Cidades

Treze anos de penúria fiscal no Estado de Mato Grosso

Mato Grosso, a potência brasileira do agronegócio, vive uma dura situação fiscal. As recorrentes visitas a Brasília para garantir os repasses do Auxílio Financeiro de Fomento às Exportações (FEX), a escandalosa anistia do Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços (ICMS) a commodities de exportação – que só em Mato Grosso representou uma perda de receita de R$ 38 bilhões entre 1996 e 2014 -, e rombos no patrimônio público de R$ 1,8 bilhão entre os anos 2013 e 2014, por exemplo, são indícios de que as contas não vão bem no Estado.

Entretanto, a fonte de recursos em Mato Grosso não ficou seca do dia para a noite. Assim que Blairo Maggi assumiu o comando do Palácio Paiaguás, em 2003, o Estado adentrou numa perigosa aventura fiscal. Ao lado do então secretário de Estado de Fazenda (SEFAZ), Waldir Teis, Blairo implementou, já em seu primeiro ano de gestão, o Programa de Desenvolvimento Industrial e Comercial de Mato Grosso (PRODEIC), um polêmica iniciativa que, só em 2016, representará uma perda de R$ 1,06 bilhão na arrecadação em virtude da renúncia fiscal.

Ainda em 2003, dois “perdões” para recolhimento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICMS) oneraram ainda mais as contas de Mato Grosso. Um deles, a lei n. 7925/2003, estabeleceu a isenção do imposto sobre ônibus, caminhões e outros veículos que seriam utilizados pelo poder executivo. O outro, o decreto 2127/2003, reduziu a alíquota de ICMS para 3,66% na importação de maquinários industriais. Os agro empresários tiveram um indulto ainda maior: o pagamento de apenas 1,5% sobre o valor de insumos agrícolas.

A farra fiscal, entretanto, não parou por aí. Confira a linha do tempo elaborada pela equipe do Circuito Mato Grosso que traz as principais “derrapadas” orçamentárias do Estado nos últimos 13 anos, como a dolarização da dívida do Estado, a desastrosa mudança do modal de transporte público de BRT para VLT, a controversa iniciativa dos incentivos fiscais entre outros.

Um escândalo chamado “Lei Kandir”

A Lei Kandir (Lei Complementar nº 87/1996) regulamentou a aplicação do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação (ICMS). De competência dos Estados e do Distrito Federal, uma de suas normas é a isenção deste pagamento por parte dos empresários sobre exportações de produtos primários ou semielaborados.

Dados da Secretaria de Estado de Fazenda de Mato Grosso (SEFAZ-MT) apontam que a disparidade entre o que o poder público deixa de arrecadar com a anistia aos agricultores e o Auxílio Financeiro para Fomento das Exportações (FEX) – recurso criado pelo Governo Federal durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) na presidência para tentar compensar a perda de arrecadação de ICMS dos Estados produtores do agronegócio – foi de 1220% em 2014, como mostra o gráfico abaixo.

Segundo dados da SEFAZ-MT, só entre 1996, quando a lei foi criada, e 2014, o Estado deixou de arrecadar R$ 38 bilhões em ICMS em virtude da Lei Kandir. O Pós-Doutor em Economia Agrícola e professor titular da Faculdade de Economia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Benedito Dias Pereira, é taxativo em apontar o dispositivo legal como o grande vilão do rombo nas contas públicas mato-grossenses.

“Essa é uma questão conjuntural que decorre sobretudo da lei Kandir, que pressionou para baixo a arrecadação dos Estados produtores e exportadores de commodities, além do crescimento gradual da folha dos servidores. Essas são as duas principais razões.”

Professor da UFMT critica incentivos

Os nebulosos incentivos fiscais concedidos pelo governo do Estado de Mato Grosso como forma de atrair investimentos do setor produtivo, que só em 2016 representarão uma renúncia fiscal de R$ 1,06 bilhão segundo a SEFAZ, “travaram alguns setores da economia”. A constatação é do Doutor em Administração e Professor da Universidade Federal de Mato Grosso, Eber Capistrano Martins.

