Foto: Arhmad Jarrad
Por: Bruna Gomes/Reinaldo Fernandes
Mais da metade das cidades mato-grossenses têm até 80% da população dependente de benefícios de programas sociais. São locais com estagnação econômica e desgaste de recursos. Conforme dados da Secretaria de Trabalho e Assistência Social (Setas), a proporção de municípios nesse estado pode ser medida pela comparação com as 42 cidades que compõem o “eixo do agronegócio” em Mato Grosso. O secretário Valdiney Arruda afirma que os outros 98 municípios, excetuando Cuiabá, têm entre 65% e 80% da população com registro no Cadastro Único (CAD Único).
Conforme a Setas, 44% da população de Mato Grosso recebe hoje benefício de algum tipo de programa social, são 1.355.728 pessoas, cuja maioria (610.328) está dentro do Bolsa Família. Esse grupo representa 45% do total de pessoas residentes em Mato Grosso que aparecem no CAD Único. O Bolsa de Prestação Continuada, que paga mensalidade de um salário mínimo a idosos com mais de 65 anos e a pessoas com deficiência física, cobre 41.650 das pessoas dentro do CAD (5% do total).
Mulheres, criança e adolescente, com idade máxima de 14 anos, são a maior parcela dos beneficiados, somando um público de 628.666 assistidos. “É uma população de cidades com economia exaurida. Lugares que nos últimos cem anos concentraram exploração de ouro ou madeira e que após exaustão da pedra e da mata perderam seu motor econômico e vêm passando por essa transformação nos últimos 50 anos”, disse o secretário Valdiney Arruda.
O impacto da retração pode ser percebido pela evasão de habitantes que, em algumas delas, na época do auge das atividades, tinha população na casa de 100 mil pessoas, e no momento atual, a população está reduzida a 11 mil habitantes.
Alto Paraguai (199 km de Cuiabá) é um exemplo das cidades exauridas. A cidade passou por ciclos de exploração garimpeira, o segundo deles iniciado no fim da década de 1930. Ouro e diamante “brotavam” da terra. O que ficou ao fim do período foram as fazendas onde houve a criação de sítios de escavação. Desde meados do século XVIII, época em que ocorreu a primeira fase de exploração de pedras preciosas, o local era uma corrutela ligada a Diamantino; somente em 1948 ganhou o status de cidade. Desde então, está em estado de estagnação.
Conforme a Setas, dos 10,066 mil habitantes- conforme o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)- 5,317 mil (52%) estão inscritos em programas de assistência social. No Bolsa Família há 2,425 pessoas (24% da população) e 397 no Bolsa de Prestação Continuada. A classificação socioeconômica do município é de 12,45% da população em extrema pobreza e 24,55% na pobreza.
Peixoto e Lucas: dois extremos
Peixoto do Azevedo (698 km de Cuiabá) tem um histórico semelhante ao de Alto Paraguai. Com apenas 28 anos de emancipação política, a cidade teve início com a corrida pelo ouro na década de 1970 e até hoje grande parte de sua economia gira em torno dessa atividade. A diferença é que a cidade começa a se destacar por crescente investimento na agricultura. Mas qualidade de vida nos dois municípios tem registros próximos.
Em 2013, Peixoto de Azevedo tinha 124º Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) em Mato Grosso, com média considerada muito ruim – a pesquisa das Nações Unidas avalia as condições com resultado de 0 a 1 ponto, passando de péssimo a ótimo. O nível de educação de Peixoto à época estava em 0,521; a renda, em 0,691; a longevidade em 0,761.
Em Alto Paraguai, os marcadores eram de 0,541 para educação; 0,621 para renda; e 0,784 para longevidade. Sua posição no ranking estadual em desenvolvimento humano estava na parte final da tabela, com a colocação 124ª no universo dos 141 municípios de Mato Grosso.
Lucas do Rio Verde (334 km de Cuiabá), responsável por 1% de toda a produção de grãos no País, tem o segundo melhor IDH de Mato Grosso e o terceiro da região Centro-Oeste. Em 2013, a média do desenvolvimento educacional no município estava em 0,710; a renda de seus poucos mais de 57 mil habitantes teve uma avaliação de 0,766; e o índice de longevidade estava em 0,833. Conforme pesquisa deste ano da revista Exame, Lucas está entre os 50 municípios brasileiros com melhores condições para se viver, e é quinto com cenário mais favorável a investimentos.
