Um surto de tuberculose toma conta da Penitenciária Central do Estado (PCE) em Cuiabá e pode se alastrar pela capital. Somente na PCE existem 60 detentos fazendo o tratamento da doença, e o número de infectados pode ser ainda maior. No dia 26 de setembro, o jovem Cícero Junior Oliveira Dias, 20, morreu dentro da unidade prisional vítima da doença.
Além dos casos na PCE, existem mais dois pacientes infectados no Centro de Ressocialização de Cuiabá (CRC). A informação é do juiz da Vara de Execuções Penais da Capital e corregedor da penitenciária, Geraldo Fidelis, em entrevista ao Circuito Mato Grosso. A gravidade pode ser ainda maior, pois quando parentes e agentes que fazem visitas aos detentos, saem da penitenciária e mantêm contato com outras pessoas fora da unidade.
“Eu mesmo posso estar com tuberculose e não sei, pois passei a semana todinha dentro da cadeia com eles, assinando documentos sem proteção alguma (máscara, luvas). A tuberculose, se não tiver cuidado, qualquer um pode pegar. Trabalhamos com risco o dia todo”, diz o magistrado.
De acordo com o juiz Geraldo Fidelis, situações como essas são totalmente desarmônicas e causam perturbação no meio penitenciário. O magistrado ainda comentou que a falta de médicos, enfermeiros e remédios na unidade prejudica o tratamento dos enfermos, além do ambiente insalubre.
“A PCE estava sem médico, pois o mesmo pediu exoneração devido ao baixo salário, pouco mais de R$ 5 mil para trabalhar 40 horas semanais e sem condições. O Estado não paga o que os médicos querem e eles pedem para sair. Isso é muito sério, é um problema que o Estado tem que encarar. Está tendo um problema? Vamos resolver, não pode deixar essa situação em função de outros problemas, esquecer, pois é uma situação muito grave”, comentou Fidelis.
Para amenizar o problema, um médico que atuava no CRC vai começar a atender aos detentos da PCE e um enfermeiro de Rondonópolis (212 km de Cuiabá) está sendo transferido para atuar dentro da unidade. Outro fator alarmante é a falta de medicamentos no presídio, que, segundo o juiz, já é uma realidade inclusive nos postos de saúde do Estado, a falta de atendimento digno aos que precisam.
Em um vídeo que circula nas redes sociais, gravado pelos próprios detentos, eles mostram a situação dos presos no setor de triagem. As imagens mostram o espaço pequeno, úmido e sujo que cinco detentos doentes dividem, com comida ao lado do “boi” (privada) e pela falta de espaço no local. Além disso, os detentos que estão com tuberculose alegam a falta de ventilação na cela.
“Onde que entra ar? Onde que se trata um tuberculoso assim nessas condições? O tuberculoso que tem problema no pulmão, trancado em um lugar que não entra ar. Não tem condições de ficar em um lugar desse aqui. Ficamos trancados de meio-dia às duas da tarde, no período mais quente, estamos trancafiados”, relata um preso no vídeo.
O juiz Geraldo Fidelis alega que essa é uma situação de saúde pública, que está “doente”, pois o que os presos estão cobrando hoje vem sendo cobrado há tempos pela população: “eles cobram médicos e a população do lado de fora também cobra médicos nas unidades de saúde, assim como medicamentos; a situação é muito mais grave do que se imagina”, afirmou.
Família de detento acusa juiz e Estado por morte
A família de Cícero Junior Oliveira Dias acusa o Estado e o juiz Geraldo Fidelis por negligência na morte do jovem no último dia 26 de setembro. Segundo os pais de Cícero, o juiz poderia ter retirado o jovem da penitenciária e exigido um tratamento de saúde, fora do presídio. Um vídeo feito pelo próprio juiz mostra a vítima em situação debilitada.
“Os agentes só levaram meu filho para Unidade de Pronto Atendimento (UPA) no dia que não tinha mais jeito, que a gravidade já está avançada. O problema dele foi aqui dentro da PCE. Eles não trataram meu filho como deveriam, pois se o tratamento tivesse acontecido como eles alegam, o meu filho não teria morrido”, informou a mãe, Aparecida Furtado de Oliveira Dias, em protesto realizado em frente à PCE no dia 29.
Aparecida alegou a falta de humanidade dos agentes com os enfermos da unidade: “Eles levaram meu filho e ainda voltaram com ele, pois não tinham almoçado, meu filho não recebeu o tratamento que merecia. Outras vezes já tive autorização de juiz para levar meu filho para fora do presídio para fazer o tratamento e os agentes não levaram, alegando que não havia número ou agente disponível para encaminhá-lo ao tratamento”.
