Em meio a uma dezena de obras que publicou, sobretudo em direito societário e comercial, Carvalhosa coordenou as 493 páginas de "O Livro Negro da Corrupção" (1995), centrado nas revelações que levaram à queda, em 1992, do então presidente Fernando Collor de Mello.
Modesto Carvalhosa foi professor de direito comercial na USP, presidente do Condephaat (1984-1987), quando foi tombada a Serra do Mar, consultor da Bovespa e presidente do Tribunal de Ética da OAB-SP. Também presidiu a Associação de Docentes da USP, liderando em 1978 uma greve contra o regime militar.
Sua publicação de maior fôlego foram os quatro volumes dos "Comentários à Lei das Sociedades Anônimas", publicados em 1977 e atualizados em sucessivas edições até o ano passado.
O professor e advogado é homenageado em documentário de 45 minutos produzido por sua filha Sofia.
O filme passará em duas sessões na próxima quarta-feira, no MIS (Museu da Imagem e do Som), às 21h e às 22h. Os ingressos são gratuitos, mas para a primeira sessão eles já estão esgotados.
Folha – Excetuados os textos de direito, sua obra mais conhecida é "O Livro Negro da Corrupção", de 1995. Desde sua publicação, a corrupção aumentou ou diminuiu no Brasil?
Modesto Carvalhosa – A situação piorou. Na época prevalecia uma ética na sociedade que levava os corruptos, ao menos no Congresso Nacional, à cassação. Hoje em dia a corrupção é mais rasteira e evidente. O instituto da cassação foi abolido, na prática. O último político atingido foi o José Dirceu, em 2005. A sanção política desapareceu, e com isso há agora muito mais campo para corruptores e corruptos.
E a Lei da Ficha Limpa?
É é uma grande medida, mas não impede que o político eleito vá sujar sua ficha dentro do Congresso, o que ocorre se ele for cooptado pelos lobbies corruptores. A única inibição da corrupção é a sanção social, representada pela falta de decoro e pela cassação.
O chamado "presidencialismo de coligação" teria algo a ver com a impunidade?
Claro, já que o Brasil é um país presidencialista, mas que adota um governo que teoricamente tem um pouco a ver com o Parlamentarismo europeu no pós-Guerra. No Brasil a coalizão de partidos não dá sustentação ao governo, ela divide o poder com ele. Cada partido troca o seu apoio por cargos. Isso gera crises frequentes. E os partidos, por lotearem o poder, acabam por se unir para evitar a punição de ministros, deputados e senadores.
Há alguns anos a percepção era de que a corrupção estava circunscrita ao Executivo e ao Legislativo. O Conselho Nacional de Justiça mostra que uma minoria do Judiciário também está contaminada. A seu ver o CNJ já está solidificado, ou ainda podem cortar as asas dele?
A dialética dessa questão é interessantíssima. A partir de dezembro do ano passado, o Supremo Tribunal Federal enfrentou um desgaste, uma desmoralização na opinião pública, por ter impedido que o CNJ fiscalizasse desembargadores. Mas a opinião pública elegeu o CNJ como um órgão de atuação positiva e moralizadora, como a grande instituição brasileira capaz de atuar contra as improbidades.
O sr. é um crítico histórico da lentidão do Judiciário. Até que ponto a quantidade de recursos emperra os processos, muito mais que o anacronismo dos tribunais?
A reforma do Poder Judiciário deveria seguir recomendações de outro tribunal superior, o STJ (Superior Tribunal de Justiça), que tem a visão mais arejada e moderna do problema. O papel do STJ é extraordinário. Ele sugere um sistema em que os casos podem terminar em conciliação ou arbitragem. Seria necessária uma emenda à Constituição, que, sem afetar o direito pleno à defesa e à cidadania, desse força judicial a essa alternativa. Seria o caminho para as questões que não são de interesse coletivo. Um acidente de trabalho é questão de interesse coletivo. Mas não é o caso de uma disputa societária, entre sócios e acionistas. É um litígio próprio à arbitragem, sempre e apenas em primeira instância. Há 80 milhões de processos em curso no Brasil. Seriam necessários 800 mil juízes e 100 mil desembargadores para lidar com essa massa, o que é materialmente impossível.