EXERCÍCIO

N. EMPRESAS BENEFICIADAS

EMPREGOS DIRETOS GERADOS

2008

39

2.458

2009

39

8830

2010

38

3464

2011

44

3215

2012

39

4403

2013

41

2638

2014

76

3496

Segundo ele, há necessidade de rever os modelos de incentivos fiscais no Estado, afirmando que a política que o governo de Mato Grosso vem realizando para desonerar os setores produtivos é implementada de maneira “errada”. A tabela abaixo mostra a relação de empresas beneficiadas com o PRODEIC e os empregos diretos gerados pela anistia, por exercício fiscal.

Analisando a tabela, percebe-se uma concentração de benefícios. Em 2012, trinta e nove empresas foram “agraciadas” com o PRODEIC, gerando 4.403 empregos diretos. Em 2014, setenta e seis empreendimentos contaram com uma “forcinha” do poder público, mas os postos de trabalho criados foram apenas 3.496.

O especialista em gestão pública aponta que o caminho para o desenvolvimento do setor produtivo, e a consequente melhora para as contas estaduais, é o emprego correto do paradigma da “tributação funcional”, como ele próprio explica. 

“A atual política de incentivos privilegia certos setores, como a agricultura, e travam outros. Mato Grosso deve programar a tributação funcional, desonerando não num setor, mas toda a cadeia produtiva. Assim você desenvolve a indústria, o campo, o comércio etc.”     Fonte: SEDEC-MT

Orçamento do poder judiciário aumentou mais de R$ 500 milhões em quatro anos

 

2012

2013

2014

2015

2016

JUDICIÁRIO

808. 697.229

845.540.576

916.627.508

1.054.836.581

1.367.334.238

AL-MT

341.814.570

310.345.197

331.036.470

446.33.831

467.809.566

MPE-MT

254.737.783

265.677.230

303.163.883

352.235.676

453.370.846

TCE-MT

202.805.308

211.199.824

208.475.351

261.074.313

349.919.646

DEFENSORIA

64.558.110

71.735.003

82.665.281

100.663.698

123.234.750

Orçamento destinado aos demais poderes públicos, além do executivo, aumentou significativamente nos últimos anos em Mato Grosso – em especial o poder judiciário. Por incrível que pareça, o orçamento da Assembleia Legislativa foi o que menos aumentou no período entre 2012 e 2016 (37%). O Ministério Público Estadual (78%) e o Tribunal de Contas do Estado (72%) foram os campeões no incremento percentual dos recursos destinados pelo poder executivo.

Para o deputado estadual  Zé Carlos do Pátio (SD), a responsabilidade pelo orçamento estadual “deve ser distribuída para todos, não só o poder legislativo, mas o judiciário, o Ministério Público, o Tribunal de Contas etc.” Ele também critica o setor do agronegócio mato-grossense, afirmando que o regime especial de comercialização de grãos, alvo inclusive de uma CPI na Assembleia Legislativa de Mato Grosso, deveria acabar pois ele dá brecha à sonegação de impostos.

 “Ao criar esse mecanismo de pagar pelo imposto só depois da comercialização, as pessoas sonegam. Por mim teria que acabar com o regime especial da área de grãos”. 

Dante de Oliveira foi pioneiro em exigir uma contrapartida do agronegócio

Enquanto o governador Pedro Taques (PSDB) e o representante dos  agro empresários e vice-governador, Carlos Fávaro (PSD), defendem a anistia da Lei Kandir, que isenta o pagamento de ICMS para a soja, o milho, o algodão, a carne in natura e demais commodities do campo que vão para exportação, o ex-chefe do Palácio Paiaguás, e deputado autor da emenda das Diretas Já, Dante de Oliveira, não teve medo de exigir do agronegócio mato-grossense parte da riqueza extraída do campo em favor da sociedade.

A lei estadual n. 7263 de 27 de março de 2000, criada na gestão de Dante de Oliveira em Mato Grosso, originou o Fundo de Transporte e Habitação (FETHAB). A proposta original do imposto é a cobrança sobre o óleo diesel, frete e a produção agrícola e pecuária mato-grossense. Justamente por exigir uma contrapartida da principal atividade econômica do Estado, o FETHAB sempre foi visto com desconfiança pelos empresários do campo e pelas lideranças políticas que os representam.

Criado originalmente para manutenção de estradas e construção de casas, o FETHAB chegou a ser utilizado, inclusive, para obras de mobilidade urbana na Copa do Mundo de 2014, além de outras utilizações indevidas, uma vez que, desde 2013, seus recursos passaram a compor a chamada “Conta Única” do poder executivo, o que possibilitou sua utilização, inclusive, na folha de pagamento de servidores.

