Grande parte das memórias físicas das viagens que o Marechal Candido Mariano Rondon executou entre 1907 e 1915 em Mato Grosso para construir as Linhas Telegráficas Estratégicas de Matto Grosso ao Amazonas perdeu-se no incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro, no domingo (2).
"Não temos ainda informações da extensão da destruição. Mas se trata do acervo de peças materiais guardadas no setor de etnologia, sinto dizer que parece não ter sobrado nada, mas precisamos esperar as vistorias, vai demorar um tempo", afirmou a antropóloga Bruna Franchetto pesquisadora do Museu Nacional do Rio de Janeiro.
O Museu reunia um dos maiores acervos de antropologia e história natural do país, com cerca de 20 milhões de itens. Fundado por Dom João em 1818, a instituição teve como um dos seus diretores mais famosos o antropólogo e etnólogo Roquette-Pinto, que fez grande parte das viagens ao lado do Marechal Candido Mariano Rondon.
Em 1916, o Museu Nacional promove uma série de conferências em homenagem ao Marechal mato-grossense, ao botânico A. J. Sampaio e ao professor Alípio Miranda Ribeiro por conta do trabalho executado na Comissão Rondon e que beneficiou muito o acervo (vide quadro abaixo).
O renomado físico Albert Einstein foi um dos nomes que participou das conferências e após ver o trabalho executado por Rondon chegou a indicá-lo ao Prêmio Nobel da Paz, em 1925, como revelou uma carta descoberta em 1994, em Jerusalém, pelo professor Alfredo Tiomno Tolmasquim, do Museu de Astronomia e Ciências Afins do Rio de Janeiro.
“Permita-me chamar sua atenção para a atividade do general Rondon, do Rio de Janeiro, porque em minha visita ao Brasil tive a impressão de que este homem seria um digno merecedor do Prêmio Nobel da Paz. Seu trabalho consiste na integração de tribos indígenas aos meios civilizados sem uso de armas, nem qualquer forma de coerção”, disse Einstein na carta publicada pelo historiador Sérgio Rodrigues em seu livro Cartas Brasileiras. O mato-grossense seria indicado novamente ao prêmio em 1950, mas infelizmente nunca o recebeu.
Ainda não se sabe ao certo o que foi perdido no incêndio do Museu Nacional. Mas grande parte das coleções de antropologia e etnologia foi queimada por completo, o que inclui os artefatos indígenas e de povos isolados e recém contatados coletados por Rondon e Roquette-Pinto.
“As coleções entomológicas, de aracnídeos, crustáceos, antropológicas, arqueológicas e paleontológicas também foram perdidas por completo. Por sorte, as coleções de vertebrados foram salvas. Estavam em outro prédio. A botânica está a salvo. E a biblioteca que inclui os periódicos e obras raras também”, disse o pesquisador do Departamento de Zoobotânica da Universidade de São Paulo, Miguel Trefaut Rodrigues.
O pesquisador já presenciou outras perdas. “O Butantã perdeu a maior coleção de cobras neotropicais do mundo. Fora o Museu da Língua Portuguesa. A questão é que este país não dá nenhum tipo de valor à cultura”, diz.
Uma dos poucos registos da Comissão são as digitalizações dos trabalhos. A mais recente foi feita pela Secretaria de Estado de Cultura. O projeto “O Brasil pelos Brasileiros” foi coordenado pelos pesquisadores da secretaria Fernanda Quixabeira e Luciwaldo Pires de Ávila, e com a curadoria da historiadora Elizabeth Madureira Siqueira, da Academia Mato-grossense de Letras (AML) e Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (IHGMT).
“A Comissão produziu um material muito amplo. Foram os primeiros tratados científicos do interior do Brasil. Primeiras incursões de botânicos e sanitaristas e mineralogia, astronomia, zoologia e botânica produzidos pelos próprios brasileiros”, explicou Luciwaldo que se mostrou desolado com a perspectiva de perda do material físico das expedições. “Desolação é a palavra mais presente. Quem espera esse tipo de perda? É até difícil processar a informação. E se não existe mais esse material, vamos ter que nos contentar só com o virtual”, conclui.
A Comissão Rondon e o Museu Nacional
O acervo do Museu Nacional retratava a importância da contribuição da Comissão Rondon para os estudos de História Natural. O quadro a seguir mostra o número de exemplares levados pela Comissão ao Museu Nacional em oito anos (de 1908 a 1916) e o número dos que reuniu durante seus 100 anos de existência do Museu.
No 2º quadro estão confrontados os trabalhos publicados pelo Museu e pela Comissão, em cada ramo da História Natural, como se segue:
O Marechal Rondon
Natural do distrito de Mimoso, de Santo Antônio de Leverger, Rondon é considerado um dos personagens mais instigantes da história nacional. Bisneto de índios Bororos e Terenas, e filho de uma índia Guaná, Cândido Mariano da Silva Rondon ousou viajar por uma Amazônia selvagem, contatou dezenas de povos indígenas hostis à presença da civilização e desenhou vários dos primeiros mapas da fronteira do Brasil. Foi o autor da Carta de Mato Grosso, o primeiro mapa que traçou as fronteiras e limites do estado.
Por suas façanhas nas selvas da Amazônia, Cândido Rondon teve o seu nome gravado em letras de ouro no Instituto de Geografia de Nova York, entre os cinco maiores exploradores do planeta. Também foi o único homem a dar nome a um meridiano, o meridiano Rondon, marca do ângulo 52 da circunferência terrestre.
Diretores de Museus do Brasil se revoltam com as perdas
A coleção de etnologia perdida no incêndio do Museu Nacional não tinha significado apenas para o Brasil pelo fato de os povos aqui representados habitarem essa parte do planeta, esses povos têm significado para a história da humanidade.
Desde o incêndio, representantes dos museus nacionais e do mundo têm se manifestado contra o descaso das autoridades brasileiras. O diretor do National Museu off Natural Vistor do Smithsonian, Kirk Johnson, se prontificou a ajudar os brasileiros a restaurar as coleções perdidas de alguma forma.
“O Museu Nacional no Rio de Janeiro ardeu em chamas ontem e com ele ardeu o berço da Arqueologia Brasileira, porque foi lá que ela nasceu ainda no século XIX. Com a perda de seus acervos arqueológicos e etnográficos inestimáveis, perde-se muito mais que a icônica e bela Luzia, ontem lembrada pela mídia a todo momento, perde-se a memória derradeira de povos e pessoas que não mais existem, que se mantinham no mundo dos vivos apenas através dos objetos e corpos que os invocavam, através do conhecimento que era produzido sobre eles, através do olhar admirado, ou curioso, ou espantado, ou mesmo, e por que não, às vezes indiferente de crianças e adultos que visitavam o ‘Museu da Quinta’ para vê-los. Arderam todos nas chamas que devoraram ontem milhares de anos de história humana e 200 anos da História da Arqueologia Brasileira. Agora estão definitivamente mortos, não nos hão de contar mais nenhuma de suas histórias, e nós, em nossa humanidade partilhada, morremos um pouco com eles”, afirmou em carta a Veronica Wesolowski, coordenadora do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP), na segunda-feira (3).