Vulnerabilidade favorece “reprodução da pobreza”
Criança com pés descalços e na mão um smartphone no qual ela ensaia tirar uma selfie. O cenário, no entanto, não é tão agradável quanto o que se costuma ver em redes sociais: festas, praias, piscinas, baladas e outros lugares de desejo bastante comum. A rua de chão batido que dá acesso à casa do personagem está esburacada e nos dias de chuva fica difícil atravessar esses trechos por causa do alagamento.
O menino de seis anos faz parte de uma família, composta por dez pessoas em que a situação da avó e mãe tem grandes chances de ser reproduzida por ele- pobreza quase na linha da miséria, condições precárias de sobrevivência, baixo nível de instrução formal.
Dona Ana Maria Izidoria, avó da criança, saiu de Santo Antônio do Leverger aos 10 anos de idade, depois do fechamento de uma usina. Nesses últimos 50 anos ela mora em Cuiabá, e a casa onde está agora, no Parque Geórgia, região do Coxipó, pertence a sua filha. O chefe da família, no entanto, é ela. No terreno de 20m x 30m há uma casa de alvenaria sem acabamento e, aos fundos, um barraco que serve de contíguo para abrigar dez pessoas. Três adultos e sete crianças.
Dona Ana Maria, de 60 anos, é a mais velha. Douglas, o neto dela, tem seis anos e convive com outros irmãos e primos com idade entre oito e 16 anos.
A família sobrevive com uma renda inferior a R$ 1 mil por mês. Além do salário mínimo da filha de 36 anos, o dinheiro que compõe a renda vem dos “bicos” do neto de 18 anos e da própria dona Ana, que se divide entre pequenos serviços – passar roupa, varrer quintais e lavar roupa – e o recolhimento de “latinhas”.
“Está difícil viver. Você vai com cem reais no mercado e não compra quase nada. Imagina quanto custa o quilo do feijão hoje. Eu tenho que me virar todos os dias para trazer um dinheirinho para casa. Levanto cinco horas da manhã, saio pelos bairros na redondeza catando latinha e de lá mesmo eu já encontro alguém para limpar um quintal, lavar uma vasilha, sabe? É assim que eu faço. Senão, não dá”.
O esforço aumentou nos últimos meses por dois motivos que, apesar de dona Ana não saber, estão relacionados à crise econômica do País. O preço pago pelo quilo da lata descartável de alumínio caiu de R$ 3,50 para R$ 2,40; o que significa que, para conseguir os mesmos R$ 160 anteriormente, ela precisa juntar mais objetos. “O outro é que está difícil encontrar latinha, parece que o pessoal está parando de bebe” – conta Ana, se divertindo com a ambiguidade de sua declaração.
Ela está tentando, há um ano, se reinserir no Cadastro Único para receber o Bolsa Família. O benefício foi suspenso depois que a mãe de um neto dela- cujo pai, filho da dona Ana, morreu e ela assumiu a criação da criança- abriu outro cadastro em nome próprio, o que interrompeu o recebimento para o registro anterior.
“Até hoje não foi nada resolvido, só me mandam assinar papel levar para outro lugar, mas não tem nem previsão se eu vou conseguir ganhar de novo o Bolsa Família”.
Desigualdade remonta à década de 1970
Para o economista José Manoel Marta, a característica da desigualdade socioeconômica em Mato Grosso pode ser historicamente datada a partir da década 1970, quando o País passava por forte processo de reformulação econômica, impulsionado pelo governo militar, e as fronteiras de Mato Grosso foram alargadas com migração de brasileiros de outras regiões, que chegaram com intuito de produzir no campo.
“Podemos imaginar, em primeiro lugar, um processo histórico desde a década de 1960, quando foi implantada uma ‘recolonização’, vamos chamar assim- porque Mato Grosso tem uma colonização que vem do século XVIII. Até o século XX havia uma grande quantidade de terra, espaço que não era muito dado à produção agrícola. Foi alterado a partir da década de 1970, quando alguns assentados e agricultores têm possibilidade de acesso a recursos para produzir de maneira adequada, como, por exemplo, primeiro, o arroz e depois, a soja”, explica.
