Opinião

Valéria del Cueto: Não dá pra (en)cantar no chuveiro

 
Por aqui, na Itália, são mais comuns banheiras com duchas do que chuveiros, aqueles de chuê-chuá, vidro e ou cortinas protetoras. Por isso, quando descobriu ser a coo-possuidora de um box completo, partiu para a luta corporal para garantir seu uso e não ficar restrita a opção banheira.
 
Com a vitória, a comemoração  era óbvia  depois de uma série de recomendações: quanto tempo antes ligar a água para ela esquentar, o truque para tentar a missão impossível de não molhar o chão do lado de fora e assim por diante. Por uma chuveirada, valia qualquer aula de pilotagem. O chão era só secar.
 
O instante glorioso assim permaneceu por alguns momentos. A ducha presa bem lá no alto depois de ser seguida a instrução inicial de voltá-la para a parede enquanto a água atingia a temperatura ideal.
 
Só que, segundos depois, a mágica começou! Ela, a ducha do chuveiro, tinha vontade própria. Ia escorregando, escorregando pela haste de metal cromado a seu bel prazer, até que o tubo flexível que levava a água quase estrangulasse a tal prateleira dos apetrechos, provocando uma resistência que contivesse a velocidade inconstante do movimento. E rodava.
 
Ficou só observando o percurso, tentando entender a dinâmica da coisa. Só que não havia lógica na sequencia por mais que fosse estudada. A cada experiência a parte ducha se movimentava de uma forma diferente – e isso não foi apenas na primeira de tantas tentativas de diálogo. É, por que foi uma convivência de mais de um mês.
 
Cada vez que parecia que os mistérios do danado do chuveiro estavam decifrados, uma nova surpresa. Se era para ficar no alto pra lavar a cabeça, lá vinha ele, como um macaco feliz e curioso escorregando coqueiro abaixo.
 
Quando a ideia era manter os cabelos secos ele se aboletava no alto e não efetuava o movimento previsto enquanto a água esquentava. O burro empacava. Como era fã de molhar a cabeça, passou a observar os desejos do danado do chuveiro e quando ele ficava firme e forte, mesmo que a intenção fosse apenas um banho rápido, preferia aceitar o topete da ducha e parar a vida pra que as águas rolassem de acordo com o a vontade primeira e única do objeto pseudo inanimado. E assim foi a peleia que durou mais de 40 dias. Sem que fosse possível racionalizar a disputa ou tentar qualquer acordo.
 
Pelos lugares que passou, viu fontes maravilhosas, capazes de encantar os olhos mais insensíveis com a beleza do movimento das águas em palácios e castelos, como as da Venaria Reale, das Piazzas de Torino, Verona e Milão. Foi nessa cidade no espetacular Castello Sforzesco que a ficha caiu. Vendo a linda fontana na piazza em frente da residência do século XV do Duque de Millano, construída na década de 1990, inspirada numa mais antiga que ficava no local, entendeu finalmente o espírito do chuveiro de Torino.
 
Ele, que queria ser uma fonte – era mais que uma ducha de banheira –  mas nunca atingiria seu objetivo. Fazia as águas dançarem em seu pequeno mundo de design moderno, para mostrar que, mesmo sem a suntuosidade arquitetônica e apesar da falta de praticidade do design, ali estava um espírito livre, disposto a ser xingado dia a dia para deixar bem claro o que não era  o que gostaria de ser.
 
Voltou pra casa, entrou no chuveiro rebelde e o deixou molhá-la inteira, do jeito que ele decidiu. Tinha que, ao menos, respeitar suas frustrações…    
 
**Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Essa crônica faz parte da série “No rumo”,  do SEM FIM… delcueto.wordpress.com

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Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.

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