O governo perdeu tempo com pautas menos importantes em 2019, e, neste ano, precisará definir melhor as prioridades em um ano eleitoral, na avaliação do economista-chefe da MB Associados, Sergio Vale, que espera crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de 2% neste ano. Apesar de defender a reforma tributária como a mais importante para ser tocada após a da Previdência, o especialista considera que o governo Jair Bolsonaro não conseguirá entregá-la até o fim do mandato. “Uma reforma tributária com vários lobbies fazendo suas demandas pode atrapalhar o processo. É preciso um governo mais forte politicamente para conseguir aprová-la”, destaca.
O economista critica a insistência da equipe econômica em ressuscitar um tributo nos moldes da antiga Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) com outra roupagem. “Imposto digital é CPMF da mesma forma. Não tem diferença”, alerta. Para ele, o tributo é “ruim”, pois onera o setor produtivo em cascata. De acordo com o especialista, o governo precisa ficar atento aos danos causados na imagem na do meio ambiente, porque existe um aumento da consciência ambiental entre os consumidores jovens, inclusive, na China, maior parceiro comercial do país. Para ele, o governo Bolsonaro é disperso na agenda econômica e isso atrasa o processo de retomada da atividade. “A reforma da Previdência foi aprovada, mas não é mérito dele”, resume. A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Correio no escritório dele em São Paulo.
Pode avaliar o cenário da economia para 2020 em meio à crise entre Estados Unidos e Irã?
Quando Bolsonaro foi eleito, parecia que iria resolver tudo da noite para o dia, mas, no primeiro semestre, vimos um governo com dificuldades políticas. Na verdade, houve uma adequação a uma realidade mais razoável. O crescimento hoje é dependente de reformas que estão sendo feitas desde Michel Temer. Bolsonaro, ao dar continuidade, trouxe estabilidade. Com algumas reformas microeconômicas, o conjunto vai levar a um crescimento mais forte, salvo choques. O maior risco é o cenário internacional. Pretendemos elevar nossa projeção de crescimento do PIB, de 1,6% para 2%, em 2020, mas o Irã será um desses riscos. Uma guerra com os EUA pode levar a uma disparada no preço do petróleo.
Houve frustração nas projeções do mercado. O que aconteceu?
Nossa estimativa era 2,2% de crescimento para 2019. O mercado começou com previsão de crescimento médio que ia de 2% a 3%. No geral, a expectativa era positiva com as reformas, mas o governo Temer parou depois das delações. Tivemos a mais relevante reforma, a da Previdência, que destravou a expectativa. Trouxe um ambiente fiscal mais crível para os próximos anos, ajudando a cair a expectativa de inflação e, consequentemente, a de juros. Existem medidas para destravar o investimento nos próximos anos, como o marco regulatório do saneamento. Quando olhamos esse conjunto, 2020 tende a ser um ano melhor.
O que vai puxar o PIB?
Investimento e consumo. Para 2020, a queda de juros vai ser essencial para o financiamento imobiliário. A construção está retomando de forma mais intensa agora, com aumento na venda de cimento, por exemplo, que é um indicador antecedente.
As manifestações na América Latina podem comprometer a retomada?
O Brasil está no caminho de crescimento, de melhora do emprego, e é único país latino-americano a fazer reformas. Por isso, há chances de recuperação do crescimento. Além disso, o país já teve as grandes manifestações em junho de 2013. A população foi para a rua. Já tivemos nossa crise por conta delas. Os outros países ainda vão passar por esse processo.
A popularidade do presidente vem caindo, mas há otimismo no mercado. A percepção é de que a economia está andando, apesar do Bolsonaro?
A economia está andando porque as reformas têm sido feitas desde 2016. O governo errou ao não encaminhar a reforma tributária no segundo semestre de 2019. Quando aparece com (a nova) CPMF, o governo perde tempo. E depois volta com esse assunto no fim do ano, como um imposto digital, que é CPMF. Me parece que o governo, de fato, tem dificuldades em pensar o que deveria ser uma boa reforma tributária para o Brasil. Vai acabar, infelizmente, perdendo a oportunidade.