Segundo ele, esse desenvolvimento mostrou retorno dos investimentos em médio prazo, com surpresa pelo índice de crescimento. Já na década de 1980, havia uma relação mais marcada de ganhos advindos da produção agropecuária e da população com renda de salário mínimo.
“Em certa altura, na década de 80 e 90, surge uma possibilidade de produção com lucros e, consequentemente, as pessoas vão se permitir serem diferentes umas das outras: umas ganham salários, outras vivem de rendas de produção, isso naturalmente faz com que um país, ou uma região, seja diferenciado”, observa.
Marta afirma que esses tipos de ganho vão marcar o cenário socioeconômico de Mato Grosso até o momento atual, com a grande demanda por benefícios de políticas públicas de um lado e a riqueza do agronegócio, de outro.
“Existem duas questões a se considerar. Uma é a própria questão do processo produtivo que vai criar diferenças entre pobres e ricos. E temos outra que é decorrente de políticas públicas e a distribuição [de renda], que busca novos salários- Bolsa Família, atuação do governo em melhorar a saúde e a educação pública- que as pessoas não vão pagar- e, consequentemente, viver um pouco melhor, além de, depois de formados, poder trabalhar e ter uma renda melhor”, frisa o economista.
Principal setor da economia em MT é o comércio
José Manoel Marta, economista, aponta a necessidade de revisão de análises que colocam o agronegócio como principal setor da economia mato-grossense. Ele diz que a produção agrícola representa hoje 30% do Produto Interno Bruto (PIB) do Estado, enquanto o comércio e o funcionalismo públicos, juntos, seriam responsáveis por mais de 50% da movimentação econômica.
“Eu não acredito que a produção da soja seja o que carrega o Estado nas costas, muito pelo contrário, há grande geração de renda da atividade governamental via SUS, servidores públicos. As transferências que são feitas para o pagamento de funcionários públicos é quando você tem as maiores rendas. Com isso você gera uma renda e faz com que o comércio seja muito ativado”, acrescenta.
Ele ressalta que o principal setor em Mato Grosso é o comércio, o mais importante, que representa mais de 50% do PIB. “A atividade agrícola representa 30% da economia do Estado, para produção ela não vai conseguir utilizar mais do que 20% de insumos para fazer essa produção”, pontua.
"Agronegócio existe em nicho isolado e mistificado”
Para o PhD em engenharia agrônoma e professor da Universidade de Edimburgo, no Reino Unido, Antônio Augusto Rossotto Ioris, o agronegócio no Brasil existe em um “compartimento isolado” devido ao avanço em suas atividades em comparação ao restante da economia nacional, no período de recessão. Ele aponta estatísticas oficiais que sugerem que aproximadamente 25% do PIB, 35% das exportações e 40% dos empregos estão em segmentos da agricultura e pecuária. Para a “mistificação” do sucesso da agropecuária.
“Na verdade, a imagem de bonança e competência é produto de uma construção ideológica que reafirma o poder de uma economia degradante e concentradora de oportunidades. Se a ‘agricultura-como-agronegócio’ tem se expandido para novas áreas na Amazônia, no Centro-Oeste e no Nordeste ocidental, isso é devido não somente à abundância de terra barata e recursos naturais, mas pela facilidade de se reproduzir padrões de exploração social e ambiental que foram adotados ao longo das longas fases de colonização e construção da identidade brasileira desde 1822”.
Segundo Ioris, a modernização associada ao agronegócio ocorre basicamente a avanços tecnológicos pontuais de equipamentos, máquinas, genética e agroquímicos, mas com descompasso social. “O surgimento de cidades na fronteira do agronegócio contém o velho DNA da urbanização brasileira: desigualdades espaciais e uma periferia disfuncional. Tal é o padrão das cidades do norte de Mato Grosso e o florescimento de grandes fazendas nas mãos de fazendeiros urbanizados. A região do Alto Teles Pires, ao redor de Sorriso e Sinop, tem certamente marcas de exportação de soja e algumas outras culturas, mas é um deserto alimentar que importa muito da comida que necessita”.
