Política

Vítimas e testemunhas sem proteção

As dimensões continentais de Mato Grosso fazem do Estado um grande produtor de riquezas, mas também abrigam muitas mazelas provenientes, por um lado dessas mesmas dimensões e, por outro, da falta de políticas públicas para solucionar questões muitas.

De acordo com dados compilados no Relatório de Conflitos no Campo referente a 2015, nos últimos 20 anos, 125 pessoas foram assassinadas em decorrência de conflitos agrários, das quais a maioria foi ameaçada com antecedência e o agravante é que nenhum mandante ou jagunço foi preso ou condenado por nenhuma dessas 125 mortes.

O problema não é exclusivo do campo, já que a violência urbana também faz muitas vítimas. A grande questão é que Mato Grosso é o único Estado da Federação que não possui um Programa Estadual de Assistência às Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, tanto no campo quanto na cidade, assim como não possui uma casa de acolhimento ou um centro de referência para mulheres vítimas de violência doméstica.

Sem proteção, muitas das vítimas e testemunhas deixam de falar, prejudicando processos e a si mesmas, com casos de retorno do agressor, podendo chegar à morte.

Desde 2011 tramita uma ação do Promotor de Justiça Alexandre de Matos Guedes, que determina a implantação desse Programa Estadual de Assistência às vítimas e Testemunhas Ameaçadas, porém o Estado vinha recorrendo e repassando os casos para o programa do Governo Federal. Algumas semanas atrás o Superior Tribunal de Justiça negou o recurso e manteve a sentença, obrigando o Estado a implantar o programa em Mato Grosso.

“Estamos vencendo mais esse passo com a decisão do STJ. Fica cada vez mais difícil o Estado ficar negando isso, pois a decisão do STJ foi muito definitiva. Não houve recurso ao Supremo, então a situação está resolvida, agora o Estado terá que cumprir”, comemorou o promotor.

Ele explica que quem tem assumido os cuidados com essas vítimas e testemunhas desamparadas, no caso de conflitos do campo, é a Comissão Pastoral de Terra (CPT), a Comissão de Erradicação do Trabalho Escravo e outras comissões de direitos humanos.

“O governo estadual alega que quando eles pedem para o governo federal incluir alguém no programa, dá certo. Mas nem tudo se pode pedir para a União, precisamos ter alguma coisa específica aqui. Cuiabá e Várzea Grande têm dois problemas: a região de fronteira, que é muito conflituosa, e a grande criminalidade urbana, com altos índices de violência e crime organizado em que você precisa efetivamente retirar as pessoas do local onde vivem ou dar outra destinação para elas e esse é um buraco muito grande que temos em termos de segurança pública”, pontua o procurador.

Ele relata que quem precisa de proteção em Mato Grosso acaba ficando à mercê do governo federal aceitar ou negar a proteção e frustrar um processo judicial que depende disso, já que, como explica o promotor, muitas vezes a testemunha ou vítima não quer depor por se sentir ameaçada.

“Se ela sente que não tem um adequado respaldo – especialmente quando falamos em crimes de gangue e de pessoas de alto poder econômico – ele não fala. Esse tipo de proteção é essencial para que pessoa possa prestar um depoimento adequado”.

OAB defende criação de programa

A presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MT), Betsey Polistchuk, reitera o discurso do promotor, ressaltando a importância de um programa do tipo.

“Esses programas são criados para que a pessoa possa falar sobre as coisas que viu e não ser exposta e nem perder a vida. Tem gente que mata por qualquer coisa e você não vai falar uma coisa se souber que no dia seguinte vão acabar com você. Olha quantas coisas que já aconteceram aqui de gente que falou alguma coisa e acabou sendo morto”, pontua.

De acordo com a Promotora de Justiça Lindinalva Rodrigues Dalla Costa – titular da 15ª Promotoria Criminal, Especializada no Combate à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Cuiabá – a única casa de amparo que existe na capital é mantida pela prefeitura e está em situação precária e não fornece efetiva proteção às vitimas que se encontram no local, por falta de segurança.

“Além disso, o local não está cumprindo suas funções, pois recolhe mulheres que não são vítimas de violência doméstica, mas vítimas de qualquer tipo de vulnerabilidade. Já teve agressor que tentou entrar lá pois eles sabem a localização. É uma casa fechada, mas totalmente devastada e passível de invasão e as mulheres vão para lá em casos de agressores muito perigosos, então o local precisa ser seguro”, explica Lindinalva, contando que em uma reunião ocorrida na semana passada ficou sabendo que essa casa está em situação bastante ruim, faltando o mínimo para segurança, como cerca elétrica.

