(FOLHAPRESS) – O engenheiro aposentado José Ricardo, 60, e seu pai Márcio Rangel Alves, 86, sempre foram apaixonados por futebol. Como um morava em São Paulo e o outro no Rio de Janeiro, os dois acompanhavam os jogos do seu time do coração, o Vasco da Gama, conversando por telefone durante as partidas. Mas há cinco anos, José percebeu algo diferente no pai.
"Ele me ligava depois e perguntava se o Vasco tinha jogado. E eu pensava 'caramba, mas a gente viu esse jogo e já falamos sobre ele'", afirma. Esse e outros esquecimentos de eventos cotidianos o levaram a procurar uma geriatra que confirmou através de exames que Márcio estava com Alzheimer, o mais conhecido e prevalente tipo de demência.
Marcadas pelo declínio persistente de funções cognitivas, como memória, linguagem, comportamento e funções instrumentais, as demências são transtornos neurodegenerativos que possuem uma série de fatores de risco. "Hereditariedade, baixa escolaridade e analfabetismo, obesidade, hipertensão, dislipidemia e idade", lista a psiquiatra Rita Cecília Reis Ferreira, do Programa Terceira Idade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (IPq-HC), em São Paulo.
Mas além destes, que já são bem definidos pela ciência, outro tem sido mais estudado nos últimos dez anos: o sono.
Pesquisadores de diversas instituições europeias examinaram os dados de 7.959 participantes de um outro estudo, o Whitehall II, para entender a associação entre a duração do sono e a incidência de demência em pessoas mais velhas. Ao longo dos 25 anos nos quais os integrantes foram acompanhados, foram diagnosticados 521 casos da síndrome.
O trabalho, publicado na revista científica Nature em 2021, mostrou que indivíduos com 50, 60 e 70 anos que dormem diariamente por 6 horas ou menos correm um risco 30% maior de desenvolver demência que aqueles que repousam por 7 horas. Esse achado vale independente de fatores sociodemográficos, cardiometabólicos, comportamentais e de saúde mental.
Um outro estudo mais recente, publicado no JAMA Neurology, realizado com 4.417 pessoas com idade média de 71 anos, concluiu que dormir menos que 6 horas por dia na velhice está associado a declínio cognitivo, maior índice de massa corporal, sintomas depressivos e maior carga de β-amilóide -que, junto da partícula tau, são as proteínas cujo acúmulo no sistema glinfático, no cérebro, está por trás do surgimento de Alzheimer.
Essa relação é explicada pelo próprio processo que ocorre quando dormimos. Rita conta que é na fase mais profunda do sono que nossas memórias se consolidam. "Nesse período, o sistema glinfático faz uma espécie de 'faxina' no cérebro, tirando radicais livres e substâncias que não são mais pertinentes e que em alta quantidade causam problemas", relata.
Duas dessas substâncias são as tais proteínas β-amilóide e tau. "Então, essas substâncias tendem a se acumular mais, propiciando o aparecimento de uma demência", arremata.
Foi o caso de Márcio. Seu filho conta que o pai era fisicamente ativo, estava sempre lendo algum livro e não tinha nenhum caso de Alzheimer na família. "Mas meu pai dormia muito pouco. Além de trabalhar muito, ele tinha um problema respiratório que o impedia de dormir corretamente. Saía da cama muitas vezes na madrugada e acabava acordando de vez lá pelas 4 horas da manhã. E isso piorou a partir dos seus 40 anos", lamenta José.
No entanto, a associação entre sono e demência ainda é uma área nebulosa na ciência. Apesar de já se saber sobre os prejuízos gerais da ausência do descanso diário em qualquer idade (piora de qualidade de vida, atenção comprometida, concentração mais difícil), não se sabe ao certo o quanto investir em uma boa higiene do sono protege contra a síndrome.
Em 2020, o The Lancet, uma das mais conceituadas revistas científicas do mundo, publicou a atualização de um relatório de 2017, que traz uma série de fatores de risco para esse tipo de transtorno e ações para aderir no dia a dia que tendem a proteger o cérebro. Acontece que dormir bem não estava entre as 12 medidas listadas no documento.
De acordo com o neurologista Luciano Talma Ferreira, do Hospital Universitário de Brasília (HUB-UnB), uma intervenção potencialmente efetiva para prevenir a demência se baseia no controle de doenças crônicas, estímulo educacional e mudança do estilo de vida.
"Pesquisas são necessárias para avaliar se o direcionamento de atenção ao distúrbio do sono pode representar uma nova oportunidade de tratamento ou mesmo uma estratégia preventiva na doença de Alzheimer", avalia o médico, que também é membro da Sociedade Brasileira de Neurologia (SBN).
Uma investigação publicada em março de 2022 pela Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, é um exemplo desse esforço. O grupo de cientistas analisou os chamados "dorminhocos de elite", que são pessoas de todas as idades que dormem menos de 6,5 horas por noite, mas não parecem sofrer os efeitos cognitivos desse hábito devido a mutações genéticas.
Como o número de indivíduos rastreados não é suficiente para uma pesquisa robusta, o grupo fez uma análise preliminar com camundongos para entender melhor esse fenômeno. E constatou que os animais que carregavam os genes DEC2 e NPSR1 sofriam um acúmulo mais lento de partículas β-amilóide e tau. Segundo os cientistas, a descoberta pode abrir caminho para o desenvolvimento de novos medicamentos para tratar a demência.
Novos estudos devem sair do forno para chegarmos a conclusões mais claras sobre a relação entre sono e esse triste problema de saúde. Até lá, vale a pena dar atenção às suas horas de descanso. É o que tem feito José desde o diagnóstico de seu pai.
"O duro dessa doença é que você está vivo, mas sua identidade não existe. É terrível. Meu pai trabalhou mais de 70 anos nessa intensidade. Eu me aposentei logo porque não quero viver como ele", finaliza.