Em 2015, após aval da Assembleia Legislativa, o governo do Estado conseguiu aprovar o chamado “Novo Fethab”, contudo, o poder executivo não deixou claro se os investimentos serão realizados também na área da habitação, e não apenas na pavimentação urbana e de estradas.

 Linha do tempo

Janeiro de 2003 – Waldir Teis assume a Secretaria de Estado de Fazenda respondendo à convocação do ex-governador Blairo Maggi. Entre as ações mais importantes está a criação do Programa de Desenvolvimento Industrial e Comercial de Mato Grosso (PRODEIC), uma iniciativa do governo do Estado de renúncia de impostos.

 

Julho de 2003 – Waldir Teis, à frente da Secretaria de Estado de Fazenda, ajuda a formular a lei nº 7925/2003, que prevê isenção de ICMS para ônibus e demais veículos que se destinarem ao uso do poder executivo municipal mato-grossense.

Dezembro de 2003 – Mais uma lei de incentivos fiscais da era Teis na SEFAZ. O decreto 2127/2003 estabelece redução da alíquota de ICMS para importação de máquinas e aparelhos industriais para 3,66%. Na importação de implementos agrícolas a anistia é ainda maior, caindo para apenas 1,5%.

Fevereiro de 2004 – O TCE-MT publica a instrução normativa 02/2004, que estabelece regras para concessão de incentivos fiscais

Maio de 2005 – O Conselho Deliberativo dos Programas de Desenvolvimento de Mato Grosso (CONDEPROMAT), por meio da resolução nº 005/2005, aprovou a relação de bens e mercadorias e suas respectivas alíquotas, cujo desembaraço for processado no Porto Seco. Entre os itens que possuem carga tributária zero está a importação de galos e galinhas para reprodução, bem como aspargos, bebidas energéticas e fertilizantes agrícolas

Setembro de 2006 – Uma ação popular, que questiona os benefícios fiscais concedidos no período eleitoral para empresas que contribuíram para o fundo de campanha da reeleição do ex-governador Blairo Maggi, foi entregue aos cuidados do juiz Márcio Aparecido Guedes, da 2ª Vara Especializada da Fazenda Pública de Cuiabá. Além de Blairo, o processo também cita seu secretário de fazenda, Waldir Teis. No mês seguinte, nas eleições majoritárias daquele ano, Maggi sagra-se vencedor do pleito. Seu vice é Silval Barbosa.

Outubro de 2007 – O deputado José Carlos do Pátio, então no PMDB, alertou para o fato que viria a se tornar uma das piores dores de cabeça das gestões mato-grossenses atuais: a dolarização da dívida do Estado. Segundo ele, Blairo Maggi já queria tomar a iniciativa ainda em 2007. Outro fato que marcou aquele ano foi a saída de Waldir Teis da Sefaz, que renunciou ao cargo para assumir uma cadeira no Tribunal de Contas do Estado (TCE-MT)

Março de 2008 – Blairo Maggi, ainda governador e tentando vender Mato Grosso como uma das sedes da Copa do Mundo, enfrenta denúncias da oposição liderada pelo então deputado estadual Percival Muniz (PPS). De acordo com o grupo, apenas naquele ano, a concessão de incentivos representaria a perda de R$ 1,23 bilhão aos cofres estaduais.

Maio de 2009 – Em evento de gala, a Fédération Internationale de Football Association (FIFA) divulga o nome das cidades escolhidas para receberam os jogos da Copa do Mundo de 2014, realizadas no Brasil. Cuiabá foi uma das capitais selecionadas, e contou com forte apoio de Maggi e sua influência e amizade, à época, com o ex-presidente Lula. A partir daí iniciou-se a corrida pelo “legado” que os jogos poderiam deixar, como obras de mobilidade urbana e melhorias de infraestrutura.

Março de 2010 – Blairo Maggi, no último ano de sua reeleição, renuncia ao cargo para ocupar uma vaga no Senado, deixando a chefia do Palácio Paiaguás a seu vice, Silval Barbosa (PMDB), que também disputou a eleição daquele ano como governador, saindo-se vencedor do pleito. Em maio do mesmo ano, o comitê organizador local da Copa do Mundo 2014 (COL) conheceu o protótipo daquela que seria a solução para o transporte público das cidades de Cuiabá e Várzea Grande: o Bus Rapid Transit (BRT).

