrítica na pré-adolescência, logo cedo… Sete anos depois fui cursar Jornalismo em Curitiba, onde me formei. Na grade de matérias tinha História da Arte e aí me apaixonei pelos grandes mestres, principalmente Van Gogh… Nas férias de 1965 (fará em julho 50 anos) retomo a pintura estimulado por uma amiga e pinto meu primeiro quadro criado por mim mesmo, "Fada".

E foi mesmo uma fada madrinha, não parei mais de pintar. No ano seguinte fui procurado por Aline Figueiredo, que estava organizando então a Primeira Exposição dos Pintores Mato-grossenses. Engajei-me na causa dela logo de cara, e passei a ser seu namorado e colaborador. A exposição em outubro de 1966, em Campo Grande, foi uma espécie de Semana de Arte Moderna nossa, do nosso velho Mato Grosso ainda uno. Porém o resultado da mostra nos levou à reflexão de que nosso estado não era nada no circuito da arte brasileira. Resolvemos mudar essa situação e fomos atrás, estudamos, atualizamos e procurei uma forma de expressar uma parte desse nosso Brasil Central, tão desconhecido até então no eixo Rio-São Paulo. Nasce assim a "Bovinocultura", com um sucesso instantâneo e explosivo. E com ela a ação da Associação Mato-grossense de Arte – AMA, que em 1967 já reunia Dalva de Barros, João Sebastião, Clovis Irigaray, entre outros… Após a as Bienais de São Paulo, Medellín (Colômbia) e Veneza, em 1973 mudamos para Cuiabá, onde na UFMT fundamos o MACP, que foi uma espécie de museu-ação reconhecido como tal pela crítica brasileira. A partir daí todos já conhecem a história.
 
Marchetti: Você conhece a coleção de Erika Abdala. Nos adiante seus diferentes momentos criativos  nesta seleção. 

Espíndola: Erika Abdala é minha mais nova colecionadora. O que me encanta no meu relacionamento com Erika e sua coleção de meus quadros é a confirmação de uma teoria, que não considero minha, acho que ela tem a universalidade coletiva: o poder intemporal de sedução da obra de arte. Vemos isso acontecer com as pessoas sensíveis diante de obras e épocas diversas da história. Jovens se apaixonam por Matisse, por exemplo, e passam a descobrir a arte e como crescer dentro de si mesmos. A obra tem esse poder. Vi isso acontecer de uma forma mágica com Erika, sinto-me realizado e feliz com a coleção que ela tem até o momento. É uma coleção nova, não tem uma história sequencial, tem qualidade, e esse item é fundamental para qualquer amostragem. Nisso estou seguro nessa coleção que será apresentada. Amo todos os quadros que já pintei, confio neles, e cada obra é uma obra. Cada uma tem seu poder de conquista e de fazer sonhar, fazer novos admiradores no exército dos amantes da arte. Isto é cultura sempre.

Marchetti: Suas obras estão  em galerias privadas, na casa de minha mãe, em residências de diversas famílias, no Palácio Paiaguás e em outras áreas públicas. Como foi a conquista desta abrangência? 

Espíndola: Penso que tenho em Cuiabá meu público mais numeroso. Sinto-me reconhecido aqui, talvez essa segurança esteja baseada no trabalho que desenvolvi na universidade, nos jovens artistas que ajudei a crescer de alguma forma, na reconhecida emblemática do Palácio Paiaguás, hoje tombada pelo patrimônio. Em primeiro lugar, devo citar logo minha querida companheira Aline Figueiredo; ela e a minha saudosa mãe Alba Miranda Espíndola foram minhas primeiras estimuladoras. Em nível nacional, grandes curadorias dos críticos Frederico Morais, Roberto Pontual, Marisa Bertoli, Noemi Ribeiro e Lisbeth Rebollo Gonçalves. Depois, aqui em nossa terra, vieram tantos que fica até difícil citar. Mas vamos lá: os saudosos arquitetos Julio De Lamônica Freire, Sátiro Poll de Castilho (Palácio Paiaguás). No mercado de arte,  Eni de Almeida, Diana Torres e Inês da Costa, entre os mais notáveis. Mas tem muita gente jovem no pedaço agora, parece que estarei amparado de admiradores para enfrentar o envelhecimento…

Marchetti: O seu nome é hoje um patamar artístico alto e de permanente respeito. O que assina uma carreira estável é resultado de  pesquisas durante décadas e experiências bem-sucedidas.  Como um artista notoriamente bem-sucedido sai da zona do conforto e arrisca investigar outras expressões?

Espíndola: Com certeza! Tudo o que obtemos hoje é resultado do que fizemos ontem.  Se tenho uma carreira bem-sucedida é porque vivo saindo da zona de conforto. Passada a fase histórica dos prêmios, quando muito tive que inventar, apareceu o momento do mercado, da sobrevivência como artista, e tive que reformular constantemente minhas ideias, principalmente porque queria continuar pintando o boi. Há que se inventar, e muito, para manter 45 anos de um mesmo tema!
 
Marchetti: Sua série BOVINOCULTURA celebra a economia forte de nossa região. Ha uma relação mais espiritual, mais religiosa com este animal? Você é vegetariano?

Espíndola: Sou mesmo muito religioso e espiritualizado. Aliás, passei por praticamente todas as religiões. Tenho um espírito sedento e investigativo. Porém não sou vegetariano. Sou um homem prático e a vida é muito breve para se manter dogmas. Depois, não conheço nenhuma teoria científica comprovando a eficácia do vegetarianismo, para a saúde e a longevidade. É claro que uns são mais místicos, outros não. E o Holismo está aí, se impondo como prática científica. Mas acho que alimentação é uma opção muito de cada pessoa ou organismo. Mas, obviamente, sou totalmente ligado aos mitos religiosos bovinos, mas não como crença para a minha “salvação” pós-morte. Sou ligado aos mitos religiosos que a tauromaquia escreveu na história da civilização. O conhecimento desses mitos em muitos momentos salvou minha arte e minha inspiração.
 
Marchetti: O humor está presente em diversas expressões artísticas nas bienais atuais. Você expressou humor, comicidade em algumas de suas obras?

Espíndola: A sátira, no meu entender, é o melhor humor da obra política. Fui muito satírico na época da ditadura, acho que pintar bois generais, ditadores, e em outras situações humanizadas do poder, por si só são temas engraçados. Misturar bois e rosas também é bem-humorado quando se reflete no porquê. Mas o norte da obra de arte sempre foi e será independente da alegria ou drama, a sua plasticidade. A plástica é a única referência que sobra na peneira.

TRAVESSIA

Está aberta a exposição em homenagem aos 50 anos da carreira do artista plástico HUMBERTO ESPÍNDOLA. Entrada franca na Galeria da CASA DO PARQUE: (65) 3365 4789 

Confira a capa do caderno Cultura em Circuito desta semana

Luiz Marchetti

About Author

Luiz Marchetti é cineasta cuiabano, mestre em design em arte midia, atuante na cultura de Mato Grosso e é careca.

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