Existem duas propostas de reforma tributária no Congresso…
A proposta do Bernard Appy que está na Câmara, a PEC 45, me parece a mais perfeita, a mais completa, para lidar com o IVA (Imposto sobre Valor Agregado), que é uma questão específica da reforma tributária. Talvez, nessa parte, poderia resolver grandes problemas de crescimento do país. Mas não vai avançar muito, e talvez vamos ter apenas uma reforma de PIS-COFINS sendo agregados e, talvez, lá na frente, juntar o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados). E não se sai muito disso de juntar os impostos federais.
Então, não vamos ter uma reforma tributária de verdade?
Vai ser uma minirreforma federal de tributos. O governo perdeu muito tempo com isso. E 2020 é ano eleitoral. De 2021 em diante, vamos ter uma agenda carregada de política por conta da eleição presidencial. Uma reforma tributária com vários lobbies fazendo suas demandas pode atrapalhar muito o processo. É preciso um governo forte politicamente para conseguir aprová-la. Na reforma da Previdência, havia um lobby pesado do servidor público. Mas, quando se fala em reforma tributária, todos os segmentos estão envolvidos e todos querem manter seus benefícios: serviços, hotelaria, educação, agronegócio, segmentos importantes querendo alíquotas diferenciadas. Isso atrasa o processo. Perde força.
O governo diz que vai acabar com os campeões nacionais, mas mantém desonerações para igrejas…
São as dificuldades de termos Bolsonaro como presidente, que é a questão das armas e da religião pesando nas decisões. O Bolsonaro foi alijado da tarefa de política econômica. Mas a economia conseguiu andar sem o presidente interferir. Paulo Guedes, Rodrigo Maia (presidente da Câmara) e Davi Alcolumbre (presidente do Senado) fizeram as coisas andarem a despeito do presidente. Conseguimos chegar em 2019 com um arranjo à brasileira, uma espécie de parlamentarismo tripartite comandando a agenda.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, teve mais derrotas ou vitórias?
O governo, na verdade, não conseguiu avançar. Houve muitas derrotas na Câmara e no Senado. Além da reforma da Previdência, talvez a MP da Liberdade Econômica tenha sido uma vitória, mas não é um divisor de águas. O resto, como Lei de Falências, marco regulatório do saneamento, já estava sendo discutido antes. Não dá para pedir coordenação política só para o Rodrigo Maia. Não tem ninguém fazendo esse papel dentro do Planalto. Era para ser o presidente, mas ele se exime dessa tarefa.
O presidente usa o discurso de não fazer a “velha política”…
Não tem jeito. Qualquer governo depende dos partidos para formar a base. Faz parte da política ter esse tipo de negociação. Agora, quando o presidente fica nesse discurso emperrado, ele evita que os diálogos aconteçam. O presidente tinha o grande papel de apagar incêndio e colocar as coisas para andar. Mas não faz. Por isso, a agenda atrasa.
Agora, o discurso é CPMF digital para tentar cobrar qualquer operação fora do sistema bancário…
Tudo está virando digital. Mas o meio não elimina a questão de fazer um imposto perfeito ou não. Como vai ser cobrado, no digital ou não, é outra questão. O que importa é se o imposto é bom ou não. O Guedes tem um fetiche sobre a questão da desoneração da folha de pagamento. Com a regra do teto, dá para pensar em uma queda de arrecadação planejada em 10 ou 20 anos. É possível pensar em outro tipo de receita, mas não uma tão ruim como a CPMF.
Por que a CPMF é um imposto ruim?