“Se aquele dia o juiz tivesse pegado e falado com os agentes: “Levem esse rapaz para a policlínica, levem ele para o hospital”, talvez o meu filho não tivesse partido. Meu filho estaria aí dentro”, falou Lindomar dos Reis Dias, com palavras direcionadas ao magistrado.
O magistrado entregou ao Circuito Mato Grosso todo o prontuário médico do ex-presidiário, inclusive de atendimento que ele recebeu na UPA no dia em que morreu. De acordo com o prontuário,
Cícero iniciou o tratamento contra a tuberculose no dia 3 de abril deste ano, sendo que no dia 29 de junho no prontuário de atendimento, assinado pela médica Raquel Batista, cita-se que “o reeducando relata que está tomando medicação de tuberculose de forma irregular (reduziu por conta própria)”.
“Encontrei os pais do Cícero na porta da PCE com uma equipe de reportagem, eu disse que iria falar com o detento e levar informações a ele, mas quando entrei na unidade, Cícero havia chegado da UPA do Pascoal Ramos, minutos antes, onde recebeu medicação na perna e braço, sendo liberado pelo médico que o atendeu, não apresentando algo mais grave”, disse o juiz.
Na ficha de atendimento da UPA, relata-se que Cícero deu entrada às 11h35 na UPA do Pascoal Ramos, e a classificação dele era classificada como amarelo, não sendo, assim, atendimento prioritário. A temperatura corporal de Cícero era de 36,5º, e após receber atendimento médico foi encaminhado novamente à PCE.
“Pelo próprio vídeo que eu gravei, nota-se que o pedido do jovem era ser encaminhado ao shelter (raio de isolamento e tratamento dos detentos com tuberculose outras doenças), pois queria descansar, que estava muito fraco, e assim o fiz, ordenei o encaminhamento dele ao shelter”, complementa Geraldo Fidelis.
O juiz, durante a entrevista, ainda alegou que ele é um dos mais atuantes dentro do sistema penitenciário. “Eu não sou médico, eu não sou enfermeiro, determinei, atenderam a determinação. O nosso trabalho é de grande risco e nós nos arriscamos para tratar as pessoas. Eu quero saber se na história tem alguém que se arrisca tanto quanto eu. Pode perguntar na PCE e a qualquer pessoa, os presos lá sabem o que eu faço. Precisava fazer? Não, mas faço por me preocupar”, pondera o magistrado.
Agentes penitenciários correm risco
Além de familiares que visitam os detentos, agentes penitenciários também correm risco de contaminação com a tuberculose por contato direto com os detentos todos os dias. Segundo João Batista Souza, presidente do Sindicato dos Servidores Penitenciários do Estado de Mato Grosso (Sindspen-MT), os agentes penitenciários não têm a mínima proteção para lidar com os presos doentes.
“Muitos agentes, quando saem, podem estar levando a doença, sem saber, para dentro de casa, para os amigos fora da unidade prisional, devido ao contato direto com os presos que estão com tuberculose, e se o Estado não agir, logo poderá virar uma epidemia em Cuiabá”, desabafou.
Os parentes dos reeducandos alegam que os presos não recebem o tratamento adequado, que os agentes não querem levá-los para receber atendimento. Segundo João Batista, os agentes estão em quantitativo abaixo do necessário e, muitas vezes, fica impossível fazer a escolta do preso para uma unidade de tratamento, ou até mesmo a audiências no Fórum.
Segundo João Batista, o grande problema é o descaso do governo com o sistema penitenciário, que se houvesse uma maior atenção aos presídios, médicos e agentes penitenciários suficientes, esse “surto” não estaria acontecendo no momento.
Em 2013, de acordo com João, o número de infectados com tuberculose chegou a 97 presos, levando a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh) a realizar uma operação na PCE denominada Legalidade. Na época foi possível fazer exame laboratorial em 70% do total de reeducandos, e foram diagnosticados 97 presos com tuberculose, e também detectada a doença em sete servidores.
Presos mais vulneráveis a doenças
A ocorrência da tuberculose em presídios é um problema de saúde pública. Estudos sobre a saúde da população encarcerada no Brasil mostram que a crescente taxa de ocupação prisional, sem a necessária adequação de estrutura física e de recursos humanos, somada às condições precárias de higiene, ventilação e iluminação solar nas celas, compõe um cenário frequente no sistema prisional. Esta situação produz riscos para o adoecimento de detentos e cria condições favoráveis à infecção pelo Mycobacterium tuberculosis, além da disseminação da doença.
O projeto do Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT) do Ministério da saúde visa promover mudanças de comportamento por meio de estratégias diferenciadas de comunicação para sensibilizar profissionais de saúde e segurança, presos e familiares para a importância do diagnóstico precoce e tratamento oportuno.
