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Por G1
Decretado o fim da emergência nacional da epidemia de microcefalia, o zika pode ter saído dos holofotes, mas as sequelas do vírus seguem fazendo parte do cotidiano de centenas de pessoas que frequentam diariamente os centros de saúde com atendimento especializado.
É o caso de S., de apenas dez meses, que tem microcefalia grave e, na última terça-feira (23), chegou ao movimentado ambulatório do Hospital Antônio Pedro, da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, dormindo tranquilamente no colo de sua mãe, A., de 35 anos, depois de ter sofrido uma convulsão de madrugada.
Último filho numa escadinha com outras quatro crianças, de 13, 10, 8 e 2 anos, S. veio ao mundo em uma comunidade muito pobre do interior do estado do Rio, já sem pai. O marido de A. disse para ela que não estava pronto para ter uma criança com um problema congênito tão sério e, simplesmente, abandonou a família.
O pequenino S. é um símbolo da epidemia que assolou o país nos últimos dois anos. A doença, ainda cercada de vários mistérios para os especialistas, parece se revelar em suas formas mais graves em locais pobres e sem infraestrutura básica, como as favelas e as comunidades carentes – onde várias outras enfermidades grassam de forma invisível.
A observação é da infectologista pediátrica Claudete Araújo Cardoso, médica que cuida de S. e é uma das autoras do artigo "Zika: um sofrimento em favelas urbanas", publicado no início do mês na revista científica PLOS Neglected Tropical Diseases junto com especialistas americanos da Universidade de Berkeley.
“O que acontece é que nas áreas mais ricas tem mosquiteiro, repelente, ar condicionado. Então, você pode até ser picado, mas será muito menos vezes”, explica a especialista. “Nas comunidades, a realidade é outra, as pessoas têm uma carga viral muito maior”, acrescenta, mostrando a foto de uma paciente, cujo rosto está coberto de picadas de mosquito.
Mas essa é apenas mais uma hipótese sobre a doença ainda a ser comprovada. O futuro de S. e de tantas outras crianças nascidas com malformações em razão do vírus é incerto. Há mais perguntas sendo feitas do que respostas sendo dadas. E os especialistas temem que o fim da emergência nacional agrave esta situação.
“Estamos diante do desconhecido”, diz a médica.
O diretor do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), Wilson Savino, concorda com a colega.
“Hoje, passada a crise maior, quase não se fala mais sobre zika, é como se não fosse mais um problema de saúde”, constata Savino. “Mas as crianças que nasceram com problemas, sobretudo com microcefalia, estão lá e vão viver com dificuldades monstruosas; essas famílias vão vivenciar muitos problemas.”
Alastramento imprevisível
Os médicos não têm sequer como prever se o número de novos casos seguirá baixando ou se podemos esperar uma nova epidemia significativa no próximo verão.
De acordo com o último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, neste ano, até 15 de abril, foram registrados 7.911 casos de zika em todo o país – uma redução de 95,3% em relação ao mesmo período do ano passado (quando foram contados 170.535 casos). A hipótese mais aceita para esta queda é de que boa parte da população já estaria, agora, imunizada naturalmente contra a doença, e a tendência seria que o número de casos seguisse caindo. O vírus, no entanto, pode sofrer mutações, como já ocorreu em outros casos.
Neste ano, 3.651 casos de microcefalia e outras alterações do sistema nervoso sugestivos de infecção pela zika foram notificados ao Ministério da Saúde pelos estados. Até agora, 230 foram confirmados. Desde o início da epidemia, em novembro de 2015, foram notificados 13. 490 casos, com 2.653 confirmações. Mas muitos casos, segundo Claudete, seguem fora do radar das autoridades, completamente invisíveis.
Somente na área coberta pelo hospital universitário da UFF (que engloba sete municípios), a médica sabe que existem pelo menos 500 casos de mulheres que apresentaram sintomas compatíveis com zika durante a gravidez. Apenas 127 crianças e 23 gestantes estão sendo acompanhadas em seu ambulatório. As demais não foram ainda localizadas – trabalho ao qual a médica e sua equipe pretendem se dedicar agora, fazendo uma busca ativa nas comunidades.
“Há casos graves de síndrome congênita que não são de microcefalia e passam despercebidos”, explica Claudete. “Há casos também em que os sintomas só se manifestam tempos depois. Algumas crianças, por exemplo, nascem com o perímetro encefálico normal e depois, simplesmente, param de se desenvolver. Por isso os filhos de todas as mulheres que apresentaram sintomas de Zika na gravidez precisam ser acompanhados.” A recomendação do ministério é de que essas crianças sejam acompanhadas por três anos. Na UFF, no entanto, elas serão monitoradas por cinco anos.
Do total de casos acompanhados por Claudete e sua equipe, apenas 27 são de microcefalia grave, caso do bebê S. Os demais apresentam os mais diversos tipos de alteração – e alguns não apresentam alteração alguma.
“Temos vários casos de crianças com o perímetro encefálico normal (acima de 34 centímetros), mas que apresentam muito líquido dentro do cérebro, que têm a síndrome congênita da Zika”, explica o neurologista pediátrico Alexandre Fernandes, que também trabalha no Antônio Pedro. “Há algumas que não tinham nada e foram piorando. Ainda não sabemos explicar por que isso acontece. É como se o vírus ficasse de alguma forma latente nas crianças e fosse se revelando aos poucos.”
Suspensão da emergência
Diretor do Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde, o infectologista João Paulo Toledo garante que a suspensão da emergência nacional não terá impacto na vigilância, nas ações de combate ao mosquito e na assistência às crianças nascidas com problemas congênitos.
“Entre 2015 e 2016 houve uma grande mobilização nacional de combate ao Aedes, com a criação de mais de duas mil salas de combate ao mosquito”, explicou Toledo. “Essas salas continuam coordenando ações estaduais e municipais.”
Além disso, segundo Toledo, o Ministério da Saúde financiou a construção de 52 novos serviços de atendimento para crianças com síndromes congênitas (65% deles no Nordeste), que se somam a outros 180 serviços de reabilitação já existentes.
Para Wilson Savino, diretor do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), as medidas tomadas pelo ministério não são suficientes para responder ao problema.
“Neste cenário de crise econômica e política, a expansão das equipes de saúde para cuidar desse contingente de crianças que nasceram com alterações no sistema nervoso central não foi desenvolvida na escala necessária”, afirma. “Com certeza o que temos não é suficiente. O Brasil não se preparou para isso – e é difícil mesmo, somos um país imenso, com grandes diferenças.” Além disso, diz Savino, os cortes orçamentários em Ciência, Tecnologia e Educação, por exemplo, atingem pesquisas e ações contra a doença.
“Isso não é muito falado, mas, neste ano, vamos ter uma redução significativa de pesquisa, de descobertas, de conhecimento gerado”, afirma o especialista. “E com o fim da emergência o financiamento do exterior também desaparece.”
S. boceja no colo da mãe e abre os olhos. “O pior já passou”, atesta A., olhando carinhosamente para o filho e sorrindo para a médica. “Mas de madrugada levei um susto muito grande por conta da convulsão: pensei que ia perder o meu bebê, não estou preparada.”