Porque tem um efeito cascata, cobra em cima de várias operações em um processo produtivo único, onde existem várias operações financeiras. Isso acaba onerando a empresa no final, a depender da quantidade de processos que tem. Se pensar na compra de imóvel, por exemplo, haverá dupla tributação, pois se pagará tributo na compra e na venda. É muito ruim. Nenhum país grande adota esse tipo de imposto. A Venezuela tem, com alíquita de 2%, e é o desastre que é.
Quanto tempo o país ainda vai demorar para recuperar o PIB perdido?
O país vai chegar ao nível em que estava antes da crise, no início de 2014, em 2024. Tem ainda uns bons anos e não vai ser no governo Bolsonaro. Não no primeiro mandato.
Por que o mercado se descolou das declarações do presidente Bolsonaro e de seus filhos, com a Bolsa batendo recordes mesmo com a saída de investidores estrangeiros?
Uma parte da saída de capital do país neste ano não foi exclusividade do Brasil. Os países emergentes em geral tiveram saída de capitais. Mas, quando olhamos para 2020, há uma tendência de reversão disso. Os estrangeiros podem começar a olhar o Brasil com outros olhos. O país pode ter um aumento da nota das agências de classificação de risco no segundo semestre.
Qual a sua previsão para Bolsa em 2020?
Esse mercado novo que a gente tem de juro baixo vai fazer o brasileiro pensar melhor em educação financeira. Não tem sentido aplicar só no Tesouro Direto ou na poupança. Cresceu muito o interesse e a participação dos brasileiros nesse mercado. O que é natural, o que é bom, porque é um mercado subutilizado no Brasil. A Bolsa vai ter um crescimento orgânico.
Quanto a Bolsa ainda pode subir? Quando voltará o grau de investimento?
Pode ser que, em 2020, possa ir para 130 mil pontos. Se for um ano muito bom, com concessões avançando, crescimento entregue, o país ganha nota das agências (de classificação de risco). Não é o investment grade (grau de investimento) ainda, mas melhora a nota. O grau de investimento só deve acontecer depois de 2023.
As polêmicas na área ambiental podem atrapalhar?
Isso é muito ruim. No longo prazo, tem um efeito muito complicado para o agronegócio. Me parece que o governo percebeu e está tentando diminuir o tom de agressividade. É uma parte muito sensível e pode atrasar o processo do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia. Até a população chinesa está começando a olhar para a questão ambiental de forma importante. Imagine na Europa, onde a consciência ambiental do consumidor é muito maior. O Brasil, ao longo dos próximos anos, precisa ter um trabalho de reconstrução de imagem ou manutenção daquela imagem que tinha para evitar a perda de espaço lá fora. Estamos naquela fase em que o estrago começou a ser feito, mas ainda pode ser revertido.
Como avalia as PECs enviadas pela equipe econômica?
A PEC do Pacto Federativo é internamente defendida pelos técnicos, mas não vemos empenho do ministro sobre o assunto. De todas, a mais interessante é a PEC Emergencial. É mais urgente. As outras são estruturais. Cortar municípios em um ano de eleições municipais? Discutir isso agora não faz sentido. Tanto que o governo vem colecionando derrotas, como na MP do DPVAT, na questão dos radares nas estradas, enfim. Há um governo que tenta lançar medidas intempestivas, que não são muito bem pensadas, e, às vezes, são do interesse próprio do presidente e não têm sentido econômico. E se perde tempo. Nesse sentido, o governo Temer era mais focado na agenda econômica. Bolsonaro é disperso na agenda econômica, e isso atrasa o processo de retomada. O país poderia estar crescendo em um ritmo maior. Não conseguiu. Mas muitos podem falar: ele aprovou a reforma da Previdência e o Temer, não. É verdade. Mas a reforma da Previdência seria aprovada em qualquer governo.
Mesmo se Fernando Haddad tivesse sido eleito?
O país também teria uma reforma da Previdência. Não seria essa, mas uma outra qualquer. A reforma da Previdência ia acontecer, porque estava no jogo.