Olinda Altomare Opinião

Viva o cinema Brasileiro!

O filme “Ainda Estou Aqui” oferece um retrato profundamente emocional e impactante das consequências humanas da ditadura. Apresenta um retrato intimista e doloroso da história de Rubens Paiva e sua esposa Eunice Paiva, destacando o impacto devastador da ditadura militar brasileira sobre suas vidas e sua família. Sob o aspecto histórico e familiar, a obra evidencia não apenas a violência do regime, mas também a resiliência e a luta por justiça e memória.

Rubens Paiva foi um político brasileiro, deputado cassado em 1964 após o golpe militar, e uma figura ativa contra o regime. Sua prisão e desaparecimento em 1971 são marcos trágicos da repressão da ditadura, simbolizando o que muitos opositores enfrentaram: tortura, silenciamento e apagamento.

O filme retrata com sensibilidade como o Estado usava a violência sistemática para eliminar vozes dissidentes e o impacto dessa brutalidade na esfera privada, especialmente na família.

A prisão e o desaparecimento de Rubens Paiva representam o ápice da violência da ditadura: o apagamento de um indivíduo sem deixar rastros ou explicações, negando às famílias qualquer tipo de encerramento ou justiça.

Eunice Paiva, interpretada com maestria por Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, é o centro emocional da narrativa. Após o desaparecimento de Rubens, Eunice precisa assumir o papel de mãe e provedora em um cenário de incertezas e vigilância constante. Sua luta para criar os filhos enquanto enfrenta o peso do luto, a ausência de respostas e o estigma de ser esposa de um “subversivo” exemplifica a coragem silenciosa de muitas mulheres naquele período.

O filme explora como os filhos de Rubens e Eunice foram afetados pela repressão. Eles crescem em um ambiente de medo, silêncio e ausência paterna, com uma mãe que tenta protegê-los enquanto carrega a própria dor. Destaca a ausência como uma forma de tortura contínua, um peso emocional que Eunice e seus filhos carregam ao longo da vida.

Há uma transmissão geracional do trauma, evidenciando como a ditadura não apenas destruiu vidas diretamente, mas também deixou cicatrizes profundas nas famílias e nas gerações seguintes.

Eunice se torna um símbolo de resistência ao manter viva a memória de Rubens, recusando-se a deixar que ele seja esquecido. Sua batalha por respostas e justiça reflete a luta de milhares de familiares de desaparecidos políticos.

Ela é retratada como uma mulher forte e resiliente, que, mesmo diante do luto e do medo, encontra maneiras de resistir e proteger seus filhos. Vive um constante conflito interno entre a necessidade de sobreviver e o desejo de agir contra o regime opressor. A culpa por “não fazer mais” ou “não proteger o suficiente” consome sua psique, mas ela é forçada a reprimir seus sentimentos e sua verdade, vivendo um estado de constante alerta e essa repressão emocional, somada ao medo e à impotência, compromete sua saúde mental.

Há uma luta constante para equilibrar o papel de mãe com o de mulher resiliente e sobrevivente de uma opressão maior.

A personagem central é um exemplo de força. Mesmo diante da dor, ela encontra maneiras de resistir, seja ao se apegar às memórias, à esperança de justiça, ou aos laços com seus filhos. Sua resiliência não é sobre “não sentir dor”, mas sobre seguir em frente apesar da dor, buscando preservar sua humanidade em um mundo desumanizado.

É certo que a dor vivida por aquela mãe é transmitida, consciente ou inconscientemente, aos filhos, e eles crescem em um ambiente marcado pela ausência, pelo silêncio forçado e pela constante ameaça externa.

Essa transmissão de traumas evidencia como os horrores da ditadura não afetam apenas aqueles diretamente perseguidos, mas também as gerações futuras.

Destaque total para as atrizes Fernanda Torres e Fernanda Montenegro que entregam performances profundamente emocionantes e complementares, dando vida à personagem Eunice Paiva em diferentes fases de sua vida. 