Produção cresce, indústria retrai
O Brasil é hoje o segundo produtor e o principal exportador de soja no mundo e, de acordo com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) em 2019 o Brasil irá responder por 40% do comércio global de grãos de soja e com 73% das transações de farelo de soja.
Ainda conforme o Mapa, Mato Grosso tem hoje o maior valor bruto de produção (VBP). A contabilidade de produção e equipamentos de porteira fechada de fazendas do agronegócio estava na casa dos R$ 12,2 bilhões, até junho.
De acordo com especialista Antônio Augusto Rossotto Ioris, a expansão do agronegócio provoca efeitos colaterais da crescente dependência das exportações agrícolas, como uma progressiva desindustrialização da economia brasileira, aumento das importações de insumos intermediários e bens de capital, e perigosa dependência de investimentos estrangeiros.
Ele aponta que, entre 2000 e 2010, a exportação de bens primários aumentou de 25% para 45%, enquanto os bens manufaturados caíram de 56% para 43%. De 2004 a 2013, a indústria caiu de 55% para 38% do PIB, enquanto a produção primária aumentou de 29,5% para 46,7% – dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC).
Função do Estado é equilibrar lógica do mercado
Para o secretário de Trabalho e Assistência Social (Setas), Valdiney Antônio de Arruda, a lógica do mercado prioriza o desempenho de ganho com menor custo, o que tem provocado o descompasso entre geração de riqueza e a distribuição dela.
“Quando você tem desenvolvimento econômico, ele teria que ter uma política na mesma linha de desenvolvimento social. Quando você não tem essas duas políticas dialogando, você vai ter uma concentração de renda. O desenvolvimento econômico não responde por si. A lógica do desenvolvimento econômico foi pautada no estabelecimento e no aprimoramento empresarial, no desenvolvimento da indústria, da forma de geração de riqueza. E a geração de riqueza, na sua essência, em todos os campos, tem primazia. Maximiza o lucro e minimiza os custos, todo empreendimento busca isso”.
O secretário diz que a função do Estado é intermediar as relações para gerar equilíbrio social. “Estado precisa criar um mecanismo para diagnosticar os problemas de desenvolvimento social. As ações que deverão ser tomadas devem passar pelo diagnóstico da situação social. Nós [o Estado de Mato Grosso] não temos hoje um estudo que aponte como está a situação da vulnerabilidade, e é isso que secretaria está buscando fazer”.
Ele diz que uma alternativa é o investimento na chamada “economia verde”, que gera cinco postos de trabalhos a mais que a “economia tradicional”. A diferença entre as duas seria, além da proposta de sustentabilidade, a demanda maior de pessoal ao longo da cadeia de produção.
“Por exemplo, se houver investimento em energia renovável será ótimo para o planeta, por causa da sustentabilidade, e melhor ainda para o emprego, porque você tem de cinco a dez postos de trabalho a mais que no modelo tradicional. Você precisa da empresa para fabricar, pessoas em algumas especialidades para montar e pessoas para fazer a manutenção”.
O secretário diz que agricultura familiar seria o foco pelo novo modelo. “O que se entende hoje é que o agronegócio já expandiu. Não precisa mais desmatar para crescer; já consegue andar sozinho. O que o Estado precisa agora é voltar os olhos para o pequeno”.
Empoderamento dos jovens pela qualificação
Quanto a outras esferas sociais, o secretário de Estado de Trabalho e Assistência Social, Valdiney Arruda afirma que o “empoderamento de jovens” é o foco das políticas públicas de preparação para entrar no mercado do trabalho. “Qualificação profissional é a forma mais rápida de empoderar alguém, de dar a ele condição mínima de sobrevivência. É necessário criar uma ação que atende a especificidade do jovem, por isso o governo criou o pré-emprego, que ensina desde relação de trabalho até o processo de aprendizagem”.
Segundo ele, a tentativa é barrar a reprodução da pobreza. Para isso, os jovens de baixa qualidade escolar e profissional e com histórico familiar de falta de acesso a políticas públicas devem ser o foco das ações. “Metade dos jovens precisa do Estado para se desenvolver, é neles que a ação deve focar para impedir a reprodução da pobreza. O programa Emprega Rede, por exemplo, identifica os jovens no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), seleciona o perfil, leva ele para escola e depois o qualifica com formação específica”.