Não por acaso, cultura e arte são substantivos femininos que imprimem olhares sensíveis sobre uma sociedade. Da mesma forma são as mulheres. No mês em que comemoramos o Dia Internacional da Mulher, reservamos histórias de grandes representantes das artes em Mato Grosso que dedicam suas vidas à militância cultural. Vitória Basaia, Vera Capilé, Luciene Carvalho e Keiko Okamura elevaram as artes em Mato Grosso a um outro patamar.
Mulheres com histórias de superação, força, garra e muito talento, que muito contribuem para a preservação de manifestações culturais com influências diversas. Ao longo de décadas elas ressignificam as artes visuais, a literatura, a música, o cinema e o fazer artístico em Mato Grosso.
Com assuntos que abrangem o universo feminino, tais como a maternidade, o senso de proteção e a sexualidade, Vitória Basaia é uma das mais aclamadas artistas mato-grossenses. Suas telas e esculturas se valem de tintas feitas com terra e rejeitos como madeira, sucata e plástico. Não é de hoje que Basaia cria surpreendentes formas que testemunham seu imenso talento.
Basaia é uma mulher forte e determinada, a quem às artes de Mato Grosso devem muito respeito. “Antes de mais nada eu sou um ser, independentemente de ser mulher. Sou um ser humano, independente da classificação de gênero, mas sinto que tenho algumas vantagens. Tive a oportunidade de ser mãe, um dos maiores presentes que a vida me deu. Até nas dificuldades e descriminações que sofremos por ser mulher, todos esses desafios foram gratificantes e me engrandeceram como ser humano”, explica.
Para Basaia, a arte sempre foi um exercício do cotidiano. Como jornalista sempre cobriu cultura e, na família, tinha bons exemplos do caminho a ser seguido. “Minha mãe tinha uma sensibilidade muito aguçada, grande artesã, minha vó também tinha… assim, eu tive uma formação de sensibilidade. Hoje, meus filhos carregam essa mesma sensibilidade”.
Em meados dos anos 1985, Basaia se lançou como artista, mas não exatamente assim. “Eu era uma pessoa que escrevia sobre artistas, então pensei, vou me atrever. Minha primeira exposição foi intitulada ‘Basaia se atreve’ e contava com desenhos, instalações e esculturas. De qualquer forma, o mercado por aqui sempre foi muito complicado, tanto para homens quanto para mulheres”, desabafa.
Reconhecida nacionalmente e internacionalmente, a artista plástica vem trilhando o caminho das artes há quase quatro décadas e é uma das mais lembradas quando o assunto é artes plásticas em Mato Grosso. “Precisei ganhar força lá fora para ser respeitada aqui dentro do Estado, no que diz respeito às artes plásticas. O reconhecimento veio de fora para dentro, não da aldeia para fora. Apostei no meu trabalho. A arte me traduz, me faz muito bem, me mantem sã. A arte oportuniza minha visão de mundo, minhas pesquisas. Aguardo sempre uma resposta que me faça aprender todos os dias e assim, que as pessoas possam sentir a vibração do meu trabalho, minha mensagem”, conclui.
Nascida em Mato Grosso do Sul e vivendo em Cuiabá desde os 11 anos de idade, Vera Capilé é uma das mais respeitadas cantoras mato-grossenses. Uma das fundadoras do movimento “Nós do Mato”, Vera sempre lutou pela união dos artistas do Centro-Oeste e da Amazônia, gravou discos e recebeu inúmeros títulos pela sua imensurável contribuição para a cultura de Mato Grosso.
Apaixonada pela cultura do Cerrado, Pantanal e Amazônia, sua voz possui um timbre inconfundível que ecoa em canções de compositores regionais, nacionais e internacionais. Vera canta com grupos de choro, de samba, voz e violão, viola caipira ou viola de cocho, em coros ou orquestras. Sem dúvida, uma das mais versáteis cantoras que surgiu por essas paragens.
Mas nem tudo são flores na trajetória dessa extraordinária cantora. Antes do reconhecimento, enfrentou preconceitos e superou todos eles com arte. “Ser mulher é um ser que está, um ser que é, que representa o mundo porque é da mulher que nasce a vida. Eu sou muito bem assumida enquanto mulher, não sinto concorrência em lado nenhum. Minha mãe dizia que eu era muito metida, na verdade, muito segura. Bem como muitas mulheres neste mundo, sofri muito por ser mulher, mas superei tudo com arte. A arte é meu leme”, define.
A beleza da voz de Vera Capilé, potente e delicada ao mesmo tempo, pode, facilmente, servir como metáfora de sua própria vida. “Tanto na música quanto na vida, já enfrentei muitas dificuldades por ser mulher. Cantar na noite atrai isso. Eu estou na noite, estou cantando, estou disponível. Não é assim! Sempre tive que impor respeito. Hoje em dia, ao menos para mim, as coisas mudaram um pouco. Já estou mais madura e experiente, mas quando no início de carreira, recebi muitas cantadas inconvenientes e tive dificuldades, como todas a mulheres têm”, revela.
Sobre a bandeira do feminismo, Vera explica. “Eu sou feminina, infelizmente temos que falar em feminismo. Muitas vezes para se impor temos que ser um pouco rude, então a necessidade do feminismo. Infelizmente este mundo é machista e nós encontramos homens e mulheres machistas. Há a necessidade sim dessa luta feminista. É tão bonito ser feminina e si mostrar como é, o que atrapalha é o machismo”.