Fernanda Torres interpreta Eunice durante os anos de repressão da ditadura militar brasileira. Com uma performance visceral e comovente, trazendo à tona a complexidade de uma mulher que tenta sobreviver em meio ao luto, ao medo e à luta por justiça. Sua atuação é marcada por uma intensidade contida, refletindo a dor e a resiliência de uma mulher que enfrenta a perda do marido e a responsabilidade de criar os filhos sozinha em um período de extrema opressão. A crítica internacional destacou sua performance como “magnífica e intrincadamente elaborada”, ressaltando sua capacidade de transmitir emoções complexas com sutileza e profundidade. 

Fernanda Montenegro, por sua vez, assume o papel de Eunice em sua fase mais madura, trazendo à tona a fragilidade e a sabedoria acumuladas ao longo dos anos. Sua participação, embora breve, é descrita como “excepcionalmente poderosa”, adicionando uma camada de profundidade à narrativa e evidenciando a continuidade da força interior da personagem ao longo do tempo. A expressão e o olhar dela são profundos e emocionantes.  

A colaboração entre mãe e filha na interpretação de uma mesma personagem em diferentes momentos da vida confere ao filme uma autenticidade e uma riqueza emocional únicas. Essa parceria artística não apenas enriquece a narrativa, mas também oferece ao público uma experiência cinematográfica profundamente tocante e memorável.

O filme “Ainda Estou Aqui” revela uma obra cinematográfica bem construída, com forte apelo emocional e técnico, cujo objetivo principal é transportar o espectador para os horrores da ditadura e suas consequências na vida pessoal e familiar vivenciada pelos Brasileiros à época.

A narrativa intercala momentos de tensão política com instantes de introspecção e afeto familiar, permitindo que o público compreenda a complexidade do período histórico e seu impacto humano.

“Ainda Estou Aqui” é tecnicamente impecável e emocionalmente devastador. Ele combina atuações brilhantes, direção sensível e uma estética cuidadosamente elaborada para contar uma história profundamente humana e universal. A obra consegue equilibrar sua função como peça de denúncia histórica e como um drama íntimo, tornando-se um marco no cinema brasileiro contemporâneo.

É um retrato pungente de como as ditaduras destroem não apenas vidas, mas também laços afetivos, identidades e gerações inteiras. Eunice, com sua complexidade emocional, simboliza a luta de milhares de mães, pais e filhos que enfrentaram o horror e o silêncio. Ao mesmo tempo, o filme celebra a resiliência e a capacidade humana de buscar a verdade e manter viva a memória daqueles que foram injustamente tirados de suas vidas.

Vale salientar que o filme contribui para o resgate de uma história que, por muito tempo, foi silenciada. Ele questiona o papel do Estado na perpetuação de violações de direitos humanos e a necessidade de justiça para os crimes da ditadura. A narrativa ressalta a importância de preservar a memória histórica para evitar que atrocidades semelhantes se repitam.

A mensagem é clara: mesmo diante da opressão e da dor, o amor e a memória são atos de resistência.

Sem dúvida o filme estimula um olhar crítico sobre a ditadura e seus impactos, especialmente para gerações que não vivenciaram diretamente o período, tornando-se um valioso recurso para manter viva a discussão sobre a importância da democracia.

Ressalta a democracia como um pilar essencial para evitar que tragédias como a ditadura voltem a acontecer. Em tempos de crise ou polarização política, é vital lembrar o que acontece quando os direitos básicos são suprimidos. A democracia, com todos os seus desafios, é um sistema que permite diálogo, diversidade de opiniões e participação popular – antídotos contra o autoritarismo.

Por meio dessa reflexão, o filme reafirma a importância de preservar a memória histórica, para que as gerações futuras entendam o valor das liberdades conquistadas.

 A democracia não é um estado permanente; é um esforço constante de todos os cidadãos para garantir direitos iguais, justiça e liberdade.

O cinema brasileiro reflete em “Ainda Estou Aqui” sua maturidade e relevância, combinando memória histórica, drama humano e qualidade técnica para criar uma obra impactante, reafirmando o papel do cinema como veículo de denúncia, reflexão e arte, fortalecendo sua contribuição para a identidade cultural do Brasil e sua posição no cinema mundial.

Vale a pena assistir e chorar e se emocionar com a nossa História.

Foto: Reprodução

Olinda Altomare

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Olinda Altomare é magistrada em Cuiabá e cinéfila inveterada, tema que compartilha com os leitores do Circuito Mato Grosso, como colaboradora especial.

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