Desde o ano passado, Saci, ser encantado conhecido de tantas pessoas, tem dado sua cara no Circuito Mato Grosso. Certamente encontrou terras férteis para suas traquinagens. “O Saci e o Jacutinga” (21.06.2021), “Dia do escritor: papo sobre Saci” (20.07.21), “Dia do folclore: conversas com Saci” (23.08.2021), “Centenário de Paulo Freire: sacizada em festa” (20.09.21) e “Saci x Halloween ou Saci & Halloween” (01.11.2021).
Depois de um bom sumiço, retorna a este palco, açulado pelo recente lançamento de “Gervane de Paula: antologia crítica”, livro organizado por Carolina Marcório e Willian Gama, publicado pela Entrelinhas Editora. E foi nessa agitada noite cuiabana que o Saci mostrou sua cara. Melhor dizendo, suas caras, porque no resultado do inquérito sobre o Saci, Monteiro Lobato comprovou lá pelos idos de 1918 que tem Saci de tudo que é jeito. Tem Saci pra todo gosto. Ainda que Juca tenha se debruçado sobre a figura negra, sem uma perna, transbordante de alegria e fazedor de traquinagens, muitos Sacis existiram antes e depois de seus escritos.
Na galeria, Saci não usava disfarce algum. Ia na cara de pau. Pelo contrário, estava do jeito que Deus o fez. Vestido com a própria pele que contrasta com o bocão vermelho, ornando com seu chapéu, soltando fumaceira pelo cachimbo. E mais: existia com sua inquestionável pinta de “herói trapaceiro” ou trickster, termo bastante comum nos estudos do folclore e da religião. Em meio aos presentes, fazia papel de vilão como de herói civilizador, ao gosto do freguês.
“Um personagem ambíguo e contraditório”, nas palavras de Renato da Silva Queirós, um dos tantos pais brasileiros de Saci (porque ele tem pai espalhado pelos cinco continentes). Mas, o que vale dizer é que todo cuidado é pouco quando se trata de Saci e de Sacisa, esta bem descrita por José Roberto Torero. Seja Saci, seja Sacisa, são elementos da natureza com domínio do fogo, da fertilidade, entendedores de plantas medicinais e práticas de cura. Podem mostrar-se violentos, pacíficos, solitários, amantes do viver errante, da transgressão. Gostam de jogar com o inesperado, o indefinido. Alguns Sacis, conhecedores de estratagemas, são violadores de tabus, a satisfazer desejos coletivos.
São os Sacis simultaneamente criadores e destruidores; doadores e enganadores. Algumas espécies possuem características fálicas pronunciadas, ainda que digam alguns de seus entendidos que raramente sua sexualidade tenha intento procriativo. Será verdade? Mas, então, de onde vem a Sacisada de Lobato quando promoveu uma festa para a sua contagem?
Por deleite sexual ou por procriação, isso não vem ao caso (ou vem?), os Sacis de Gervane de Paula, manifestam linguagens que libertam expressões, aquilo que pouco se fala dos Sacis. Nas duas obras “Crack is wack” (2018), “Tamanha é documenta de Kassel” (2017), “A lenda” (2017), “Magia negra” (2017), o Saci é o personagem que apanha flagrantes da vida, a denunciar as velhas mas ainda sólidas linhas obstinadas que dividem gentes para lá e para cá. E o danado do menino negrinho é a síntese de muitas lutas, o anti-herói das manipulações da ordem dominante.
Anna Maria Ribeiro Costa é etnóloga, escritora e filatelista na temática ‘Povos Indígenas nas Américas’.