“Tudo como dantes no quartel de Abrantes”. O dito popular, cuja origem remete à falta de resistência da população de Portugal frente a invasão das tropas de Napoleão Bonaparte à cidade de Abrantes (152 km de Lisboa), no início do século XIX, estabelece um paralelo com as incertezas que têm vindo à tona acerca do Veículo Leve Sobre Trilhos (VLT) – uma novela política que, em suas proporções, também é adornada pelo drama e por acordos realizados na penumbra dos bastidores, como na guerra.
A expressão da língua portuguesa tem o significado de que “tudo permanece como antes, sem alteração”, tal e qual as condições em que se encontram as obras e a própria iniciativa da implementação do VLT – uma iniciativa que foi apresentada sem qualquer projeto executivo ou estudo de viabilidade econômica que, somada à falta de transparência, continua a causar dúvidas e levantar questionamentos da população cuiabana.
O último trecho pareceu atual a você, leitor? Pois é, e ele seria mesmo caso não fosse copiado das páginas 1 e 2 da edição 378 do Circuito Mato Grosso, publicada em fevereiro de 2012 – há mais de três anos.
Confira a seguir um comparativo do que foi publicado na edição de 2012 do Circuito Mato Grosso com as últimas notícias em relação ao VLT, que conta ainda com a avaliação atual de especialistas das áreas de engenharia, urbanismo e direito.
Viabilidade econômica questionável
2012
Na edição 378, o Circuito informou que o Governo do Estado não teria a responsabilidade de dar explicações sobre a tarifa e como será a integração, chamando a atenção para a falta de transparência sobre o projeto de implantação do modal de transporte coletivo escolhido pelo governo do Estado. Éder Moraes, então secretário-extraordinário da Secopa-MT, havia promovido uma audiência pública em 16 de fevereiro de 2012 sobre o assunto. Já no dia seguinte (17), o aviso da licitação por Regime Diferenciado de Contratação (RDC) para empresa que realizaria os estudos de engenharia, arquitetura e ferroviário foram publicados no Diário Oficial do Estado de Mato de Grosso (Iomat).
2015
Com a herança do ex-governador Silval Barbosa (PMDB) nos calcanhares da administração pública, o atual chefe do Palácio Paiaguás Pedro Taques (PDT) se viu obrigado a realizar auditorias sobre as obras de mobilidade urbana em Cuiabá, incluindo o VLT. Uma das conclusões preliminares apontadas pelos auditores, e divulgada no início de fevereiro deste ano, é de que a tarifa do transporte custaria entre R$ 6 e R$ 10, argumentando que as obras foram tocadas desde o início pelo governo anterior sem projeto, como disse o Circuito três anos atrás. Para o doutor em Engenharia de Transportes e professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Luiz Miguel de Miranda, “ninguém sabe quanto vai custar a operação desse sistema”, justamente pela falta de estudos, questionando se o Estado será capaz de subsidiar parte da tarifa e que a população deve levar em conta que o dinheiro de todo o Estado – e suas necessidades na área de saúde, educação e segurança – irão beneficiar apenas Cuiabá e Várzea Grande.
Modelo de contrato suspeito
2012
No dia 17 de janeiro de 2012, o Diário Oficial do Estado de Mato Grosso publicou o aviso do RDC Presencial n.001 da Secopa para contratação da empresa que realizaria estudos de engenharia, arquitetura e sistemas ferroviários para elaborar os projetos e executar as obras, além de fornecer o material rodante para o sistema. RDC é a sigla de Regime Diferenciado de Contratação, um sistema de contratação pública cujas diferenças com a Lei de Licitações (8.666/93) podem “facilitar” o trabalho dos corruptos. O RDC não exige projeto básico ou executivo das empresas, além de a capacidade técnica da organização ser avaliada só depois que ela vencer a concorrência – algo não permitido pela Lei 8.666/93 e que mereceu destaque em nossa reportagem feita à época.
2015
Durante os mais de três anos que separaram a edição atual do Circuito Mato Grosso e aquela publicada em fevereiro de 2012, o RDC foi personagem recorrente em várias reportagens pelas características polêmicas que o diferem da lei geral de licitações, sobretudo a possibilidade de contratação de empresas sem projeto básico e executivo, além da aferição posterior de viabilidade técnica das organizações que pretendem contratar junto ao Estado. Para o presidente da Comissão de Fiscalização dos Gastos Públicos da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Mato Grosso (OAB-MT), Ivo Matias, “houve um abuso na utilização dessa lei”, argumentando que “já se pagou mais de 72% da obra e temos apenas 50% de um empreendimento que deveria estar pronto há quase um ano”.
Escolha política para o modal
2012
A escolha pelo VLT, uma espécie de metrô de superfície, em detrimento do BRT, que são ônibus de alta tecnologia e grande capacidade que circulam em corredores exclusivos, também mereceu destaque na edição 378 do Circuito. Com custo médio de R$ 30 milhões por km, o BRT seria uma alternativa mais barata e igualmente eficiente na comparação com o VLT, cuja estimativa de gasto por km atinge os R$ 60 milhões. A flexibilidade maior do BRT para integração com outros sistemas também está à frente do VLT, cuja única vantagem é a capacidade ligeiramente maior de transporte de pessoas.
2015
“Por mais que a população da Baixada Cuiabana queira o VLT, as cidades de Cuiabá e Várzea Grande não têm demanda de transporte público para tal. Desde o início todos os estudos técnicos apontavam que o BRT seria a solução mais indicada”. A frieza racional e óbvia das palavras vem de Luiz Miguel de Miranda, especialista em logística e transportes e docente da UFMT. O acadêmico explica que há uma escala a ser respeitada em relação a custos e demandas do transporte público, e que as duas cidades mais populosas de Mato Grosso estariam “pulando” uma etapa: “a ordem correta é ônibus convencional, depois vem BRT, VLT, metrô e por último trem urbano”. Para o arquiteto e urbanista José Lemos, que participou das discussões e audiências públicas na época da escolha do modal, a escolha precisa ser “técnica, sem achismos ou interferências políticas”.