O ano é 2072 no calendário nepalês, mas a visão da cidade remete a séculos atrás. A poeira predomina em Katmandu. O trânsito é caótico, a maioria das ruas não têm calçada e os pedestres não contam com nenhuma preferência para circular. A cada passo se vê um rastro da destruição causada no dia 25 de abril de 2015, após um terremoto de magnitude 7,8 devastar o país.
Com IDH (índice de desenvolvimento humano) de 0,540 pontos (2013), o Nepal é um país carente. Sua estrutura mesmo antes do terremoto já era precária. As casas são humildes e algumas não levam cimento, algo que facilitou o desabamento causado pelo tremor. Já se passaram três meses desde o terremoto que entrou para a história do país, porém pouca coisa parece ter realmente mudado.
Na frente de um shopping de grande circulação, localizado no meio da capital Katmandu, há um grande muro com um portão aberto. O chão cheio de lama é a primeira coisa que se vê ao entrar no abrigo Chuchepati IDP. O local é o maior camping de Katmandu e acolhe 800 pessoas, vítimas do abalo que matou 8.000 pessoas. Crianças correm de um lado para o outro brincando em meio às novas casas que os abrigam. O problema com o idioma dá lugar a mímicas e gestos até chegar a Kiran Budhathoki.
Com um sorriso no rosto, o garoto me acompanha durante a caminhada entre as tendas de lona. Com 16 anos, ele é conhecido como o tradutor oficial e um dos representantes da comunidade. Kiran me mostra sua casa, o espaço de 4 m² abriga oito pessoas e tem apenas uma cama. Com o sol escaldante e o telhado feito de alumínio, o calor lá dentro é forte, mesmo sendo fim do dia, e o ar quente é insuportável. "Me levanto todos os dias às 4h30 da manhã, pois depois disso não consigo mais dormir de tanto suar", diz Budhathoki.
Todo fim de tarde chove muito na região devido ao período de monções. "Conseguimos captar um pouco de água com baldes, mas algumas cabanas não aguentam as fortes chuvas e a água sempre invade as casas", conta o adolescente.
A maioria dos acolhidos veio de vilas distantes. Os locais afastados da capital foram os mais afetados pelos abalos –a maioria das casas no interior do Nepal era feita de pedra, sem nenhuma estrutura.
Dor e lembranças
Entre as centenas de pessoas que moram no campo, está a pequena Nirjala Dhital, de apenas sete anos. Há cerca de uma semana, a menina voltou a caminhar, após os escombros de sua antiga casa, que caíram sobre dela, terem deslocado seu quadril e quebrado suas pernas.
Durante a conversa com a reportagem, a dor em seu corpo miúdo chega a ser insignificante quando a garota começa a lembrar de sua família. Seu pai, sua mãe e seus irmãos morreram após o tremor. Nirjala morava com todos na vila de Sindhupalchok quando o terremoto aconteceu. Na hora do tremor, ela estava com a avó em casa, enquanto seus pais e irmãos trabalhavam em outro local, totalmente afetado pelo terremoto. Ela e sua avó sobreviveram e foram abrigadas no camping há dois meses.
Chego perto de Nirjala e pergunto o que ela mais gostava de fazer quando estava em sua vila: "Gostava de estudar e agora voltei a ir à escola. Também gostava quando meus irmãos me ensinavam jogos diferentes, mas sei que eles não estão mais aqui". Neste momento, abaixei a cabeça e decidi mudar de assunto. Era muito pedir para ela se lembrar daquele dia. Ensino uma brincadeira e ela volta a sorrir.
A avó da menina, Minkumari Dhital, 51, mostra a tenda em que vivem. Mesmo com quase nada, ela oferece um chá à reportagem. "Na hora do terremoto, o medo era tanto que não consegui me mexer. Quando escutei minha neta chorando não sabia se ficava feliz por saber que ela estava viva ou triste por sua dor", conta Minkumari. "O futuro dela é meu maior medo, pois sei que agora ela só tem a mim."
