E eis que no meio do caos das obras espalhadas no imenso espaço do Borgo Filadelfia-MOI, da Paratissima, realizada de 6 a 10 de novembro, surgem cores e um desenho facilmente reconhecidos para olhos já saudosos dos tons quentes das terras tupiniquins.
Lá estamos nós, a bandeira brasileira estampada numa pipa pendurada num varal em plena exposição.
E não é tudo, por que, ali, no varal pregado na parede meio destruída tem de um tudo: boné, calção de jogar futebol, fotos, muitas fotos, presas por pregadores de roupas, gambiarras…
A parede é remendada por fita gomada e fios quase desencapados sustentam bocais com lâmpadas precárias.
Já vimos esse filme em algum lugar…
Em várias fotos se repetem três letras SMH, sempre perto do número da habitação retratada nas fotos, algumas coloridas, outras em preto e branco. Além das letras, o que chama a atenção são os olhos e as expressões das pessoas retratadas.
Mas não termina por aí. Se a parede parece uma confusão, o que dirá do piso em frente? Escada caída, roupas largadas, um velho colchão, lata de lixo, sacolas, pedaços de plásticos, fotos esmaecidas, fios enrolados, um balde.
Restos de vidas emaranhados e empoeirados delimitados por uma fita de duas cores, das que demarcam obras.
No canto direito da instalação – por que é disso que se trata – uma canga estampa a imagem da bandeira do Brasil.
Duas folhas explicam o conceito da obra que, nas fotos penduradas nos varais, mostra os personagens de uma tragédia carioca.
A reportagem mostra as vítimas das alterações que estão sendo feitas na zona portuária do Rio de Janeiro, provocadas pelas intervenções urbanas que estão sendo realizadas na cidade para a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.
O mote do trabalho é a sigla SMH, estampadas nas casas marcadas pela Secretaria Municipal de Habitação da prefeitura carioca comandada por Eduardo Paes, na região. As marcas foram colocadas nas 832 habitações destinadas a serem demolidas para as intervenções de valorização da área.
O texto também explica que, para as famílias que deveriam deixar suas moradias, eram oferecidos seis mil reais e um auxílio aluguel de 400 reais até que fossem realocadas em casas populares, em data indefinida. O registro foi feito na área do no Morro da Providência, Morro do Pinto, Morro da Conceição, Morro do Valongo, Pedra Lisa e na zona portuária da Perimetral.
A instalação é da arte-educadora italiana, Gisella Molino. Ela passou uma semana fazendo uma imersão fotográfica no local das remoções.
A intervenção dividiu opiniões já que, segundo a artista, alguns espectadores reclamaram por ela mostrar uma face do país que “não representa toda a nossa realidade”.
O apelo no olhar das pessoas retratadas não foi suficiente para justificar, para essas pessoas que, se hoje somos “um país que vai pra frente”, isso se dá com o sacrifício dos que mais precisam de ajuda.
A ironia é que cabe a uma artista italiana ser a nossa voz para mostrar lá fora, o que acontece aqui dentro.
**Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Essa crônica faz parte da série “No rumo”, do SEM FIM… delcueto.wordpress.com