E a súmula vinculante [decisões do STF que devem ser seguidas em instância inferior], de que se falou tanto há alguns anos?
Isso é algo muito, muito importante. Pena que não esteja se expandindo.
Vejamos o direito societário, sobre o qual o sr. lecionou e publicou. As empresas com controle acionário pulverizado e com administração profissional deram -ou não- mais dinamismo aos mecanismos de decisão?
Cada caso é um caso, dependendo dos administradores. Nos anos 90 falou-se em "governança corporativa" como se fosse uma religião, ao lado do cristianismo e da fé islâmica. Mas os administradores das companhias de controle pulverizado muitas vezes se apropriam de recursos imensos, por meio de bonificações que eles têm o poder de conceder a si mesmos. Há na Europa e Estados Unidos casos em que administradores recebem honorários de US$ 10 milhões, US$ 50 milhões. Companhias com controladores mantêm a rédea sobre os administradores. No mercado americano, montadoras há três anos falidas distribuíam milhões em bônus aos administradores.
Como o sr. avalia o desempenho das estatais brasileiras, que têm um grande controlador, a União?
Depois das privatizações, as estatais que permaneceram sob controle do Estado são administradas de modo mais técnico, conveniente, mais profissionalizado, mas com deficiências próprias à ingerência política e pressão dos fundos de pensão, que atuam como repúblicas independentes, dentro do Brasil.
Qual seu tombamento preferido: o Caetano de Campos, em 1975, quando o sr. chefiou um grupo de pressão, ou a Serra do Mar, quando o sr. presidia o Condephaat, durante o governo de Franco Montoro (1983-1986)?
No caso do Caetano de Campos eu era jovem, e, além da questão urbanística, havia a contestação de uma decisão autoritária do regime militar. Além disso eu estudei no Caetano de Campos, onde tenho fortes raízes sentimentais. Naquela época, o governo pretendia fazer uma grande estação de metrô na praça da República, às custas da demolição daquele colégio. Nas semanas em que durou o caso a Folha dava chamadas de primeira página. Eles ao fim recuaram.
Entre 1977 e 1979 o sr. também presidiu a associação dos professores da USP, que promoveu uma greve. Havia também contestação ao regime?
Claro que sim. Foi um momento que aconteceu quando tomávamos consciência da necessidade urgente de mais democracia. Nossa greve ocorreu na mesma época que a dos metalúrgicos de São Bernardo.
Chegou a ser convidado para entrar em algum partido político?
O governador Montoro me fez alguns convites, mas eu preferi nunca me filiar a nenhum partido.
Sua geração viveu a adolescência no pós-Guerra, quando as pessoas acreditavam que o mundo seria melhor, diferente.
O mundo mudou desde então, e para melhor. A democracia se impôs em certas áreas e ela funcionou como uma forma de aperfeiçoamento civilizatório. Houve um grande avanço nos direitos da sociedade civil. Com relação ao Brasil, estávamos em mãos de uma oligarquia que acreditava em valores éticos, mas não tinha uma visão social. Ocorreu uma abertura, mas a classe política ficou com um perfil mais vulgar. A sociedade civil, no entanto, cresceu e está bem mais poderosa.
Qual o papel das ONGs nesse processo?
Todos os movimentos sofrem, depois de determinado tempo, os efeitos da burocratização, da degeneração, de perda de seus objetivos iniciais. As ONGs perderam muito de seu impulso generoso ao se institucionalizarem. Em lugar de um ideal, elas hoje querem se aproximar dos governos. A institucionalização degrada as ideias.
Como pianista amador, quantas horas por semana o sr. tem se exercitado?
Muito pouco, talvez umas quatro horas. Tenho estudado peças menos difíceis de Mozart, Bach, Satie e o Liszt que seja mais fácil.
E com relação às leituras?
Tenho lido historiadores franceses e obras de psicologia, à procura de respostas a uma antiga obsessão minha, que são as impulsões do ser humano, no sentido de Nietszche. As impulsões são muito negativas, uma tragédia. Saramago tem uma frase terrível: "O ser humano não merece a vida." Só por essa frase ele já teria merecido o Prêmio Nobel.
Fonte: FOLHA.COM