Mulheres vítimas de violência não têm proteção

Mesmo sendo um Estado de vanguarda na aplicação da lei Maria da Penha na área jurídica, na repressão com a polícia militar, civil, Ministério Público e judiciário, faltam políticas públicas e de prevenção, de acordo com a promotora.

Lindinalva pontua que Mato Grosso tem carência de programas e projetos sociais de toda ordem. “Na violência doméstica, especificamente, nós temos a ausência de uma casa, que nós chamamos de acolhimento, para mulheres que sofrem ameaças e violência doméstica, que seria uma casa de amparo ou casa abrigo. Isso é previsto em lei estadual há mais de cinco anos e até agora estamos esperando”, pontua.

A promotora observa que os crimes dessa natureza geralmente acontecem sem a presença de outras testemunhas, apenas as próprias testemunhas informantes. “São crimes que ocorrem dentro de casa, onde a palavra da vítima assume especial relevância, então se não tivermos um local para colocar essa mulher em segurança e onde ela tenha as condições mínimas de sobrevivência, nós não vamos ter, efetivamente, a prova nesse processo”, detalha.

Lindinalva explica ainda que algumas vezes o que essas vítimas querem não é um processo contra o seu agressor, e, sim, que ele seja encaminhado para tratamento, pois muitas delas são mães dos agressores, geralmente usuários de drogas nesses casos.

Ela aponta que 30% das agressões leves e médias envolvem o uso de álcool e drogas e que a destinação do Estado para esses agressores usuários de drogas é apenas encaminhar para o tratamento no CAPS, para onde dificilmente eles vão voluntariamente.

“Muitas mães e esposas também vêm aqui chorando dizendo que só conseguiram vivar em paz no período em que esses agressores estiveram presos, pedindo para que não sejam soltos, pois eles não têm onde se tratar. É uma questão de calamidade pública e o Estado precisa agir e pegar uma pequena parcela dos impostos pagos pela população para se criar uma política pública séria, fazendo trabalho de assistência para essas testemunhas e construir uma casa abrigo”, critica.

Lindinalva ressalta que o Estado já teve um centro de referência, denominado Revive, inaugurado com recursos do governo federal para atender vítimas de violência doméstica, mas que depois de algum tempo ele foi transformado em um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), o que, segundo ela, não serve para as vítimas de violência doméstica, pois o local é destinado à família e não à mulher.

Voluntários assumem risco ao proteger vítimas

A falta de um Programa Estadual de Assistência às Vítimas e Testemunhas ameaçadas pesa ainda mais nos conflitos no campo, já que lá as ameaças se concretizam, na maioria das vezes, como aponta Elizabeth Fátima Flores, uma das responsáveis pela Regional Mato Grosso da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

A militante destaca que os conflitos em Mato Grosso cresceram mais 700% de 2014 para 2015. “Os números devem aumentar ainda mais no próximo relatório, pois esse ano já houve muitas ações de jagunços contra famílias. Essa omissão do governo do Estado em aderir a esses programas faz com que a violência no campo aumente, assim como o recuo das lideranças, que não encontram respaldo do governo em suas lutas”.

Esses dados ainda não foram compilados, mas Flores adianta que no primeiro semestre de 2016 os conflitos não cessaram e devem aumentar se nada for feito .

“Os conflitos que a gente acompanha se dão em sua maioria em terras públicas da União e do Estado, então são terras que foram griladas por esses fazendeiros. Atualmente a CPT acompanha cerca de cinco pessoas ameaçadas de morte e em março desse ano tivemos que tirar uma liderança ameaçada de morte em uma cidade do interior de Mato Grosso, juntamente com a esposa e mais três filhos”. 

Flores critica a gestão, afirmando que a sociedade civil está assumindo o risco da segurança dessa família, que deveria ser função do Estado. “Nós tivemos que providenciar transporte, local para eles ficarem, alimentação, tudo, assim como continuidade dessa proteção”.

Outro Lado

Até o fechamento dessa edição o Circuito Mato Grosso não obteve retorno do Governo do Estado e da Corregedoria Geral da Justiça sobre os fatos acima narrados.

Josiane Dalmagro

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