Agradeço pela recepção e me levanto para sair, a pequena Nirjala olha para mim e me reverencia com o símbolo de "namastê", saudação hinduísta, a religião predominante no Nepal.
Trauma e tráfico
Há um mês, uma escola foi aberta dentro do camping com a intenção de fazer jogos recreativos com as crianças. "A maioria delas chegou aqui traumatizada. Elas choravam e viviam com medo. Percebemos que com as brincadeiras ficaram melhores", conta Radha, professora voluntária da escola.
No Nepal, a população deve pagar uma taxa para estudar mesmo quando o ensino é público. Por isso, muitas crianças carentes, como as do camping, não vão ao colégio. Sem estudo, sem dinheiro e, por vezes, sem família essas crianças acabam virando alvos vulneráveis para o tráfico.
Rupa Joshi, representante de comunicação da Unicef Nepal, explica que depois do terremoto o risco do tráfico de crianças aumentou, pois muitas perderam suas famílias e viram alvos vulneráveis para a exploração. De acordo com a International Labour Organisation, anualmente 12 mil mulheres e crianças são vítimas do tráfico no Nepal.
O jovem Kiran relata que mesmo com toda condição precária, a comunidade se uniu e criou divisões em blocos para cada área delimitada dentro do abrigo. No total de seis blocos, cada pedaço tem um líder que designa funções ao restante do grupo.
"Isso não é política, ninguém manda em ninguém. Somos uma comunidade e isto por enquanto é o lar de todos", diz o jovem. Sem ligação com o governo, o camping tinha a duração inicial de um mês e já se estende por mais de três.
Atualmente, os itens mais necessários são alimentos, água e tendas, pois as doações que estão chegando ainda não são suficientes. "Realmente não sei quando teremos que sair daqui, mas se tivermos que ir, não sei para onde iremos", desabafa Kiran.
Aumento dos suicídios
Acolhedora e atenciosa, a médica Promela Sheresta relata que, logo após o terremoto, no hospital em que trabalhava chegaram três mulheres, em um único dia, que tentaram se suicidar após saberem que os maridos tinham morrido no tremor.
O Nepal é um país em que a maioria das mulheres é dependente do homem. Na religião Hindu, a mulher não pode se casar novamente caso algo ocorra com o marido e, normalmente, eles são a base financeira da família. "As mulheres ficam com medo de ficarem nas ruas, de serem rejeitada por suas vilas e acabam fazendo isso [se matar]", conta a médica.
Promela conta que há cerca de duas semanas deixou o hospital privado em que trabalhava para começar a ajudar na reabilitação de pessoas carentes. Assim como a educação, no Nepal os gastos com saúde também devem ser pagos pelo usuário.
Mekshing Tamang, 43, é um exemplo deste caso. Com uma fratura na perna causada pelo terremoto, o ex-agricultor me conta que atualmente seu filho trabalha praticamente para pagar as contas do hospital. "Já fiz duas operações e ainda dói. Se minha perna continuar assim, não conseguirei voltar à minha vila que é no topo de uma montanha, pois preciso caminhar para chegar até lá", diz Tamang.
Receptivo, Tamang me convida para entrar em sua tenda, mas o espaço é tão pequeno que fico sentada com metade do corpo para fora do local. Ele me mostra suas contas médicas e fala da saudade que sente do restante da família que continua no vilarejo de Dolakha.
Em meio a conversa, ele me pergunta onde essa reportagem vai ser publicada e eu explico que é em um portal de notícias brasileiro. Com os olhos arregalados, Mekshing me responde: "Brasil? É do outro lado do mundo… Sabe, se eu pudesse falar com o mundo pediria para todos ajudarem o Nepal. Porque não sou só eu, há várias famílias e crianças que precisam de ajuda. O terremoto já passou, mas as pessoas continuam aqui".
Fonte: UOL