Junho de 2011 – Ignorando os pareceres técnicos e os custos que poderiam onerar mais ainda Mato Grosso, Silval Barbosa, em 2011, tomou uma das mais polêmicas decisões (mas não a única) de sua gestão: alterar a solução para o transporte público de Cuiabá e Várzea Grande. O BRT, que custaria em torno de R$ 500 milhões e atenderia a demanda da população da baixada cuiabana por pelo menos 20 anos, foi deixado de lado pelo Veículo Leve Sobre Trilhos (VLT), que demandaria o triplo de dinheiro para sair do papel segundo informações do poder público na época. O controverso processo de escolha foi alvo de uma denúncia do jornal O Estado de São Paulo, que apontou fraude no parecer do Ministério das Cidades pela escolha do novo modal.

Setembro de 2012 – O orçamento mato-grossense leva outro golpe do governo Silval Barbosa. O ex-governador viajou a Nova Iorque para contrair um nebuloso empréstimo junto ao Bank of America no valor de US$ 479 milhões. Por motivos alheios aos conhecimentos administrativos e jurídicos, o negócio foi fechado sem levar em conta a flutuação do câmbio, ou seja, no dia 10 de setembro de 2010, data em que foi assinado o contrato, o dólar custava R$ 2,02 gerando um passivo de R$ 967,58 milhões aos cofres públicos. Hoje, após sucessivos aumentos da moeda norte americana, este compromisso já subiu para R$ 1,68 bilhão.

Dezembro de 2013 – Há três anos, os incentivos fiscais representaram um rombo de R$ 1,3 bilhão aos cofres públicos apenas naquele exercício. Não satisfeito, o então presidente da Assembleia Legislativa de Mato Grosso, ex-deputado estadual José Riva, apresentou o projeto de lei 80/2013 que prorrogava a concessão dessas anistias empresariais até 31 de dezembro de 2033.

Julho de 2014 – Em reportagem assinada por Sandra Carvalho, o jornal Circuito Mato Grosso apontou uma discrepância entre os incentivos concedidos e a receita corrente líquida do Estado (RCL). Enquanto a anistia de impostos às empresas cresceu 16,18% entre 2012 e 2013, a RCL subiu apenas 6,77% no mesmo período. A edição trouxe ainda a entrevista com o defensor público Paulo Lemos. Segundo ele, “a totalidade dos benefícios desses incentivos não foi repassada à sociedade” e que “o sucesso econômico dos grupos que gozam desses privilégios está sendo alcançado pelo suor do rosto dos trabalhadores.”

Janeiro de 2015 – Pedro Taques, então no PDT, assume o Palácio Paiaguás após as eleições de 2014. A situação econômica do Estado não é boa: dívidas dolarizadas, VLT pela metade (e sem projeto executivo), rombo no patrimônio público de Mato Grosso de mais de R$ 1,8 bilhão, dificuldades em conseguir o repasse do auxílio financeiro para fomento das exportações (FEX) etc. Em outubro do mesmo ano, o jornal Circuito Mato Grosso publicou um estudo da Secretaria de Estado de Fazenda (SEFAZ) em que aponta que as perdas de arrecadação de ICMS decorrentes da Lei Kandir, que isenta o agronegócio do pagamento do imposto que incide nas commodities que vão para exportação foi de R$ 38 bilhões entre 1996, quando a lei foi criada, e 2014.

Janeiro de 2016 – Antônio Joaquim assume a presidência do Tribunal de Contas do Estado no lugar de Waldir Teis. Na gestão à frente do TCE, Teis, junto com o Tribunal, assumiu a postura “indulgente” de sempre aprovar as contas do governo do Estado de Mato Grosso, a despeito de relatórios contrários à aprovação, realizados pelo Ministério Público de Contas. No poder executivo, avizinha-se uma disputa de classes de servidores estaduais, que vêm pleiteando a revisão geral anual (RGA), negada por Taques, que justifica a falta de recursos ao não enquadramento do Estado na Lei de Responsabilidade Fiscal.

Veja mais na edição 581 do jornal impresso.

Diego Fredericci

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