Segundo dados do Ministério da Saúde, com fontes ligadas ao Depen (Departamento Penitenciário Nacional), pessoas privadas de liberdade têm chance, em média, 28 vezes maior do que a população em geral de contrair tuberculose.
O que contribui, em muito, para a proliferação da doença é a higiene precária, falta de médicos, e principalmente a superlotação dos presídios. Na PCE, por exemplo, a capacidade é para 850 detentos e atualmente conta com 2.200 reeducandos.
Além de tuberculose, outras doenças infectocontagiosas como hanseníase, HIV e infecções de pele, são comuns neste ambiente. O jornal recebeu imagens da perna de um detento que aparentemente apresenta escabiose (nome técnico que se dá à sarna, uma doença de pele que produz pápulas avermelhadas na pele e muita coceira).
A escabiose tem cura, mas, para alcançá-la, é necessário eliminar os ovos dos parasitas que estão no corpo e no meio ambiente onde se vive, porém com a falta de tratamento adequado da doença, como o uso de antibióticos, pode haver o desenvolvimento de uma infecção ainda mais grave.
O Plano Nacional de Saúde do Sistema Penitenciário relata que, nas unidades prisionais com mais de 100 presos, a equipe técnica mínima, para atenção a até 500 pessoas presas, obedecerá a uma jornada de trabalho de 20 horas semanais e deverá ser composta por: médico, enfermeiro, odontólogo, psicólogo, assistente social, auxiliar de enfermagem e auxiliar de consultório dentário (ACD).
Já em Mato Grosso essa realidade é totalmente diferente, conforme informou João Batista e o juiz Geraldo Fidelis. O Ministério da Saúde afirma que a rede pública conta com 236 equipes da
Atenção Básica do Sistema Prisional.
Em julho deste ano, Ricardo Barros, ministro da Saúde, anunciou o investimento de aproximadamente R$ 43 milhões por ano para o incremento de 113 equipes de saúde prisional.
Infectologista explica a tuberculose
A médica infectologista Zamara Brandão Ribeiro explicou que a doença é muito comum em regiões tropicais e é considerada uma endemia (doença infecciosa que ocorre habitualmente e com incidência significativa em dada população e/ou região). A médica ainda relatou que a tuberculose causada por uma microbactéria (Mycobacterium tuberculosis) Bacilo de Koch (BK) geralmente afeta os pulmões, mas que pode afetar outra área do corpo, como a pleura (membrana que recobre o pulmão), rins, peritônio, entre outros.
A transmissão da tuberculose é direta, de pessoa a pessoa, portanto, a aglomeração de indivíduos, como ocorre na PCE, é o principal fator de transmissão. “Ela é uma endemia, que possui picos de surto em determinados locais, como no sistema carcerário, onde a facilidade de contato entre os infectados é grande, assim como a má qualidade de higiene e baixa imunidade contribuem para a proliferação da microbactéria entre os presos”, explicou Zamara.
Má alimentação, falta de higiene, tabagismo, alcoolismo ou qualquer outro fator que gere baixa resistência orgânica também favorece o estabelecimento da tuberculose. Em ambientes pouco ventilados e arejados como as celas, a possibilidade de transmissão da doença é maior porque os bacilos sobrevivem por até 8 horas no ambiente.
A doutora ainda alegou que o risco de se transformar em uma epidemia é baixo, pois hoje pessoas vacinadas com a BCG ao nascer já diminuem o risco de contrair a doença. “Temos um sistema imunológico muito forte e o breve contato com algum infectado não significa que a pessoa possa contrair tuberculose; geralmente ocorre quando há um período muito longo junto à pessoa contaminada”, explanou a doutora.
Em relação aos riscos que os agentes penitenciários correm no dia a dia, Zamara explicou que o método para prevenção dos agentes seria uma máscara respiratória azul N95/PFF2, diferente da máscara cirúrgica. De acordo com a médica, as máscaras cirúrgicas não oferecem proteção adequada contra a tuberculose.
O tratamento geralmente é realizado por um coquetel composto por quatro medicamentos: Isoniazida, Rifampicina, Etambutol e Pirazinamida. O tratamento começa a surtir efeito depois de duas semanas do início da medicação.
“O grande problema da tuberculose é que quando o tratamento não é feito precocemente, a pessoa deixa de fazer uso de medicamentos de forma adequada. Além disso, o tratamento incorreto pode levar a outras doenças como gripe e até a um estado mais grave que é a pneumonia”, comentou a médica.