Mas Vera é muito mais que cantora, é uma mulher de fibra e determinação, apaixonada pelo que faz. “Passar pelo preconceito para se impor como mulher nos faz mais fortes e vamos superando, levantando a cabeça e seguindo em frente. Sou uma mulher privilegiada, estou prestes a completar 70 anos e nunca abandonei os palcos, sempre me dediquei a arte, já são 70 anos de luta. Sou mulher, artista, mãe e profissional. Sou uma psicóloga que olha o mundo com arte. Não vou me aposentar. Enquanto tiver consciência do que estou fazendo, vou continuar. Já aproveito para convidar a todos para o meu aniversário/ espetáculo intitulado ‘Pelos córregos da vida’, dia 29 de março, na Sala Anderson Flores, no Cine Teatro Cuiabá, às 20h”.
Uma das mais proeminentes poetas de Mato Grosso, Luciene Carvalho ocupa a cadeira de número 31 na Academia Mato-grossense de Letras. A primeira mulher negra a ser imortalizada na academia, Luciene tem 12 livros publicados, dos quais destacam-se Insânia, Sumo da Lascívia, Ladra de Flores, dentre outros…. De uma forma ou de outra, todos dedicadas ao universo feminino.
“Um pacto com a criação, isso é ser mulher. É pela mulher que surge a vida. O ser mulher, inclusive, começa pelo canal de chegada da vida, de uma outra mulher, o que pode acontecer ou não com todas, mas é da natureza. Eu, particularmente, conecto muito com as coisas femininas, a terra, a lua, a água. Não sou mãe, mas me expresso como uma mãe pela escrita”, revela Luciene.
Sobre essa guerra dos sexos tão em voga nos últimos tempos e sobre o mercado literário em Mato Grosso, Luciene desabafa: “Eu nunca entendi bem essa coisa de gênero. Por muito tempo foi uma dúvida interna que doeu tanto que quando eu saí, já era uma explosão plural. E foi justamente essa pluralidade da minha escrita que me ajudou a chegar à Academia Mato-grossense de Letras. Porém, não existe um olhar de sustentação por meio do fazer poético. Todo mundo tem que ser alguma coisa, além de poeta, e isso me humilha profundamente. É muito triste perceber o desrespeito com a literatura, esse pacto inconsciente de desprezo. Em Mato Grosso, muitas mulheres escrevem muito bem, encontrar recursos para sustentar a própria poesia é o grande desafio”.
Sobre seus anseios, Luciene diz ainda que seu sonho de mulher é poder viver da própria escrita. “Eu me preparei para isso. E, se temos tantos bons autores e autoras, o que impede a efetivação de uma lei que valorize o escritor? A sociedade vem se transformando ao longo do tempo. Esse formato patriarcal está obsoleto e não contempla nem mesmo os anseios dos homens, machos, machistas. A mudança é hoje, as famílias e valores mudaram. Não se respeita ninguém no sentido essencial dos valores. O feminismo tem sua força, não sou militante, mas é só ler o que eu escrevo que está lá, a fêmea que procura se encontrar no social, suas necessidades e condição humana sem diferença. Paridade de gênero é um valer igual ao outro, de qualquer gênero. Paridade é meu conceito de luta interna e no fazer poético”, revela.
Formada em Comunicação Social com habilitação em rádio e TV pela Universidade Federal de Mato Grosso, há quase 25 anos milita no segmento do audiovisual, participando do início da extinta Associação Mato-grossense de Audiovisual – AMAV, hoje MTCine, onde permanece colaborando.
Começou atuando na produção de filmes de curta e longa-metragem de outros estados que utilizaram Mato Grosso como cenário e de várias produções locais ao longo dos anos. Realiza e dedica-se a projetos de exibições locais e nacionais e colabora ativamente na construção das políticas para o setor, além da estruturação do audiovisual como segmento econômico.
Para Keiko, ser mulher hoje em dia é uma questão de resistência, brinca. “Ainda hoje buscamos o nosso fortalecimento como profissionais atuantes no mercado e a luta pela igualdade de gênero nunca para. Já alcançamos muitas conquistas e muitas ainda estão por vir. É sempre importante nos posicionarmos como profissionais no mercado, com capacidade em atuar em qualquer profissão que escolhermos. Como mãe, procuro ensinar para as minhas filhas que as diferenças não são impedimento para nada e que podemos escolher e ser felizes com os nossos desígnios e nunca abrir mão dos nossos sonhos”.
Sobre a atuação das mulheres no mercado de trabalho, ela explica que o segmento do audiovisual tem muitas políticas e ações em favor da igualdade de gênero. “Hoje, há mulheres atuando em várias profissões em que, anteriormente havia mais homens. É muito bom acompanhar isso, o mercado do cinema, ao menos, tem incentivado o empoderamento feminino”, compara.
Mas ser mulher é quase uma questão que se aprende em casa, brinca. Sobre suas inspirações, é claro que Keiko não poderia deixar de elencar suas mentoras. “Minha mãe, Alcione, minha irmã, Marcella e minhas avós, Iracema e Rosa, elas são meu exemplo de luta, de força, coragem, exemplos de mãe e de toda a autoestima que devemos ter como mulheres. Cada uma a sua maneira ajudou na minha visão de mundo e como eu quero que seja para mim e para minhas filhas. A elas todo meu amor e gratidão”, conclui emocionada.