Na visão da médica, para um combate eficaz da doença nos presídios, seria necessário o trabalho de prevenção, orientação e o diagnóstico precoce da doença, com início imediato de tratamento, e até mesmo a criação de um espaço ventilado onde possa circular ar: “quando falamos em ambiente arejado, é um ambiente onde o ar possa circular; por se tratar de microbactérias, um ambiente com ventilação faz com que essas bactérias se dispersem do local”.
Em relação ao caso do jovem Cícero Junior Oliveira Dias, a médica explicou que somente o laudo final poderá elucidar a causa da morte, porém pelo laudo de atendimento do dia em que ele foi a UPA, possivelmente pode ter sido vítima de outra enfermidade que, aliada à tuberculose, pode ter causado a morte dele.
Para finalizar, ela explicou que o relato de ele ter deixado de tomar o remédio corretamente possa ter feito com que a doença evoluísse para uma forma grave, e a medicação aplicada a Cícero estava surtindo efeito, como mostra o exame de baciloscopia realizado no dia 8 de agosto e que foi assinado pela farmacêutica-bioquímica Maria de Lourdes Lesse.
Sejudh contesta números
A Sejudh informou que, diferentemente do que informado pelo juiz Geraldo Fidelis e pelo presidente do Sindspen-MT, João Batista, a PCE dispõe, sim, de médicos e enfermeiros realizando o atendimento dos detentos, porém em número reduzido, com plantões alternados e que todo reeducando identificado com tuberculose ou outro tipo de enfermidade recebe tratamento na unidade.
Segundo a secretaria, os reeducandos identificados com tuberculose passam por tratamento e ficam em um raio de isolamento por 15 dias, período em que a doença tem alto grau de transmissão.
A pasta ainda não considera que há um surto da doença dentro do presídio e que todos estão sendo medicados. Eles alegaram que não tem havido falta de medicamentos nos presídios.
Em relação à morte do jovem Cícero Junior Oliveira Dias, 20, que morreu com tuberculose, a pasta enviou uma nota alegando que tomou todas as medidas cabíveis e preventivas de tratamento.
Questionada sobre a situação de haver uma operação para diagnóstico de mais casos da doença no presídio, como ocorreu em 2013, na Operação Legalidade, a secretaria explicou que a operação na época tinha outra finalidade e os casos foram descobertos por exames, mas nada neste sentido há programado até o momento.
Confira a nota enviada pela Sejudh no caso do detento que faleceu na PCE devido a complicações da doença:
Em relação às acusações da família de Cícero Júnior, informamos que nenhuma procede, pois o preso recebeu atendimento todas as vezes que necessitou.
A Secretaria de Justiça e Direitos Humanos afiança que todos os procedimentos médicos e ambulatoriais foram tomados para atendimento do detento Cícero Junior Oliveira Dias, 20 anos, pela equipe de saúde da Penitenciária Central do Estado, em Cuiabá.
Cícero morreu na noite de terça-feira, 26 de setembro, de causa ainda desconhecida, conforme laudo preliminar emitido pelo Instituto Médico Legal. Na unidade, o preso recebeu atendimento médico por uma unidade do Samu.
O preso se sentiu mal durante o dia de terça-feira, apresentando náuseas, vômito, febre e alegando fraqueza, e foi encaminhado à Unidade de Pronto Atendimento do bairro Pascoal Ramos. O profissional médico que o atendeu na UPA não entendeu a necessidade de internação, sendo medicado e reencaminhado à unidade prisional.
Cícero foi diagnosticado em abril deste ano com tuberculose e desde então vinha recebendo acompanhamento médico. Inclusive foi trocado de ala na penitenciária, a pedido da equipe de saúde, para melhor atendimento.
Os presos que são diagnosticados com tuberculose ficam em local isolado dos demais e recebem tratamento medicamentoso para a doença, além de todos os exames necessários para acompanhamento da doença.
Todos os protocolos médicos para atendimento a paciente com esse tipo de patologia foram seguidos, inclusive com acompanhamento de pneumologista, como é realizado com os demais presos.
São realizados os exames necessários, assim como a notificação obrigatória no Sistema Nacional de Agravos, do Ministério da Saúde.
Informamos que em atendimento com um dos profissionais médicos da penitenciária, em 29/06/17, o preso relatou que estava tomando de forma irregular o medicamento para tuberculose e que reduziu o mesmo por conta própria.
Todos os encaminhamentos e atendimentos a Cícero Junior estão documentados e foram informados às autoridades competentes.
Nesta semana, antes de o preso vir a óbito, o mesmo conversou com o juiz corregedor da penitenciária, magistrado Geraldo Fidélis, que constatou o atendimento médico, que posteriormente foi relatado a familiares do detento.